Ao mestre com carinho

Breves notas sobre Pontes de Miranda e sua contribuição à ciência do Direito

Autor

  • Marcos Bernardes de Mello

    é professor emérito da Ufal PhD pela PUC-SP MSc. pela FD do Recife (UFPE) professor voluntário na graduação e no mestrado de Direito da Ufal membro da AAL e do IHGAL e autor da trilogia "Teoria do fato jurídico: planos da existência validade e eficácia".

17 de dezembro de 2021, 8h34

Na sequência da série especial sobre Pontes de Miranda, a ConJur apresenta o artigo inédito de um dos maiores especialistas brasileiros na obra do mestre alagoano, o professor Marcos Bernardes de Mello.

 

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1) Introdução
Na história da humanidade, embora não sejam muitos, há homens e mulheres que trazem em si um dote que os distingue dos demais: a genialidade. São pessoas bafejadas pelo dom de ver o mundo muito além do horizonte que limita a visão dos outros seres humanos. São pessoas inspiradas por talentos excepcionais que as capacita a interferir no ambiente onde atuam com tal força que, depois delas, o estado das coisas e o modo de vê-las não mais serão os mesmos. São seres dotadas do poder de acrescentar ao mundo algo tão notável e benfazejo que marca de maneira indelével e perene, senão perpétua, sua passagem entre nós. Um desses iluminados foi o alagoano, cientista do Direito, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, homem de inteligência fulgurante que, mais que um sábio, que um emérito erudito, que um notável jurista, foi um arquiteto de conceitos e de ideias que, através do monumental acervo de sua vastíssima obra, com absoluta pertinência, quebrou cristalizados paradigmas científicos considerados, por séculos, definitivos e insuperáveis, para construir outro original que despreza as puras abstrações lógicas e se enraíza na realidade social.

2) Os albores da ciência jurídica
O Direito, certamente, nasceu quando um homem, na remota aurora dos tempos, diante de outro homem ou do grupo, empregou, pela vez primeira, o pronome possessivo meu com a finalidade de excluir, um e outro, da posse de algo valioso. Antes, enquanto os bens ainda eram tidos e havidos em comunhão, sem dúvida, reinava a paz no ambiente grupal no respeitante à propriedade e posse das coisas.

Desde então, o egoísmo inspirador daquela conduta exclusivista implicou a proliferação no seio dos grupos humanos conflitos interpessoais, acarretando a indispensabilidade de adoção de regras obrigatórias de conduta humana com a finalidade de subordinar os fatos a certa ordem e a certa previsibilidade na distribuição dos bens da vida [1] e, assim, procurar obter uma convivência harmônica (paz) no meio social [2]. O Direito, então, tornou-se uma necessidade social.

Ao evolver dos milênios, os povos da antiguidade estiveram ocupados tão somente em definir as regras de conduta que deveriam ser seguidas pelos súditos, e algumas poucas pelos príncipes. Em geral, normas costumeiras eram tornadas obrigatórias em textos religiosos, como a Bíblia, e em alguns poucos casos cristalizadas em códigos, como os de Ur Nammur (Suméria, 2050 AC), de Manu (Índia, entre 1300 e 800 AC), de Hamurabi (Babilônia, 1772 AC), ou simplesmente em leis esparsas. Mesmo em civilizações mais avançadas, como a grega e a romana, a atividade meramente legislativa (= instituição de leis) preponderava.

3) Os grandes monumentos jurídicos ao longo da história
No transcorrer da história do Direito há momentos de significação extraordinária. O primeiro, na vetusta Roma, homens de espírito notável, da estatura de Papiniano, de Ulpiano, de Paulo, de Teodosio, de Celso, o Jovem, de Modestino, de Antistio Labeão, de Gaio, construíram o mais importante monumento jurídico da humanidade, o Direito Romano, fonte inesgotável onde o Direito ocidental se abebera, ainda hoje, sempre que necessita resolver problemas com que se defronta na experiência da vida [3]. No entanto, nem esses jurisconsultos, menos ainda os pretores romanos, que, juntos, criaram essa obra eterna, desenvolveram qualquer teoria sobre o Direito e seus institutos. O Direito Romano, sem dúvida, constitui-se em incomparável obra jurislativa marcada por seu cunho pragmático, vivencial, cuja estreita relação, que revela, com o senso de justiça e a excelência das soluções adotadas são reflexos dos três princípios fundamentais que o inspiravam: honeste vivere, neminem lædere, suum quique tribuere [4].       

Na Idade Média, a chamada Escola de Bolonha abrigou os glosadores que, apesar das críticas decorrentes de deturpações na interpretação tendenciosa dos textos, especialmente os fragmentos, feitas por alguns inescrupulosos que geraram seu descrédito, mantiveram vivo o Direito Romano, compatibilizando-o com o Direito Canônico e permitiu sua recepção em todo o mundo ocidental.

Já na Idade Moderna, a partir do século 18, dois eventos históricos merecem destaque:

1) Em França, no ano de 1807, a adoção do Código Civil (o conhecido Code de Napoleón), ainda hoje em vigor, naturalmente ajustado aos tempos de hoje, constituiu obra notável cujo brilho, no entanto, não foi maior porque ofuscado pela Escola da Exegese, que o prendeu a exagerado positivismo e,

2) Na Alemanha, a partir daquele século e por todo o século 19, juristas do quilate de Bekker, Bierling, Binding, Brinz, Bülow, Dernburg, Eltzbalcher, Enneccerus, Gierke, Gluck, Heise, Hugo, Ihering, Isay, Kipp, Köller, Manigk, Oertmann, Puchta, Savigny, Thöl, Thon, von Tuhr, Zitelmann, Wach, Windscheid, Wolff, somente para citar alguns dos mais respeitáveis (em ordem alfabética), lançaram os alicerces da ciência do Direito propriamente dita, até então inexistente, e construíram a teoria geral do Direito, elaborando suas categorias e estabelecendo seus conceitos fundamentais. Apesar da admirável construção teórica, os juristas germânicos, data venia, não conseguiram sistematizar, segundo critérios rigorosamente científicos, o conjunto de princípios e conceitos consubstanciadores da ciência jurídica, nem neles identificar o caráter universal a eles inerente que os fizessem aplicáveis, indistintamente, a qualquer ordenamento jurídico, em qualquer espaço e tempo (basta lembrar que sua ênfase maior se circunscreveu ao Direito Civil, que, certamente, à época, era o ramo da ciência do Direito que dominava os estudos jurídicos. Há quem entenda, com bastante razão, que aquela teoria geral seria, em verdade, do Direito Civil, e não do Direito).   

Sem dúvida, a doutrina alemã:

a) Elaborou o conceito de suporte fáctico (Tatbestand), mas o teve como específico do Direito Penal; sua aplicação aos outros ramos do Direito, em especial ao Direito Civil, foi tímida e equivocada, porque, ao tempo em que o relacionava apenas aos negócios jurídicos do Direito Privado, atribuía-lhe a função geradora da eficácia jurídica, confundindo-o com o fato jurídico. Mais ainda, não o conseguia vincular à essência da juridicidade, uma vez que não o estendeu a todos os meandros do Direito;

b) Ao tratar do gênero ato jurídico (lato senso):

b.1) Foi brilhante ao identificar a espécie negócio jurídico, isolando-a do ato não negocial (= ato jurídico stricto sensu), que era considerada unitariamente (como ainda hoje faz a doutrina francesa), mas claudicou assaz ao procurar distingui-las com fundamento na eficácia jurídica que gerariam, dizendo-as ex voluntate, a do primeiro, e ex legge a do segundo, sem perceber que, nem a vontade, nem a lei, pode sozinha gerar qualquer efeito jurídico, por mínimo que seja); 

b.2) E mais, equivocou-se ao incluir o ato real (real ackt) entre os atos jurídicos lato sensu uma vez que é sempre avolitiva a conduta que o cria, enquanto os atos jurídicos têm como cerne uma exteriorização consciente de vontade;

c) Jamais viu no fato jurídico lato sensu a pedra basilar, portanto única, do alicerce do fenômeno jurídico;

d) Nem conheceu o fenômeno da juridicização dos fatos da vida (suportes fácticos) pela incidência da norma jurídica, como nunca teve a percepção de que dela (incidência) decorre a obrigatoriedade das normas jurídicas e nela reside o dado que diferencia as normas do direito das demais normas sociais;

e) Não logrou reconhecer o caráter essencial da relação entre norma jurídica, fato jurídico e eficácia jurídica em que cada um, nessa ordem, é fundamento do outro;

f) Enfim, criou e desenvolveu a teoria geral do Direito, sem, contudo, elaborar categorias que transcendessem os contornos apertados do Direito Civil positivado pelo legislador, que tivessem aplicação indistinta ao universo jurídico; em verdade, se limitou a generalizar, pela abstração, as categorias criadas pelo direito positivo, o que, sem dúvida, constituiu um avanço científico extraordinário.

4) A obra de Pontes de Miranda
Pontes de Miranda encontrou a ciência jurídica nesse estágio: magistral acervo cultural, porém, sem uma sistematização [5] capaz de lhe dar caráter verdadeiramente científico. Conhecedor profundo do Direito Romano e das sábias lições dos velhos juristas portugueses, dominando a notável contribuição científica dos juristas germânicos, franceses e italianos, Pontes de Miranda dedicou a argúcia de sua inteligência a sistematizar, com rigoroso critério metodológico, de insuperável lógica, novo paradigma [6] para explicar, com absoluta originalidade, o fenômeno jurídico. Na edificação desse monumento, é inegável que Pontes de Miranda se valeu desse extraordinário cabedal de conhecimentos, sem, porém, se limitar a repeti-los. Foi além. Através de uma análise arguta, valendo-se de seu domínio da Matemática, da Lógica, da Sociologia, da Filosofia e das ciências da natureza, os corrigiu, quando necessário, para aperfeiçoá-los, deu-lhes precisão conceptual ou os reelaborou; identificou e propôs novos e, principalmente, os sistematizou com intransigente exatidão lógica, o que lhe permitiu desvelar, enfim, a essência própria da juridicidade, imprimindo aos conceitos que desenvolveu um caráter de unidade e de universalidade condizentes com a cientificidade do Direito [7].

A partir dessa atitude metodológica, Pontes de Miranda expôs o fenômeno jurídico de maneira objetiva, fundada em dados da realidade social, abandonando as explicações artificiais e abstratas, arbitrariamente formuladas em argumentos de autoridade, vazadas em linguagem mais preocupada, em geral, com a forma literária que com a precisão científica, tão ao gosto dos juristas influenciados pela literatura jurídica francesa e italiana. A sua proposta de tratamento dos temas jurídicos por critérios estritamente científicos, seu trabalho de reelaboração de conceitos já sedimentados e de revisão de fundamentos doutrinários geralmente aceitos através das quais construiu sua doutrina, certamente constituiu um dos fatores determinantes para que sua obra, apesar de respeitada e reverenciada como notável por quase todos não fosse, de pronto, estudada, nem suas concepções seguidas (houve, e ainda há, juristas, embora poucos, que se recusam a reconhecer o insuperável valor das lições de Pontes de Miranda) [8].

5) Breve síntese de sua contribuição à ciência jurídica
A partir daí descreveu, sistematicamente, o desenvolvimento do fenômeno jurídico mostrando que, em toda a sua complexidade, envolve diversos momentos, interdependentes, a saber: a) a definição pela norma jurídica do suporte fáctico (= hipótese fática considerada relevante para a convivência humana e consistente na definição normativa hipotética do fato jurídico); b) a concreção dessa hipótese no mundo dos fatos; c) a sua consequente juridicização por força da incidência da norma e sua entrada como fato jurídico no plano da existência do mundo do Direito; d) a passagem dos fatos jurídicos lícitos, fundados na vontade humana (ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico), pelo plano da validade, onde se verificará se são válidos, nulos ou anuláveis; e) a chegada do fato jurídico ao plano da eficácia onde nascem as situações jurídicas, simples ou complexas (relações jurídicas), os direitos ⇔ deveres, pretensões ⇔ obrigações, ações ⇔ situações de acionado, exceções ⇔ situações de exceptuados, as sanções, os ônus e demais consequências que constituem o conteúdo eficacial específico de cada fato jurídico. A compreensão do fenômeno jurídico, evidentemente, não pode prescindir do domínio das relações que existem entre as suas diversas etapas [9].

Mas, sua contribuição à ciência jurídica não se limitou a isso. Em verdade, formulou princípios e conceitos essenciais à juridicidade que, aqui, com a maior brevidade possível, passamos a enunciar apenas alguns:

1) Mostrou que suporte fáctico (Tatbestand) é conceito universal e não peculiar a um ou algum ramo da ciência jurídica (Direito Penal, onde primeiro foi tratado);

2) Criou e desenvolveu o conceito de incidência incondicional, que juridiciza o suporte fáctico, gerando o fato jurídico, e do qual decorre a obrigatoriedade das normas do Direito, dado que constitui o fator que as diferencia das demais regras éticas;

3) Precisou o fato jurídico como o elemento essencial constitutivos da juridicidade, demonstrando que somente ele pode gerar efeitos jurídicos (relações jurídicas com seu conteúdo de direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações e exceções, bem como as sanções, ônus, prêmios etc.);

4) Reelaborou a classificação dos fatos jurídicos, segundo critérios científicos, fundando-a nos elementos essenciais do suporte fático conforme descrito hipoteticamente na norma, e precisando conceitos como de negócio jurídico, ato-fato jurídico e revelando, quanto a esses as espécies indenizativas e caducificantes, de ilícito relativos, de fato stricto sensu ilícitos, de ato-fato ilícito;

5) Desenvolveu a concepção de transujetividade na responsabilidade substituindo a concepção de responsabilidade civil objetiva;

6) Distinguiu os planos do mundo, mostrando que existir, valer e ser eficaz são três situações distintas em que se podem encontrar os fatos jurídicos;

7) Revelou a relação fundamental entre a norma jurídica, que define o mundo jurídico, o fato jurídico, que o compõe, e a eficácia jurídica, que o integra;

8) Elaborou a mais original e exauriente classificação das ações de que se tem conhecimento em toda literatura jurídica nacional e estrangeira (classificação quinária das ações).

6) Conclusão
A contribuição de Pontes de Miranda não se cingiu aos aspectos da teoria geral do Direito, mas analisou, em profundidade, notadamente os microssistemas do Direito Privado, do Direito Processual Civil, do Direito Constitucional e do Direito Internacional Privado, e, do mesmo modo como procedeu em relação à ciência do Direito, reviu conceitos, identificou e revelou princípios fundamentais inspiradores do sistema jurídico nacional até então desconhecidos ou, simplesmente, ignorados, sistematizou com rigor lógico as matérias, criticou a doutrina de seu tempo, apontando e corrigindo os equívocos cometidos em grandes obras de juristas notáveis daqui e d'alhures, e, mais que tudo, trouxe soluções adequadas a problemas que desafiavam a argúcia dos doutrinadores. Tudo isso sem restringir-se ao Direito pátrio, mas debruçado sobre os mais importantes sistemas jurídicos do mundo.

A nosso ver, sem exagero, a obra de Pontes de Miranda constitui outro grande monumento da ciência jurídica, comparável aos que citamos antes.

* Neste sábado (18/12), a série especial sobre Pontes de Miranda continua com um artigo inédito do juiz Alan da Silva Esteves, titular da 7ª Vara do Trabalho de Maceió e estudioso da obra do mestre.

Outros textos da série:
— 'Pontes de Miranda é nosso maior jurista, mas infelizmente está sendo esquecido'
— Para estudiosos de Pontes de Miranda, sua obra tem profundidade sem par no mundo
— Maior livro jurídico de todos os tempos é o mais notável legado de Pontes de Miranda 
Pontes de Miranda teve encontro histórico com Albert Einstein e ousou criticá-lo
— Museu em Maceió apresenta a obra de Pontes de Miranda às novas gerações
Opinião: A feitura das leis e sua interpretação na visão de Pontes de Miranda
'Apesar dos seus erros, o Direito brasileiro ainda é um dos melhores do mundo'

 


[1] Assim Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, t.I, §1º,1.), lapidarmente, conceitua: A regra  jurídica é norma com que o homem, ao querer subordinar os fatos a certa ordem e a certa previsibilidade, procurou distribuir os bens da vida. (Nas citações que tivermos de fazer do Tratado indicaremos apenas o tomo e o parágrafo onde estiver o texto, por considerar que varia a numeração das páginas nas suas diversas edições, sendo, porém, o conteúdo basicamente intocado).  

[2] Há juristas e filósofos do direito, muitos de grande valor, que negam possam ser consideradas jurídicas as regras de conduta que vigeram nas coletividades primitivas. O serem toscas, rudimentares, não nos parece seja dado suficiente para que se possa negar-lhes as cores da juridicidade. Essa visão, a nosso sentir, desfigura a plena concepção do fenômeno jurídico. Não é a sofisticação técnica de um enunciado normativo, sem dúvida, que caracteriza a norma jurídica, mas, sim, sua essência de regra de ordenamento de conduta humana posta pelo grupo social, visando à distribuição dos bens da vida, mesmo quando não haja cogência (=obrigatoriedade de observância).

[3] Vale lembrar que até o ano de 1900, quando entrou em vigor o BGB, na Alemanha eram aplicadas, com os devidos temperamentos e as regras específicas do Direito Germânico, as Pandectas de Justiniano.

[4] Viver honestamente, não causar prejuízo aos outros, atribuir a cada um o que é seu.

[5] A visão de Pontes sobre o estado da Ciência Jurídica na metade do século XX e o que seria da responsabilidade do autor de uma obra que dele tratasse, está explícita no nº 8 do Prefácio do seu Tratado de direito privado, t.I.

[6] A história da humanidade mostra quanto custa quebrar um paradigma. Basta lembrar que o novo paradigma para explicar o universo proposto por Copérnico (concepção heliocêntrica do universo), precisou de mais de duzentos anos para ser aceito em substituição à concepção geocêntrica de Ptolomeu, paradigma que vigorava já por mais de um milênio.

[7] Quem percorre o Tratado de direito privado, a cada passo encontra crítica pertinente e abalizada a opiniões dos maiores expoentes da cultura jurídica européia, notadamente alemães que, certamente, são os mais importantes e os que mais contribuíram para a construção da Ciência do Direito.

[8] Ouvi muitas vezes de juristas e professores importantes que o Tratado de direito privado era muito bom para ser citado, em razão da indiscutível autoridade das opiniões de Pontes de Miranda reconhecida pelos Tribunais, mas não para ser estudado. Essa visão miúda se explica, facilmente, se considerarmos a dificuldade que muitos têm de aceitar novos paradigmas em substituição aos já estabelecidos, conforme observamos na nota n° 6. Por que? Porque a mudança impõe que as pessoas se despojem de seus conhecimentos já sedimentados para aprender tudo de novo, praticamente a partir do zero. Quando o Tratado de direito privado começou a ser publicado, na década de 1950, trouxe à luz uma revolucionária maneira de “ver” e de “sentir” o Direito. Era um novo paradigma científico que se propunha. Pela novidade da sistemática adotada e dos conceitos expostos em uma linguagem erudita e precisa, com rigor lógico, diferente daquela a que se estava habituado na literatura jurídica, a compreensão de suas ideias exigia do jurista renúncia ao saber já cristalizado e nova aprendizagem para mudar o modo de pensar e lidar com o Direito. Tal atitude impunha, naturalmente, muita humildade intelectual e um ainda maior amor à verdade científica, uma consciência de que pouco se sabe e muito se tem sempre a aprender, disposição muito difícil encontrar em alguém já festejado como sábio, reverenciado como luminar, ou que assim se considera. “Esquecer” tudo o que sabia para aprender tudo de novo, máxime quando se defrontava com um monumental e complexo acervo científico enfeixado em 60 tomos, com uma média superior a 500 páginas cada, totalizando mais de trinta mil páginas de pura ciência, sem temas, questões ou palavras inúteis, em que cada vocábulo, desde o primeiro do Prefácio ao último do sexagésimo tomo, tem importância e sentido certo e invariável (os mais alentados tratados publicados no mundo, em geral escritos por mais de um autor, nunca chegaram à metade disso, nem mesmo as enciclopédias, com centenas de autores. A obra completa de Pontes é composta por mais de 250 volumes, quase todos alentados, sem falar em artigos, conferências, etc. Não há na história da humanidade nenhuma obra de nenhum autor, mesmo coletiva, que tenha essa dimensão sempre com qualidade de excelência) era exigir demais. Por isso, a doutrina de Pontes de Miranda exposta no Tratado de direito privado, no Sistema de ciência positiva do direito (de conteúdo que revela extraordinária erudição, escrita aos 30 anos de idade), passou tantos anos restrita ao conhecimento de tão poucos, diferentemente de seus comentários ao CPC e às CFs, que eram respeitados como verdadeiras bíblias. Boa maioria tinha o Tratado de direito privado como um vistoso troféu para adornar bibliotecas, mas intocado em seu conteúdo. Nos últimos anos, porém, essa atitude tem mudado. A doutrina ponteana está disseminada por todo o país, estudada e respeitada. Constata-se um interesse acentuado em conhecê-la e aplicá-la.

[9] Essa descrição foi extraída de Mello, Marcos Bernardes de, Teoria do fato jurídico: plano da existência, §4º.

Autores

  • Brave

    é Ph. D. em Direito pela PUC de São Paulo, mestre pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE), professor emérito da Universidade Federal de Alagoas e professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da UFAL.

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