Opinião

Fenômeno do complexo agroindustrial e a teoria geral do direito do agronegócio

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28 de janeiro de 2023, 17h04

Central como objeto de estudo do direito do agronegócio, o complexo agroindustrial reúne a totalidade das operações agroindustriais realizadas no país, sendo seu adequado tratamento jurídico essencial para a superação de temas como insegurança jurídica nos negócios, cooperação entre os agentes econômicos e coordenação das atividades econômicas das cadeias agroindustriais.

A preocupação com a formulação de uma construção científica do Direito, com base na integralidade do fenômeno jurídico, é antiga, e teve como escopo realizar uma descrição objetiva dos elementos da juridicidade [1]. Pontes de Miranda apresentou importante contribuição para o estudo da teoria do direito, como bem escreve Marcos Bernardes de Melo, pontuando que o jurista alagoano: "revelou a relação fundamental entre a norma jurídica, que define o mundo jurídico, o fato jurídico, que o compõe, e a eficácia jurídica, que o integra" [2].

O fenômeno do complexo agroindustrial poderia então ser analisado em termos de definição normativa, de conteúdo-composição e de integração-eficácia, os quais auxiliam na elaboração de uma teoria geral para o Direito do Agronegócio e o consequente aprofundamento da compreensão jurídica do funcionamento da complexa rede de operações que compõem o agronegócio.

O presente artigo visa ilustrar  em esboço  a tese central de que o complexo agroindustrial é limitado pelo regime jurídico do agronegócio; composto pelas atividades econômicas organizadas (representadas na forma de sistemas/cadeias agroindustriais); e integrado pelo conceito de rede de negócios jurídicos agroindustriais.

O elemento que define o que seriam os contornos (ou limites) do fenômeno do complexo agroindustrial é seu regime jurídico, composto pelas normas aplicáveis às atividades econômicas organizadas, que são tanto de natureza pública (normas legais) ou privada (contratos). Tais normas, uma vez reunidas e passíveis de aplicação ao caso concreto, formariam um modo de regulação própria [3] dos fatos da vida previstos em seus suportes fáticos, podendo tal conjunto de normas ser tomado como sistema.

Sendo ramo especial do direito comercial, o direito do agronegócio teria como elemento regulador um microssistema próprio na seara daquele ramo principal, sendo tal ordem caracterizada por regras e princípios especializados, espécies do que seriam as normas jurídicas aplicáveis a seu objeto central: o complexo agroindustrial.

No esforço de compreender o conjunto de normas aplicáveis ao setor, é de grande valia seu tratamento como microssistema próprio, possibilitando o estabelecimento do que seria um entendimento mais abrangente para explicação da relação entre as diversas normas aplicáveis. Tal conjunto de normas aplicáveis, tomado como microssistema, seria o que comumente se denomina "regime jurídico do agronegócio".

O parâmetro central que delimita o conteúdo de cada microssistema, e naturalmente sua abertura/fechamento quanto ao ingresso de normas de outros ramos, é a adequação dessas regras e princípios externos à principiologia básica do microssistema, sempre considerada em relação a seu objeto de estudo.

Dissertando sobre microssistemas jurídicos, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino considera que tais sistemas, mesmo estabelecidos por lei especial, não perderiam sua característica de sistema relativamente aberto, preservando sua referência ao sistema geral do qual fazem parte. Em suas palavras: "Naturalmente, deve ser dada prevalência aos princípios orientadores do próprio microssistema normativo, mas sem o seu fechamento às influências de outros princípios e normas do sistema geral que não se mostram incompatíveis com a sua principiologia" [4].  Essa abertura relativa é o que permite, por exemplo, que o direito do agronegócio seja influenciado por normas e princípios constitucionais, ambientais, civis e comerciais, e ao mesmo tempo não perca sua especialidade. Nesse mesmo sentido, a multidisciplinaridade permitiria a contribuição de áreas externas ao direito como a Economia e a Política.

Os princípios básicos do direito do agronegócio na visão de Fábio Ulhoa Coelho [5] são: a) função social da cadeia agroindustrial; b) desenvolvimento agroempresarial sustentável; c) proteção da cadeia agroindustrial; e d) integração das atividades da cadeia agroindustrial.

Nota-se que todos esses princípios fazem referência direta a um conceito central, qual seja "cadeia agroindustrial". Essa poderia ser tomada como base comum de todos os princípios do direito do agronegócio, informando simultaneamente qual seria seu objeto de estudo. Uma cadeia agroindustrial (como será abordado em seguida) constitui, na verdade, tão somente um dos elos particulares de um conjunto maior de cadeias que, juntas, comporiam o que consideramos ser complexo agroindustrial, objeto do direito do agronegócio.

No entanto, a necessária unidade do objeto de estudo desse ramo jurídico só poderia ser alcançada em termos de "complexo agroindustrial", já que este sim é fenômeno único, particular e abrangente, capaz de universalizar e sintetizar elementos comuns em todas as partes do sistema, não sendo acidental e transitório como um sistema agroindustrial, definido por um produto final específico.

Logo, o regime jurídico do agronegócio, entendido como microssistema normativo, é delimitado pelos princípios que lhe são basilares e por seu objeto especial, que lhe concedem especialidade como sub-ramo jurídico.

Quanto à composição do fenômeno do complexo agroindustrial, considera-se os elementos que lhe conferem conteúdo. Tais elementos seriam as atividades econômicas organizadas representadas na forma de sistemas ou cadeias agroindustriais.

Segundo Renato Buranello [6], dentro do complexo agroindustrial macroeconômico, o sistema agroindustrial é a microeconomia de certo produto agropecuário. Cada sistema ou cadeia agroindustrial seria definida em função de um produto em particular, mas as atividades que comporiam cada um desses sistemas/cadeias compreenderiam todas as operações que se originam desde o fornecimento de insumos até a entrega do produto final ao consumidor. De fato, "cruzam-se" todos os setores da economia na conceituação do sistema agroindustrial, uma vez que envolve atividades próprias tanto do setor primário quanto do setor secundário e terciário.

Tendo em vista a profissionalização nas atividades agroindustriais, às atividades econômicas desenvolvidas nos sistemas em questão é atribuída a qualidade de "organizadas". Sem dúvida, tem-se em mente aqui o conceito básico de empresa previsto no Código Civil, como sendo a atividade econômica organizada para produção ou circulação de bens ou serviços [7]. O produtor rural, ao exercer sua função de cultivo de commodities, destinando-as à comercialização, de fato assume função de empresário, integrando a rede de negócios que compõem o agronegócio brasileiro como um todo, mesmo que ainda localizado no início da longa cadeia.

Da mesma forma, em termos conceituais, um sistema agroindustrial pode ser visto como "um conjunto de seis grupos de atores econômicos diferentes: agricultura e pesca, indústrias agroalimentares, distribuição agrícola e alimentar, consumidor final, comércio internacional e indústria e serviços de apoio" [8]. Visão essa que ressalta a integração evidente entre os setores produtivos e o que seria a agroindústria, característica marcante da modernização do setor que lançou as bases para a moderna teoria das organizações agroindustriais.

Como elemento integrador do fenômeno do complexo agroindustrial, temos o conceito de "rede de negócios". Mais precisamente, correto seria falar-se em "rede de negócios jurídicos agroindustriais". Tal conceito envolveria a integração das atividades da cadeia agroindustrial, e demandaria o tratamento de temas como cooperação, coordenação, gerenciamento e interação entre os agentes econômicos. 

É difundido o tema das redes contratuais, e Ana Frazão [9] abordando o assunto ressalta que "networks ou redes contratuais são conjuntos de contratos que, embora distintos e autônomos, são interdependentes do ponto de vista econômico e funcional. Trata-se de conceito próximo ou até mesmo coincidente com o que a doutrina chama de contratos coligados e contratos conexos, ainda que alguns autores reservem a expressão redes contratuais para aquelas pluralidades contratuais com maior grau de conexão".

Mesmo em rede, cada um dos contratos celebrados ao longo da cadeia agroindustrial conserva sua qualidade de negócio jurídico por excelência. A negociação entre as partes, os ajustes e acordos, os fatos da vida que surgem pela atuação dos agentes econômicos, uma vez formalizados por contratos, operariam a aplicação de normas legais e a criação/aplicação da "lei entre as partes", juridicizando aqueles fatos, que se tornariam fatos jurídicos, mais precisamente, "negócios jurídicos agroindustriais".  Assim, o que realmente integraria o complexo agroindustrial (objeto do direito do agronegócio) seriam os negócios jurídicos que nascem a partir da incidência das normas contratuais e legais, e que têm como objeto as atividades que compõem o conteúdo daquele complexo.

Os negócios jurídicos agroindustriais, uma vez existentes e válidos, produzem eficácia jurídica, passando a gerar efeitos sobre a esfera patrimonial dos agentes econômicos, na forma determinada pelo regime jurídico do agronegócio. Daí nasceriam todos direitos, obrigações e ações que os agentes econômicos teriam uns perante os outros [10].

Enfim, buscou-se apresentar, em breves notas, o que seria a proposta de uma organização teórica dos fundamentos do direito do agronegócio, estabelecendo seu marco regulatório (regime jurídico próprio através de microssistema), seu conteúdo (atividades econômicas organizadas dos sistemas agroindustriais) e, por fim, o elemento integrador, na forma do conceito de rede de negócios jurídicos agroindustriais.

O atual estágio de desenvolvimento do agronegócio no Brasil, a complexidade dos arranjos e estruturas comerciais e financeiras verificadas na prática demandam um regime jurídico que espelhe essa complexidade e que seja capaz de coordenar os esforços de todos os agentes econômicos ao longo das cadeias agroindustriais. Nesse esforço, norma jurídica, atividade econômica e negócios em rede devem ser criados e aplicados de maneira coerente, estável, eficiente e segura, de modo que o ambiente de negócios se beneficie de um jogo justo e "dentro das quatro linhas".

 


[4] SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Responsabilidade civil no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 84.

[5] BURANELLO, Renato. Manual do direito do agronegócio. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, pos. 169 (Kindle).

[6] Ibid, pos. 822 (Kindle)

[7]  "Artigo 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços".

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