Opinião

Populismo tributário: a retórica pelo retorno do voto de qualidade

Autor

  • Flávio Miranda Molinari

    é mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie especialista em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas e sócio do Collavini Advogados.

27 de janeiro de 2023, 20h31

O momento político brasileiro clama por debates propositivos e pautados em evidências. A pauta tributária também. A comunidade jurídica tributária foi surpreendida com a edição da Medida Provisória nº 1.160/2023, pelo governo federal, a qual reintroduziu a sistemática do voto de qualidade no Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais).

O anúncio da medida feito pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, trouxe no discurso a visão do governo sobre o Carf: um órgão de arrecadação e não de julgamento. Essa visão não é nova.

Em 2015, na cerimônia inaugural do Carf realizada após a paralisação das atividades do órgão no contexto da nomeada "operação zelotes", o então ministro da Fazenda Joaquim Levy destacou que o conselho teria um papel fundamental para reforçar o caixa do Governo Federal em momento de queda na arrecadação, pois o órgão julgava litígios que superavam R$ 560 bilhões [1].

Além da visão do Carf como um órgão de arrecadação ser contrária à sua natureza judicante, que deve preservar pela isonomia nos julgamentos, a miopia da retórica fazendária, nesse caso, atribui ao fim do voto de qualidade uma gama de desfechos negativos para o fisco, em especial, um aumento de estoque de processos ainda sem julgamento na cifra R$ 1 trilhão.

A Associação dos Conselheiros de Representantes dos Contribuintes no Carf (Aconcarf) emitiu uma nota por meio da qual combateu as temerárias conclusões com dados, demonstrando que apenas 1,9% dos processos julgados no Carf até outubro de 2022 foram decididos pelo voto de qualidade [2].

Na mesma nota, a associação lembra que, nos anos passados, o aumento do estoque de processos teve dois pontos fundamentais: a paralisação das sessões de julgamento por quatro meses em virtude das restrições da pandemia e a greve dos auditores fiscais federais.

Outro ponto apresentado pelo governo seria a derrota da Fazenda no Carf em casos que havia teses já consolidadas no Poder Judiciário. A nota apresentada pela Aconcarf relembra, nesse ponto, que o regimento interno possui norma específica sobre a aplicação dos precedentes de Tribunais Superiores já pacificados, e que, inclusive, o seu descumprimento pode ensejar sanções administrativas, cíveis e até penais. E, vale dizer: nada disso foi alterado pelo fim do voto de qualidade em 2020.

Nesses pontos, é possível enxergar a retórica do populismo [3] tributário. O método é estabelecer uma narrativa de antagonismos, em que o sucesso da recuperação fiscal dependa exclusivamente da derrota dos contribuintes, sendo estes últimos os grandes responsáveis por perdas do governo.

Para reforçar essa narrativa, órgãos que manifestaram apoio às medidas do governo afirmam que a inconformidade da extinção do voto de qualidade revela o desejo de "setores mais ricos do empresariado e seus representantes" que "querem continuar utilizando-se de artifícios criativos para reduzir ou não pagar tributos, sem riscos" [4].

A Unafisco (Associação Nacional dos Auditores), que é uma das entidades que tem atuado a favor do retorno do voto de qualidade, afirma que o fim da sistemática decisória representa a captura do órgão por interesses privados, afetando a segurança jurídica, assim como o combate a práticas de corrupção, sonegação e evasão fiscais, crimes na seara aduaneira, lavagem de dinheiro, fluxos financeiros ilícitos em geral, dentre outros delitos, de âmbito nacional e transnacional [5].

Essas afirmações tipicamente populistas vilanizam o próprio processo democrático e apenas contribuem para o enfraquecimento das instituições. Isso porque, desprestigiam o fato de que o fim do voto de qualidade ocorreu por meio da edição da Lei 13.988/2020, aprovada no âmbito do Congresso Nacional e não apresentam qualquer fato que dê indícios ao aumento de casos de corrupção ou a facilitação de práticas criminosas no âmbito do conselho por causa dessa medida.

Curiosamente, o mesmo "balanço ético" não existe quando o assunto, que está sendo tratado ao mesmo tempo no âmbito do governo federal, é o Bônus de Eficiência dos Auditores Fiscais.

O Bônus de Eficiência, estabelecido pela Lei 13.464/2017, tem por objetivo incrementar a produtividade nas áreas de atuação dos auditores fiscais e será apurado por meio de um índice de eficiência institucional estabelecido pelo Comitê Gestor do Programa de Produtividade da Receita Federal do Brasil, este último instituído pelo Decreto 11.312/2022.

Segundo o parágrafo único do art. 1º do Decreto 11.312/2022, o índice de eficiência institucional considerará, entre outros fatores, "o desempenho do julgamento de processos administrativos fiscais".

Seria razoável supor que, considerando que o retorno do voto de qualidade implicará em julgamento favorável ao fisco, o índice de eficiência institucional seja incrementado e acresça ao bônus de desempenho, o que poderia gerar profundas dúvidas sobre a moralidade, impessoalidade e imparcialidade nos julgamentos do Carf.

É verdade que ainda não há definição sobre a base de cálculos do bônus e isso tem sido objeto de debate no governo [6]. Mas, considerando a disposição contida no decreto, o desempenho no contencioso administrativo será levado em consideração para fixação do índice e não deixará de levantar dúvidas sobre a parcialidade dos julgamentos.

No entanto, apenas supor a parcialidade e demonizar os auditores fiscais, que prestam um relevante serviços ao país e merecem ser bem remunerados pelo seu desempenho, não parece ser o caminho mais adequado. Em verdade, seria bastante similar a retórica adotada contra os advogados e empresários que se insurgem contrários ao voto de qualidade.

Isso seria um subjetivismo típico de retóricas populistas que buscam desmoralizar o interlocutor por meio de argumentos sem respaldo de fundamentos normativos, evidências práticas e que está fora da esfera de avaliação do controle de legalidade que rege as relações entre fisco e contribuinte no devido processo legal administrativo. Não precisamos ser populistas.

Um debate sobre o voto de qualidade deve levar em consideração critérios técnicos e sugestões propositivas de reformulação do instituto, como o afastamento de multas nos casos em que o voto tenha sido empregado ou a criação de uma hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, caso o contribuinte questione judicialmente a autuação [7].

Enquanto perdurar a retórica populista tributária, não haverá avanços significativos em uma agenda que tenha por objetivo a redução da litigiosidade e a melhoria da relação fisco em contribuinte. Se não houver diálogo e propostas com fundamentos normativos consistentes e dados coerentes, fisco e contribuinte vão ficar presos em suas ilhas sem perspectivas de liberdade.


[3] Populismo é um conceito polissêmico. No caso empregado, o populismo a que nos referimos é aquele vinculado ao estilo de fazer política, por meio do qual se estabelece um inimigo comum, cria-se uma retórica moral própria do grupo e apresenta a situação de perigo que se pretende combater. Nesse sentido, para entender os mais variados empregos do conceito, recomendamos ver: LYNCH, Christian, CASSIMIRO, Paulo Henrique. O populismo reacionário: ascensão e legado do bolsonarismo. São Paulo: Editora Contracorrente, 2022.

Autores

  • é mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, especialista em Direito Tributário pela FGV Direito SP e sócio do Flávio Molinari Advocacia Tributária.

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