Segunda Leitura

Um convite à reflexão sobre uma nova ética para a linguagem jurídica

Autor

  • Charles Giacomini

    é juiz federal em Itajaí (SC) mestre em Ciência Jurídica (Univali) especialista em Direito Público professor de Direito Econômico Direito Internacional e formação humanística na Escola da Magistratura Federal de Santa Catarina (Esmafesc) — onde também é membro do Conselho de Ensino — e professor de Direito Tributário em cursos preparatórios e pós-graduações.

22 de janeiro de 2023, 8h00

Peço licença ao leitor para expressar o tema da coluna de hoje por meio de uma pergunta, que veicula também uma preocupação: será que nós, os operadores do Direito, estamos sendo minimamente compreendidos pelo cidadão destinatário do serviço público de prestação da justiça?

Há tempos perturba-me ver que a maioria das pessoas tem grande dificuldade para entender o diálogo processual. Mais recentemente, comecei a questionar-me se nós, os operadores do Direito, não estamos falhando em nosso compromisso ético de promoção da cidadania, e se esta falha tem relação com o emprego de uma linguagem inacessível à população.

Não pretendo dar tratamento simplista a uma questão profunda. Evidenciando o quão sofisticado é o desafio da comunicação jurídica, já disse Sidinei Agostinho Beneti [1]: "a linguagem processual é a mais complexa, é a linguagem da polêmica, porque necessariamente contém a contradição dialética. Na linguagem do contraditório processual a transmissão da mensagem complica-se extraordinariamente".

O fato é que, aparentemente, o diálogo jurídico não tem acompanhado as mudanças comportamentais observadas nas últimas décadas.

Até alguns anos atrás, os documentos processuais eram praticamente inacessíveis à população. As decisões judiciais e as petições eram manuseadas quase exclusivamente por profissionais da área jurídica e a circulação dessas informações ocorria por meio de cadernos físicos, os famosos autos processuais.

Nos dias de hoje, instantes após a movimentação processual, inclusive em um julgamento do STF, o respectivo documento pode ser rapidamente exportado do processo. Pronto! Lá está o cidadão comum, com seu telefone celular, diante de um texto jurídico importante para a sua vida, mas fora do seu alcance linguístico.

A Constituição de 1988, que carrega a inspiradora marca da cidadania, parece desejar que a atuação estatal seja voltada para a emancipação popular, uma emancipação que pressupõe a compreensão básica das leis que regem o país e dos atos estatais que concretizam o ordenamento jurídico.

Enquanto isso, a comunicação jurídica parece não ter deixado o século XIX, seguindo dominada por um excessivo número de expressões protocolares que não exercem uma função textual intrínseca e servem apenas como elemento de estilo. Muitas vezes, a mesma informação poderia ser transmitida de outra forma, mais simples, sem prejuízo para a compreensão.

Alguns exemplos podem ilustrar. Antes, porém, esclareço: venho em missão de paz! Este breve exercício não tem a pretensão de marginalizar nenhuma palavra da Língua Portuguesa ou recriminar quem prefere um estilo mais sofisticado na escrita. Trata-se de um simples convite à reflexão, a partir da ideia de que a simplificação da linguagem contribui para a democratização do debate jurídico e fortalece a cidadania. Presumida a disposição do leitor, passo ao breve exercício — claramente exagerado, para destacar o fenômeno.

Em uma manifestação forense típica, a petição inicial torna-se peça exordial ou proemial, na qual o autor da ação pugna pela condenação do réu. Tem início a lide, querela, contenda ou cizânia. O tema debatido aparece em testilha e, na contestação, outrem surge redarguindo os argumentos, aqui e alhures. Outrossim, superada a fase do contraditório, fica autorizada a prolação da sentença, que causa espécie ao derrotado e vira o decisum objurgado. Os argumentos sobejam nos autos. O posicionamento de uma autoridade intelectual torna-se o seu escólio, e o fundamento, seu espeque. A penitenciária vira ergástulo público. O Código Penal transforma-se em Codex Repressivo. A Constituição Federal, maior alvo de todos, torna-se Carta Magna, Diploma Fundamental, Lei Maior, Carta da Primavera ou Pergaminho Superior.

A compreensão deste peculiar vocabulário não costuma ser um problema para quem tem formação jurídica. Porém, as expressões destacadas são exemplos de barreiras comunicativas para a população em geral.

Segundo o professor Beneti [2], tal complexidade é desnecessária em um texto jurídico. "O melhor é denominar os institutos pelos nomes que possuem, como denúncia, mesmo, petição inicial, sentença, decreto, ação possessória, e assim por diante, em vez de tentar a invenção de pretensos sinônimos alegóricos."

Beneti [3] ainda destacou que "a decisão judicial legitima-se inclusive pela linguagem utilizada". Observou: "a sentença deve conter manifestação do juiz como se por seu intermédio falasse o povo, de modo que será bom que o povo compreenda a decisão".

Em linha semelhante, sustentou José R. Nalini [4]: "constitui dever ético do juiz para com o semelhante habilitá-lo a ter direitos, a possuir a exata noção de que é titular de direitos fundamentais".

Na prática, as barreiras de linguagem existentes no diálogo processual oprimem as pessoas leigas, impedem a sua emancipação cidadã e, nos casos mais extremos, comprometem a sua dignidade: se a Constituição traz a cidadania como símbolo e a dignidade como fundamento, existe uma relação direta entre a emancipação do indivíduo e a promoção da dignidade. Vejamos alguns exemplos práticos.

Parece razoável dizer que um consumidor que perdeu uma disputa judicial tem interesse no conteúdo da sentença. A ausência de uma explicação direta e compreensível sobre a questão gera a sensação de desamparo institucional, inconformidade, injustiça ou revolta.

A pessoa que teve negado pelo juiz um pedido de aposentadoria também tem o direito de entender minimamente os fundamentos da decisão. Isso serve não apenas para legitimar o ato, mas para que esta pessoa consiga planejar o próprio futuro, buscando preencher os requisitos para a obtenção do benefício. Além disso, permite que a pessoa transfira o conhecimento obtido sobre as exigências legais para a aposentadoria, em um claro exercício de emancipação coletiva sobre este importante direito.

O mesmo vale para um empresário, que, ao submeter uma questão contratual ou tributária a julgamento, merece receber uma sentença minimamente ao seu alcance, inclusive para poder nortear suas futuras decisões comerciais.

Luiz A. Nunes [5] analisou pesquisas que revelam índices elevados de insatisfação social quanto à atividade jurisdicional, concluindo que o julgamento negativo da população está relacionado à "dificuldade de entender o que se passa em termos processuais no Judiciário".

O Judiciário exerce função de destaque na construção do ambiente para o exercício das liberdades existenciais. É adequada, então, a análise de Nalini [6], segundo a qual "o juiz, agente estatal, tem o dever de construir a dignidade de seu próximo".

Segundo Miguel Reale [7], "o juiz que não está atualizado com a problemática do seu tempo não está em dia com o seu dever ético", pois o Direito deve ser vivido "em sua circunstancialidade cultural".

Ao negar a necessidade de evoluir em sintonia com o seu tempo, o jurista frustra o papel que a sociedade lhe confia. E se a linguagem é ferramenta nuclear para o desempenho da função — pois o processo judicial é essencialmente comunicativo — impõe-se a este profissional o dever de comunicar-se como alguém que acompanha os movimentos culturais de sua época.

 


[1] BENETI, Sidnei Agostinho. Deontologia da Linguagem do Juiz. In: NALINI, José Renato (coord.). Curso de Deontologia da Magistratura. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 115.

[2] BENETI, Sidnei Agostinho. Op. Cit., p. 131.

[3] BENETI, Sidnei Agostinho. Op. Cit., p. 139.

[4] NALINI, José Renato. O Juiz e a Ética no Processo. In: NALINI, José Renato. Uma Nova Ética para o Juiz. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 105.

[5] NUNES, Luiz Antonio. O Poder Judiciário, a Ética e o papel do Empresariado. In: NALINI, José Renato (Coord.). Uma Nova Ética para o Juiz. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 126.

[6] NALINI, José Renato. Op. Cit., p. 104.

[7] REALE, Miguel. A Ética do Juiz na Cultura Contemporânea. In: NALINI, José Renato (Coord.). Uma Nova Ética para o Juiz. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, pp. 139 e 144.

Autores

  • é juiz federal substituto na 3º Vara Federal de Itajaí (SC), professor da Escola da Magistratura Federal de Santa Catarina (Esmafesc), mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali), coordenador do Centro de Solução de Conflitos (Cejuscon) na Justiça Federal de Itajaí e ex-defensor público do estado de SC.

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