Opinião

Como recorrer quando um tribunal reforma sentença absolutória

Autor

  • Iuri Victor Romero Machado

    é advogado professor de Processo Penal e Direito Penal membro relator da Comissão de Defesa das Prerrogativas Profissionais da OAB-PR e membro relator da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB-PR.

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26 de janeiro de 2023, 19h22

No último dia 7 de novembro, o Supremo Tribunal Federal inaugurou a exposição "Convenção Americana sobre Direitos Humanos  30 anos da promulgação no Brasil". Na ocasião, a presidente do STF, ministra Rosa Weber, afirmou que "faz-se imperioso, mais do que nunca, reafirmar a vinculação do Brasil à proteção dos direitos humanos e ao Pacto de San José da Costa Rica, (…) bem como sua integração ampla e efetiva no sistema interamericano de direitos humanos".

Apesar da comemoração dos 30 anos da promulgação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), a prática forense e a pesquisa acadêmica demonstram que o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos ainda é pouco conhecido, e que ainda ocorre, nos dizeres do professor André de Carvalho Ramos, uma interpretação nacionalista dos tratados internacionais de direitos humanos, inclusive da CADH.

Dentre as críticas feitas pelo professor Ramos, importante destacar que devemos adotar uma interpretação internacional da CADH:

"Assim, o Brasil deu um passo importante rumo à concretização do universalismo, aceitando a interpretação internacional dos direitos humanos. Assim, temos a seguinte situação: no plano nacional, há juízes e tribunais que interpretam cotidianamente esses tratados de direitos humanos. No plano internacional, há órgãos internacionais que podem ser acionados, caso a interpretação nacional desses tratados seja incompatível com o entendimento internacional."

Por isso, foi mencionada acima a necessidade de compatibilização entre o resultado do controle de convencionalidade nacional com o decidido no controle de convencionalidade internacional. Não seria razoável, por exemplo, que, ao julgar a aplicação de determinado artigo da Convenção Americana de Direitos Humanos, o STF optasse por interpretação não acolhida pela própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, abrindo a possibilidade de eventual sentença desta Corte contra o Brasil. (2018, p. 595)

Sobre a necessidade de se adotar uma interpretação internacional, a Corte IDH já se manifestou em inúmeras ocasiões. Por todas, no Caso Gelman vs. Uruguai, a Corte IDH deixou claro que Juízes e demais órgãos vinculados à administração da justiça devem velar pela correta aplicação da CADH, levando em consideração a interpretação feita pela Corte IDH:

"Todas las autoridades estatales, están en la obligación de ejercer ex officio un 'control de convencionalidad' entre las normas internas y la Convención Americana, en el marco de sus respectivas competencias y de las regulaciones procesales correspondientes. En esta tarea, deben tener en cuenta no solamente el tratado, sino también la interpretación que del mismo ha hecho la Corte Interamericana, intérprete última de la Convención Americana."

Tais apontamentos são necessários, pois a Recomendação nº 123 do CNJ (tão somente) sugeriu a utilização da jurisprudência da Corte IDH, ao passo que ela é obrigatória para todos os Estados parte, sendo vinculante aos Estados condenados na respectiva demanda e servindo de parâmetro mínimo de interpretação aos demais. Conforme lecionam Leticia de Andrade Porto e Eduardo Cambi, "as sentenças da Corte IDH devem servir como standards interpretativos a todos os países signatários, a fim de nortear a máxima efetividade dos direitos humanos, inclusive como precedentes a serem seguidos nos sistemas de justiça locais" (2021, p. 46).

Em sendo constatado que os julgados da Corte IDH devem ser aplicados no Brasil, volta-se ao tema deste artigo: direito ao recurso.

No Brasil, corriqueiramente, quando um acusado é absolvido em 1º grau de jurisdição, o Ministério Público interpõe recurso de apelação, requerendo a condenação dele. Quando o respectivo Tribunal reforma a decisão e condena o acusado, cria-se uma situação inconvencional, pois ele fica impossibilitado de exercer o direito ao recurso, pois não pode requerer o reexame de toda questão fático-probatório, conforme definido no Caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica: "165. Independentemente do nome dado ao recurso de apelação existente, o importante é que o referido recurso garanta um exame abrangente da decisão recorrida".

Sobre os requisitos do direito ao recurso, no Caso Norin Catriman, a Corte IDH sintetizou as garantias processuais mínimas (a transcrição do parágrafo 270 se faz necessária para que se compreende o entendimento da Corte):

a) Recurso ordinário: o direito de interpor um recurso contra a sentença deve ser garantido antes que a sentença adquira a qualidade de coisa julgada, pois busca proteger o direito de defesa, evitando que se firme uma decisão adotada em um procedimento viciado, contendo erros que trarão prejuízo indevido aos interesses de uma pessoa.

b) Recurso acessível: sua apresentação não deve requerer maiores complexidades que tornem ilusório este direito. As formalidades requeridas para sua admissão devem ser mínimas e não devem constituir um obstáculo para que o recurso cumpra com sua finalidade de examinar e resolver as reclamações sustentadas pelo recorrente.

c) Recurso eficaz: não basta a existência formal do recurso, este deve permitir que se obtenham resultados ou respostas, conforme a finalidade para a qual foi concebido. Independentemente do regime ou sistema recursal que adotem os Estados Partes e da denominação que deem ao meio de impugnação da sentença condenatória, deve constituir um meio adequado para a correção de uma condenação equivocada. Este requisito está intimamente vinculado com o seguinte:

d) Recurso que permita uma análise ou revisão integral da sentença recorrida: deve assegurar a possibilidade de um exame integral da decisão recorrida. Portanto, deve permitir que se analisem as questões fáticas, probatórias e jurídicas em que se baseia a sentença impugnada, posto que na atividade jurisdicional existe uma interdependência entre as determinações fáticas e a aplicação do direito, de forma tal que uma determinação equivocada dos fatos implica em uma incorreta ou indevida aplicação do direito. Consequentemente, as causais de procedência do recurso devem possibilitar um controle amplo dos aspectos impugnados da sentença condenatória. Deste modo, poder-se-á obter a dupla conformidade judicial, pois a revisão integral da sentença condenatória permite confirmar o fundamento e concede maior credibilidade ao ato jurisdicional do Estado, ao mesmo tempo que oferece maior segurança e tutela aos direitos do condenado.

e) Recurso ao alcance de toda pessoa condenada: o direito a recorrer da sentença não poderia ser efetivo se não garantisse a todo aquele que é condenado, já que a condenação é a manifestação do exercício do poder punitivo do Estado. Deve ser garantido, inclusive, para quem é condenado mediante sentença que revoga uma decisão absolutória.

f) Recurso que respeite as garantias processuais mínimas: os regimes recursais devem respeitar as garantias processuais mínimas que, segundo o artigo 8 da Convenção, são pertinentes e necessárias para resolver as reclamações expostas pelo recorrente, sem que isso implique na necessidade de realizar um novo juízo oral.

A letra "e" garante o direito ao recurso daquele é condenado, após uma sentença absolutória, por recurso interposto pelo Ministério Público. Tal direito foi firmado pela Corte IDH no caso Mohamed vs. Argentina. Neste caso, a Corte se viu diante da seguinte situação:

"90. A Corte observa que este caso apresenta a particularidade de que o acusado foi processado em duas instâncias e foi condenado em segunda instância por um tribunal que reformou a decisão de absolvição do tribunal de primeira instância. Para determinar se o senhor Mohamed tinha o direito de recorrer da decisão perante um juiz ou tribunal superior, é necessário determinar se a proteção consagrada no artigo 8.2.h da Convenção Americana permite uma exceção, como argumenta a Argentina, quando o acusado foi declarado condenado por um tribunal que resolva um recurso contra sua absolvição."

Na situação do caso, o sr. Mohamed "não tinha um recurso legal para proteger seu direito de apelar contra sua condenação, ele fez uso do recurso federal extraordinário por ser o único disponível para tentar contestar sua condenação" (§105).

Ao resguardar o direito ao recurso e condenar a Argentina pela violação ao direito convencional, a Corte IDH afirmou que "é contrário à finalidade deste direito específico que não seja garantido contra os condenados por meio de sentença que revogue a decisão de absolvição. Interpretar de outra forma implicaria deixar o condenado privado de um recurso contra a condenação" (§92).

Voltando os olhos ao ordenamento pátrio, percebe-se que não existe previsão de um recurso que possibilite uma revisão integral do acórdão condenatório, pois restam ao condenado a possibilidade de recursos aos Tribunais Superiores, que, por força de súmula e lei, não revolvem questões fáticas. Ao analisar tal situação, Badaró leciona que "não satisfaz a garantia do artigo 8.2.h da CADH a possibilidade do nosso recurso especial e extraordinário, nos moldes estreito que estão previstos na Constituição e, mais ainda, a sua limitadíssima admissibilidade ainda mais restrita por uma inegável jurisprudência defensiva" (2017, p. 38).

Tem-se, assim, que quando ocorre a condenação em recurso do Ministério Público, o Estado brasileiro acaba, inevitavelmente, ofendendo uma garantia convencional.

Quando diante de tal situação, os Tribunais Superiores devem realizar o controle de convencionalidade da legislação brasileira, paralisando-a naquilo que for incompatível com a CADH e com a jurisprudência da Corte IDH. A respeito, tratando da prisão do depositário infiel, Ingo W. Sarlet leciona que "ficou evidenciado na decisão do STF sobre a proscrição — mediante um efeito 'paralisante' — da eficácia de toda e qualquer hipótese legal prevendo a prisão civil do depositário infiel, seja ela criada antes da aprovação do tratado, seja ela introduzida posteriormente".

Qual seria a melhor solução para a inconvencionalidade?

Ante a ausência de previsão legal, possível realizar uma aplicação analógica do artigo 594, §3º, do Código de Processo Penal, a fim de que o condenado seja submetido a novo julgamento perante o juízo de 1º grau. Tal posição será mais bem esclarecida em artigo futuro.

Para finalizar, questão que chama a atenção é que os casos da Corte IDH citados neste artigo raríssimas vezes foram levados aos Tribunais Superiores.

No Superior Tribunal de Justiça, quando se utiliza palavras-chave "Caso Mohamed" aparecem só três julgados, todos decisões monocráticas, os mesmos resultados quando se utiliza como pesquisa: "mohamed" e "argentina". Nenhuma referência aparece quando se busca por "Caso Norín Catrimán"; sete decisões monocráticas aparecem quando se busca por "Caso Herrera Ulloa".

No STF, quando se utiliza palavas-chave "Caso Mohamed" aparecem nove acórdãos e uma decisão monocrática (sendo que um acórdão dizia respeito a outro julgado). Quando se busca por "Caso Norín Catrimán" aparece um julgado; quatorze acórdãos e trinta e duas decisões monocráticas quando se busca por "Caso Herrera Ulloa".

Não se pode aprofundar no conteúdo das decisões encontradas, mas uma breve análise pelas ementar permite averiguar que a grande maioria diz respeito à temas diversos do recurso.

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Referências

BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos recursos penais. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

CAMBI, Eduardo; PORTO, Leticia Andrade. Ministério Público resolutivo e a proteção dos direitos humanos. Coleção Ministério Público Resolutivo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2021.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gelman Vs. Uruguay. Supervisión de Cumplimiento de Sentencia. Resolución de la Corte Interamericana de Derechos Humanos de 20 de marzo de 2013.

_____. Caso Herrera Ulloa Vs. Costa Rica. Sentença de 02.07.2004.

_____. Caso Mohamed Vs. Argentina. Sentença de 23.11.2012.

_____. Caso Norín Catrimán E Outros (Dirigentes, Membros E Ativista Do Povo Indígena Mapuche) Vs. Chile. Sentença de 29.05.2014.

RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

SARLET, Ingo Wolfgang. Controle de convencionalidade dos tratados internacionais. disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-abr-10/direitos-fundamentais-controle-convencionalidade-tratados-internacionais.).

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