Um convite à reflexão sobre uma nova ética para a linguagem jurídica
22 de janeiro de 2023, 8h00
Peço licença ao leitor para expressar o tema da coluna de hoje por meio de uma pergunta, que veicula também uma preocupação: será que nós, os operadores do Direito, estamos sendo minimamente compreendidos pelo cidadão destinatário do serviço público de prestação da justiça?
Há tempos perturba-me ver que a maioria das pessoas tem grande dificuldade para entender o diálogo processual. Mais recentemente, comecei a questionar-me se nós, os operadores do Direito, não estamos falhando em nosso compromisso ético de promoção da cidadania, e se esta falha tem relação com o emprego de uma linguagem inacessível à população.
Não pretendo dar tratamento simplista a uma questão profunda. Evidenciando o quão sofisticado é o desafio da comunicação jurídica, já disse Sidinei Agostinho Beneti [1]: "a linguagem processual é a mais complexa, é a linguagem da polêmica, porque necessariamente contém a contradição dialética. Na linguagem do contraditório processual a transmissão da mensagem complica-se extraordinariamente".
O fato é que, aparentemente, o diálogo jurídico não tem acompanhado as mudanças comportamentais observadas nas últimas décadas.
Até alguns anos atrás, os documentos processuais eram praticamente inacessíveis à população. As decisões judiciais e as petições eram manuseadas quase exclusivamente por profissionais da área jurídica e a circulação dessas informações ocorria por meio de cadernos físicos, os famosos autos processuais.
Nos dias de hoje, instantes após a movimentação processual, inclusive em um julgamento do STF, o respectivo documento pode ser rapidamente exportado do processo. Pronto! Lá está o cidadão comum, com seu telefone celular, diante de um texto jurídico importante para a sua vida, mas fora do seu alcance linguístico.
A Constituição de 1988, que carrega a inspiradora marca da cidadania, parece desejar que a atuação estatal seja voltada para a emancipação popular, uma emancipação que pressupõe a compreensão básica das leis que regem o país e dos atos estatais que concretizam o ordenamento jurídico.
Enquanto isso, a comunicação jurídica parece não ter deixado o século XIX, seguindo dominada por um excessivo número de expressões protocolares que não exercem uma função textual intrínseca e servem apenas como elemento de estilo. Muitas vezes, a mesma informação poderia ser transmitida de outra forma, mais simples, sem prejuízo para a compreensão.
Alguns exemplos podem ilustrar. Antes, porém, esclareço: venho em missão de paz! Este breve exercício não tem a pretensão de marginalizar nenhuma palavra da Língua Portuguesa ou recriminar quem prefere um estilo mais sofisticado na escrita. Trata-se de um simples convite à reflexão, a partir da ideia de que a simplificação da linguagem contribui para a democratização do debate jurídico e fortalece a cidadania. Presumida a disposição do leitor, passo ao breve exercício — claramente exagerado, para destacar o fenômeno.
Em uma manifestação forense típica, a petição inicial torna-se peça exordial ou proemial, na qual o autor da ação pugna pela condenação do réu. Tem início a lide, querela, contenda ou cizânia. O tema debatido aparece em testilha e, na contestação, outrem surge redarguindo os argumentos, aqui e alhures. Outrossim, superada a fase do contraditório, fica autorizada a prolação da sentença, que causa espécie ao derrotado e vira o decisum objurgado. Os argumentos sobejam nos autos. O posicionamento de uma autoridade intelectual torna-se o seu escólio, e o fundamento, seu espeque. A penitenciária vira ergástulo público. O Código Penal transforma-se em Codex Repressivo. A Constituição Federal, maior alvo de todos, torna-se Carta Magna, Diploma Fundamental, Lei Maior, Carta da Primavera ou Pergaminho Superior.
A compreensão deste peculiar vocabulário não costuma ser um problema para quem tem formação jurídica. Porém, as expressões destacadas são exemplos de barreiras comunicativas para a população em geral.
Segundo o professor Beneti [2], tal complexidade é desnecessária em um texto jurídico. "O melhor é denominar os institutos pelos nomes que possuem, como denúncia, mesmo, petição inicial, sentença, decreto, ação possessória, e assim por diante, em vez de tentar a invenção de pretensos sinônimos alegóricos."
Beneti [3] ainda destacou que "a decisão judicial legitima-se inclusive pela linguagem utilizada". Observou: "a sentença deve conter manifestação do juiz como se por seu intermédio falasse o povo, de modo que será bom que o povo compreenda a decisão".
Em linha semelhante, sustentou José R. Nalini [4]: "constitui dever ético do juiz para com o semelhante habilitá-lo a ter direitos, a possuir a exata noção de que é titular de direitos fundamentais".
Na prática, as barreiras de linguagem existentes no diálogo processual oprimem as pessoas leigas, impedem a sua emancipação cidadã e, nos casos mais extremos, comprometem a sua dignidade: se a Constituição traz a cidadania como símbolo e a dignidade como fundamento, existe uma relação direta entre a emancipação do indivíduo e a promoção da dignidade. Vejamos alguns exemplos práticos.
Parece razoável dizer que um consumidor que perdeu uma disputa judicial tem interesse no conteúdo da sentença. A ausência de uma explicação direta e compreensível sobre a questão gera a sensação de desamparo institucional, inconformidade, injustiça ou revolta.
A pessoa que teve negado pelo juiz um pedido de aposentadoria também tem o direito de entender minimamente os fundamentos da decisão. Isso serve não apenas para legitimar o ato, mas para que esta pessoa consiga planejar o próprio futuro, buscando preencher os requisitos para a obtenção do benefício. Além disso, permite que a pessoa transfira o conhecimento obtido sobre as exigências legais para a aposentadoria, em um claro exercício de emancipação coletiva sobre este importante direito.
O mesmo vale para um empresário, que, ao submeter uma questão contratual ou tributária a julgamento, merece receber uma sentença minimamente ao seu alcance, inclusive para poder nortear suas futuras decisões comerciais.
Luiz A. Nunes [5] analisou pesquisas que revelam índices elevados de insatisfação social quanto à atividade jurisdicional, concluindo que o julgamento negativo da população está relacionado à "dificuldade de entender o que se passa em termos processuais no Judiciário".
O Judiciário exerce função de destaque na construção do ambiente para o exercício das liberdades existenciais. É adequada, então, a análise de Nalini [6], segundo a qual "o juiz, agente estatal, tem o dever de construir a dignidade de seu próximo".
Segundo Miguel Reale [7], "o juiz que não está atualizado com a problemática do seu tempo não está em dia com o seu dever ético", pois o Direito deve ser vivido "em sua circunstancialidade cultural".
Ao negar a necessidade de evoluir em sintonia com o seu tempo, o jurista frustra o papel que a sociedade lhe confia. E se a linguagem é ferramenta nuclear para o desempenho da função — pois o processo judicial é essencialmente comunicativo — impõe-se a este profissional o dever de comunicar-se como alguém que acompanha os movimentos culturais de sua época.
[1] BENETI, Sidnei Agostinho. Deontologia da Linguagem do Juiz. In: NALINI, José Renato (coord.). Curso de Deontologia da Magistratura. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 115.
[2] BENETI, Sidnei Agostinho. Op. Cit., p. 131.
[3] BENETI, Sidnei Agostinho. Op. Cit., p. 139.
[4] NALINI, José Renato. O Juiz e a Ética no Processo. In: NALINI, José Renato. Uma Nova Ética para o Juiz. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 105.
[5] NUNES, Luiz Antonio. O Poder Judiciário, a Ética e o papel do Empresariado. In: NALINI, José Renato (Coord.). Uma Nova Ética para o Juiz. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 126.
[6] NALINI, José Renato. Op. Cit., p. 104.
[7] REALE, Miguel. A Ética do Juiz na Cultura Contemporânea. In: NALINI, José Renato (Coord.). Uma Nova Ética para o Juiz. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, pp. 139 e 144.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!