Público X Privado

Intervenção federal: histórico, requisitos e limites

Autores

  • Luis Inácio Lucena Adams

    é sócio de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown ex-advogado geral da União ex-procurador Geral da Fazenda Nacional pós-graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e bacharel pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

  • Mauro Pedroso Gonçalves

    é sócio de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown doutorando e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) professor de Direito Processual Civil na especialização da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) e coordenador regional do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) em Brasília.

  • Caio Viana de Barros Thomé

    é associado de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo (USP).

  • Carolina Marcondes Fraga

    é estagiária de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown e bacharelanda em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo.

23 de janeiro de 2023, 8h00

No fatídico dia 8/1/2023, por meio do Decreto nº 11.377/2023 e na forma do artigo 34, III, da Constituição da República de 1988, instaurou-se a intervenção federal no Distrito Federal, limitada à "área de segurança pública". A finalidade dessa intervenção é "pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública, marcado por atos de violência e invasão de prédios públicos", decorrentes de ataques que ocorreram aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Spacca
A Constituição da República de 1988 preocupou-se em disciplinar, de maneira taxativa, as hipóteses em que medidas excepcionais podem ser tomadas, para impedir o autoritarismo, que têm aflorado no tempo presente, mas se encontra lamentavelmente emaranhado na nossa história de pouco mais de cinco séculos [1]. Afinal, com a justificativa de pretensa necessidade de manutenção da ordem, o estado de exceção foi utilizado para legitimar violações a direitos fundamentais, e.g., na ditadura de Floriano Peixoto em 1891; na Revolução de 1930 e no Estado Novo de 1937, durante a era Vargas; na ditadura militar de 1964.

Sempre que são mobilizados os instrumentos do chamado "sistema constitucional de crises", dentre os quais se encontram a intervenção federal, o estado de sítio e o de defesa, muitas são as precauções que devem ser tomadas pela administração pública.

A intervenção federal, por sua vez, conforme lição de José Afonso da Silva, "é a antítese da autonomia" [2] das unidades federativas, que é um dos princípios basilares da República brasileira.

Com efeito, o artigo 34 da Constituição de 1988 é expresso quanto ao fato de a intervenção federal ser uma medida de exceção: "A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: […]". Por isso, só pode ocorrer se configurada uma das hipóteses taxativas que, em linhas gerais, relacionam-se a risco à ordem jurídica e ao Estado Democrático de Direito (incisos I a IV), grave violação de direitos humanos e políticos (inciso VII) ou para restabelecer o equilíbrio fiscal de uma unidade federativa (inciso V).

Além disso, a decretação de intervenção federal é de competência privativa do presidente da República (artigo 84, X, da Constituição). Porém, no prazo de 24 horas, o Congresso Nacional deve autorizar a intervenção, apreciando se o decreto observa todos os requisitos e preceitos constitucionais. Além dessa apreciação pelo Congresso Nacional, há casos específicos em que se exige a análise do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior Eleitoral ou de representação da Procuradoria-Geral da República, nos termos do artigo 36 da Constituição [3].

A intervenção federal atualmente decretada no Distrito Federal fundamentou-se no inciso III do artigo 34 da Constituição para "pôr termo a grave comprometimento da ordem pública". O próprio governador do Distrito Federal (Ibaneis Rocha) não se opôs a essa intervenção, pois se pronunciou em suas redes sociais, em 8/1/2023, mesmo dia em que os ataques ocorreram e a intervenção foi decretada, no sentido de que o governo do Distrito Federal estava à disposição do governo federal. Adicionalmente, observou-se o cumprimento do requisito de submissão do decreto ao Congresso Nacional, o qual foi devidamente aprovado na sequência.

A revelar a excepcionalidade do instituto sob a égide da Constituição da República de 1988, a presente intervenção federal é apenas a terceira decretada no Brasil desde a redemocratização. Durante os primeiros 30 anos de sua vigência, nenhuma intervenção federal havia sido efetivada, apesar de algumas tentativas.

Em fevereiro de 2010, por exemplo, a Procuradoria-Geral da República protocolou pedido de intervenção federal no Distrito Federal, com base no artigo 34, VII, "a", da Constituição [4], sob o argumento de que precisava ser contido suposto "esquema de corrupção que envolveria o ex-Governador do DF, alguns Deputados Distritais e suplentes, investigados pelo STJ, e cujo concerto estaria promovendo a desmoralização das instituições públicas" [5]. Contudo, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, julgou improcedente o pedido, pois "o perfil do momento político-administrativo do Distrito Federal já não autorizaria a decretação de intervenção federal, a qual se revelaria, agora, inadmissível perante a dissolução do quadro que se preordenaria a remediar" [6].

Já no ano de 2018, durante o governo do ex-presidente Michel Temer, duas intervenções federais foram decretadas: uma no Rio de Janeiro, implementada pelo Decreto nº 9.288/2018; e outra em Roraima, instaurada pelo Decreto nº 9.602/2018.

A intervenção federal no Rio de Janeiro foi decretada em 16/2/2018, com o objetivo de pôr termo a grave comprometimento da ordem pública (artigo 34, III, da Constituição). Naquela ocasião, o governador do Rio de Janeiro (Luiz Fernando Pezão) concordou com a intervenção ao declarar, em discurso realizado na data da assinatura do decreto, a total incapacidade de solucionar a crise de segurança pública deflagrada por conflitos envolvendo organizações criminosas e milícias.

A intervenção ficou limitada à área de segurança pública do Rio de Janeiro, tendo sido nomeado, para o cargo de interventor, o general do Exército Braga Netto, que, subordinado ao presidente da República, assumiu o controle operacional dos órgãos de segurança pública do estado. Importante notar que, de acordo com a Nota Técnica Conjunta nº 01/2018 do Ministério Público Federal, a nomeação de militar para o cargo de interventor não confere caráter militar à intervenção, pois "a natureza da função a ser exercida pelo interventor é aquela de Governador de Estado, por definição constitucional um cargo de natureza civil" [7].

A intervenção federal em Roraima ocorreu em 8/12/2018 e também teve a aquiescência da então governadora. As circunstâncias que caracterizaram o grave comprometimento da ordem pública consistiam em crise na segurança pública, com a paralisação de policiais civis por 72 horas, bem como no sistema penitenciário, caracterizada por risco de rebeliões. Somado a isso, era necessário o desenvolvimento de política de acolhida humanitária a imigrantes venezuelanos.

Diferentemente do que ocorreu no Rio de Janeiro, na qual a intervenção limitou-se à área da segurança pública, a intervenção no estado de Roraima foi mais ampla, abrangendo todo o Poder Executivo estadual, afastando-se a governadora e nomeando-se, como interventor, Antonio Denarium, civil que foi posteriormente eleito, em 2018, para assumir o cargo de governador e reeleito em 2022.

Além de a intervenção federal apenas ser possível em circunstâncias de extrema necessidade, essa, após decretada, também precisa respeitar os limites impostos pela Constituição da República de 1988.

O principal limite à intervenção federal consiste na necessidade de preservação dos direitos fundamentais. Enquanto o estado de defesa e o estado de sítio permitem medidas coercitivas, com a restrição de direitos e garantias (artigos 136 a 139 da Constituição), não há essas medidas na intervenção (artigos 34 a 36 da Constituição).

Outros limites devem ser estabelecidos pelo próprio decreto de intervenção, que, nos termos do artigo 36, § 1º, da Constituição da República de 1988, "especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor".

O Decreto nº 11.377/2023, ora em vigor, cumpriu tais requisitos. Assim como a intervenção federal no Rio de Janeiro de 2018, a intervenção no Distrito Federal limita-se à área de segurança pública, de modo que "as atribuições previstas no art. 117-A da Lei Orgânica do Distrito Federal que não tiverem relação direta ou indireta com a segurança pública permanecerão sob a titularidade do Governador do Distrito Federal" (artigo 1º, §§ 1º e 4º). O referido decreto também estabeleceu, em seu artigo 1º, que a medida deverá cessar em 31/1/2023. Por fim, Ricardo Cappelli, que era, até então, secretário-executivo do Ministério da Justiça, foi nomeado como interventor.

Dessa forma, verifica-se que a intervenção federal é um mecanismo que privilegia certos preceitos constitucionais (soberania, ordem pública etc.) em sacrifício de outros (não-intervenção, federalismo etc.). Para que seja regularmente implementada, a Constituição estabelece requisitos e limites à efetivação dessa medida, que devem ser rigorosamente observados "para restauração da harmonia institucional, mas sempre em caráter excepcional" [8].

 


[1] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. e-Book.

[2] SILVA, José Afonso da. O Estado-membro na constituição federal. In: Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional, vol. 3/2011. p. 593-614.

[3] "Art. 36. A decretação da intervenção dependerá:

I – no caso do art. 34, IV, de solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo coacto ou impedido, ou de requisição do Supremo Tribunal Federal, se a coação for exercida contra o Poder Judiciário;

II – no caso de desobediência a ordem ou decisão judiciária, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral;

III – de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do Procurador-Geral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

IV – (Revogado pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

§ 1º. O decreto de intervenção, que especificará a amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, será submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembléia Legislativa do Estado, no prazo de vinte e quatro horas.

§ 2º. Se não estiver funcionando o Congresso Nacional ou a Assembleia Legislativa, far-se-á convocação extraordinária, no mesmo prazo de vinte e quatro horas.

§ 3º. Nos casos do art. 34, VI e VII, ou do art. 35, IV, dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional ou pela Assembleia Legislativa, o decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade.

§ 4º. Cessados os motivos da intervenção, as autoridades afastadas de seus cargos a estes voltarão, salvo impedimento legal.

[4] "Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: […]

VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:

a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; […]"

[5] STF, Tribunal Pleno, IF 5.179, rel. min. Cezar Peluso, j. 30/6/2010.

[6] Idem.

[7] PGR-00072549/2018.

[8] CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 802.

Autores

  • é ex-ministro-chefe da Advocacia-Geral da União.

  • é sócio de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown, doutorando e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professor de Direito Processual Civil na especialização da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) e coordenador regional do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) em Brasília.

  • é associado de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP).

  • é estagiária de Tauil & Chequer Advogados associado a Mayer Brown e bacharelanda em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo.

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