Opinião

A justa causa prospectiva no processo penal

Autor

  • Gabriel Cardoso Cândido

    é advogado criminalista formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e discente do programa de pós-graduação em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

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24 de janeiro de 2023, 7h14

As provas apontadas pela acusação, se eventualmente produzidas, devem necessariamente possuir o condão de condenar o réu, caso contrário, a inicial acusatória deve ser rejeitada por ausência de justa causa em sua modalidade prospectiva.

A justa causa prospectiva no processo penal impede que o Ministério Público ou o querelante indiquem uma produção probatória ineficaz, sem a expectativa e a possibilidade de provar licitamente a respectiva narrativa. Deve-se considerá-la no mesmo ato da análise da justa causa retrospectiva (prova da materialidade e indícios de autoria), haja vista possuírem a mesma finalidade: "impedir o uso abusivo do direito de acusar e os desmandos contra o direito de liberdade pessoal" [1].

Exemplo: o Ministério Público na denúncia indica apenas a oitiva da vítima e a oitiva de um familiar da vítima como os meios de prova a serem produzidos. Sabe-se que nem a palavra da vítima [2] nem a palavra do informante [3] (no caso, o familiar) são provas que por si só podem ensejar uma condenação, visto que ambas não prestam o compromisso de dizer a verdade e, por consequência, não cometem o crime de falso testemunho, ou seja, podem mentir sem que haja qualquer sanção.

Ainda se no exemplo acima as oitivas corroborarem a narrativa da denúncia, não haveria um lastro probatório para ser deferida a pretensão acusatória, ora constatada a ausência de justa causa prospectiva.

Ressalta-se que essa perspectiva processual deve incidir independentemente da gravidade do delito objeto da acusação, aplicando-se o crivo da justa causa prospectiva inclusive aos crimes com um grande clamor social, casos de violência doméstica, crimes contra a dignidade sexual e outros crimes graves contra a pessoa e contra os direitos humanos. Apesar de reiterados julgamentos em sentido contrário, a prática de rebaixamento do standart probatório de acordo com o tipo do crime está em completo desacordo com o processo penal democrático [4] e com a garantia básica do acusado em ter um julgamento justo, fundamentado em provas lícitas, que possam comprovar a autoria do delito.

O STJ recentemente se manifestou sobre a necessidade de se realizar o juízo de justa causa não apenas sob a ótica retrospectiva, mas também sob uma ótica prospectiva:

"(…) tradicionalmente, a justa causa é analisada apenas sob a ótica retrospectiva, voltada para o passado, com vista a quais elementos de informação foram obtidos na investigação preliminar já realizada. Todavia, a justa causa também deve ser apreciada sob uma ótica prospectiva, com o olhar para o futuro, para a instrução que será realizada, de modo que se afigura possível incremento probatório que possa levar ao fortalecimento do estado de simples probabilidade em que o juiz se encontra quando do recebimento da denúncia" (Ação Penal nº 989  DF  2021/0061809-9).

Por fim, conforme Bizzotto, "não é admissível fechar os olhos para determinadas situações cujo nascimento do processo penal ou a sua manutenção tornam o caminhar processual uma rota sem destino plausível" [5], em se mantendo a ação penal natimorta viola-se a dignidade do acusado e da sociedade. A dignidade do acusado é violada, uma vez que irá suportar todos os ônus de responder uma ação penal, principalmente a estigmatização. A dignidade da sociedade, por sua vez, é vilipendiada à medida que a ação penal infrutífera desde o início acarretará custos desnecessários à administração pública.

 


[1] BIZZOTO, Alexandre. Lições de direito processual penal. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019, p.98.

[2] "(…) é natural que a palavra da vítima tenha menor valor probatório e, principalmente, menor credibilidade, por seu profundo comprometimento com o fato. Logo, apenas a palavra da vítima jamais poderá justificar uma sentença condenatória. Mais do que vale o resto do contexto probatório, e, se não houver prova robusta para além da palavra da vítima, não poderá o réu ser condenado". (LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 504).

[3] Informantes "são aquelas pessoas que não prestam o compromisso de dizer a verdade e, portanto, não podem responder pelo delito de falso testemunho (até porque, a rigor, não são testemunhas, mas meros informantes). Por não prestarem compromisso, não entram no limite numérico das testemunhas, não sendo computadas. Seu depoimento deve ser valorado com reservas, conforme os motivos que lhes impeçam de ser compromissadas". (LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 524).

[4] LOPES JUNIOR, Aury. Provas Testemunhais em Foco: Provas Dependentes da Memória. Bahia: Instituto Penal de Direito Processual Penal, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FEEXFPiLqmY&t=356s. Acesso em 7 jan 2023.

[5] BIZZOTO, Alexandre. Lições de direito processual penal. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019, p.100.

Autores

  • é estagiário em Direito Criminal no escritório Santiago & Pimentel Advogados, monitor de Prática Penal da disciplina "Estágio Supervisionado IV" na PUC-Rio, discente da graduação de Direito da PUC-Rio e pesquisador no Programa de Educação Tutorial do Departamento de Direito da PUC-Rio.

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