Opinião

Todo racismo é racismo: Lei 14.532, identitarismo radical e o 'racismo reverso'

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21 de janeiro de 2023, 9h14

O racismo existe e precisa ser combatido. Infelizmente, teóricos da direita e da esquerda, em visões extremadas, acabam por dificultar a luta antirracista.

Muitos da direita não conseguem ver, ou admitir, o quanto temos de racismo no país. Preferem imputar tudo a uma visão míope da meritocracia e a problemas sociais. Em resumo, não sabem, não assumem ou não querem lidar com o problema racial.

Muitos da esquerda seguem um discurso identitário radical, se agradam da ideia do "nós contra eles", atacam o "sistema", a "branquitude" e promovem ideias análogas, capturando a questão eleitoral e ideologicamente. Preferem uma linha que segrega e investir na luta de raças, prima-irmã da luta de classes.

Lutar contra o racismo deve estar acima de ideologias, ser pauta do Estado, e não de governo, e tarefa de toda a sociedade.

A Lei 14.532/2023 deve ser aplaudida e celebrada pelos avanços que trouxe: tornou a ação penal pública incondicionada, assegurou que a vítima seja acompanhada de advogado ou defensor público, abordou os eventos esportivos, protegeu melhor os cultos religiosos, além de explicitar que eventos culturais (como os de humor) precisam ter limites.

Assim como celebramos os avanços, é preciso apontar onde correções são necessárias. Em paralelo, lembrar que espera-se do Judiciário isonômica proteção para todas as cores de pele e tradições religiosas.

O ponto que precisa de imediata correção é o artigo 20-C, que diz: "Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que, usualmente, não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência".

Este dispositivo levou algumas pessoas a sustentarem que a lei sufragou a tese de que "não há racismo reverso", ou seja, racismo de negros contra brancos.

Inconstitucionalidade do artigo 20-C
O artigo 20-C padece de três vícios de inconstitucionalidade material: 1) violação à independência funcional do juiz; 2) violação à igualdade material (artigo 5º da Constituição); e 3) tratamento desigual e discriminatório entre grupos (artigo 1º, III, e artigo 3º, III e IV, da Constituição).

O princípio da independência é essencial na atividade judicante, o juiz necessita de liberdade para interpretar os casos seguindo a lei e não o interesse de grupos ou ideologias. Assim, ao vincular como o juiz deve interpretar certo dispositivo, sob dado viés identitário/ideológico, o texto atenta contra tal princípio, decorrente do artigo 93 c/c artigos 95 e 127, § 1º, da CF. Em seguida, há violação à igualdade, gerando tratamento desigual e discriminatório, o que atenta contra os arts. 1º, III, 3º, III e IV, e 5º da CF.

Além disso, há um problema de inconvencionalidade, porque a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (adotada pelo Brasil e recentemente promulgada pelo Decreto 10.932/2022) não agasalha essa redução de proteção aos cidadãos que fazem parte das maiorias. Essa redução, trazida pelo artigo 20-C, vai contra o referido tratado.

Agravamento da tensão racial
Ser abissalmente menos frequente que o racismo contra negros não significa que não haja racismo contra brancos ou que este possa ser relativizado. Impedir racismo contra judeus, orientais, brancos etc. não desmerece o passado e problemas sociais que temos. Estes são lamentáveis, mas não impedem ou justificam negar proteção aos cidadãos não negros. Entende-se eventual ressentimento, fruto de muita dor acumulada, mas não se pode abrir espaço para uma pessoa discriminar a outra em razão da pele. A sociedade deve rejeitar todo e qualquer tratamento distinto em razão de cor da pele. Qualquer pele.

O antropólogo e professor Antonio Risério, em artigo, cita que ataques de negros contra brancos, asiáticos e judeus acontecem com frequência pelo mundo e que não são tratados pela mídia com a mesma relevância do racismo sofrido por negros, de modo que há uma falsa ideia de que a opressão traumática que estes grupos sofreram faria com que não fossem aptos a praticar racismo. Em outras palavras, racismo é racismo e pode ser praticado e sofrido por qualquer pessoa, independente de cor. Deve ser combatido sempre, sendo a pessoa atacada negra, branca, asiática, azul, amarela.

Risério explica: "O dogma que reza que pretos são oprimidos e não dispõem de poder econômico ou político para institucionalizar sua hostilidade antibranca é uma tolice. Ninguém precisa ter poder para ser racista". O professor prossegue defendendo que "a visão atualmente dominante marcada por ignorância e fraudes históricas argumenta que o racismo branco do passado desculpa o racismo preto do presente. Mas o racismo é inaceitável em qualquer circunstância". Ele cita exemplos de racismo preto antijudaico e contra asiáticos, chamados de "macacos amarelos".

Risério acrescenta que "o retorno à loucura supremacista em movimentos negros aparece agora como discurso de esquerda". Essas ideias já estão no Brasil. Muitas postagens nas redes sociais mostram o agravamento desse viés belicoso.

Se não houver mudança de rumos, e combate à cultura de segregação e do "nós contra eles", terminaremos por importar o grau de tensão racial que há nos EUA.

A Constituição fala explicitamente em solução pacífica das controvérsias e que temos que trabalhar pela união de todos e pela fraternidade.

O artigo 20-C, as maiorias e a paz social
Quem redigiu o polêmico artigo 20-C talvez de fato tenha querido inserir no ordenamento jurídico a exclusão do chamado "racismo reverso" e ainda foi além.

Não bastasse diferenciar tipos de racismo e querer dar "alvará" para um deles, foram criados outros dois problemas: 1) distinção entre minorias e maiorias; 2) inclusão de atividades esportivas, religiosas e culturais, com suas consequências.

Sobre o item 1, a Constituição e o tratado internacional que adotamos não acolhem essa distinção. Não há como inserir em lei esse postulado ideológico uma vez que ele é discriminador das maiorias. Aceitar que estas possam ser assediadas, além de imoral e incoerente, é contrário aos princípios constitucionais e coloca postulados ideológicos acima de tudo o que se produziu até hoje sobre isonomia e busca da fraternidade.

O objetivo de que o amor vença e de que haja pacificação social não ganha nada com a exclusão das maiorias de proteção da lei. Se isso ocorrer, o Estado não terá legitimidade moral para querer impedir a autodefesa, a retorsão imediata e até o exercício da justiça pelas próprias mãos. Seria péssimo dizer para as maiorias que não adianta elas procurarem o Judiciário.

O item 2 revela o quanto a ideia, típica de laboratório, não funciona na realidade, incentiva mais discriminações e cria problemas. O artigo 20-C, se for aceita a interpretação que lhe estão dando, teria que ser aplicado, por exemplo, à questão religiosa, presente no § 2º-A e o § 3º da lei.

Se a lei criminaliza tais ações contra minorias e excepciona a de maiorias, como ficaria a situação dos cristãos? Os cultos cristãos perderam a proteção apesar do artigo 5º, VI, da CF? Os cristãos, grupo majoritário, não podem mais ser vítimas de injúria religiosa? Que país seria esse onde um cristão pode ser punido por ofender, mas não haverá punição se ele for ofendido?

Paralelamente, pode ser suscitada uma espécie de censura prévia. Surgirá quem queira proibir os cristãos e as igrejas de proferir qualquer fala que seja entendida por pessoa ou grupo minoritário como algo "constrangedor", que cause "vergonha" ou "medo" etc. Imagine alguém falando em pecado, céu e inferno e sendo acusado de causar "medo". É um absurdo, mas suspeito que pessoas antirreligiosas tentarão emplacar essa tese.

A falta de bom senso desse artigo antimaiorias é demonstrada simplesmente por os católicos passarem a não ter proteção em um país majoritariamente católico. E os evangélicos, que são minoria em relação aos católicos, mas maioria em relação aos judeus? Faz sentido aceitar um artigo que produz esses questionamentos?

Outras perguntas. Os evangélicos são majoritariamente negros. Então um culto com evangélicos brancos pode ser objeto de injúria e um culto de evangélicos negros está protegido pela norma? E se brancos e pretos estiverem no mesmo culto? Um branco em cerimônia religiosa da umbanda e do candomblé é protegido pela norma? Ou precisa ser negro? E o negro católico, é protegido?

Por fim, vale indagar: o que a sociedade ganha ao diminuir a proteção de atividades esportivas, religiosas e culturais de maiorias? Quem ganha já digo: aqueles que desejam o "nós contra eles" e o caos, os que querem segregar e/ou atingir as maiorias.

A única conclusão que contribui para a paz social e o respeito aos artigos 3º, III e IV, e 5º, caput, da Constituição é entender pela inconstitucionalidade do artigo 20-C.

A Lei 14.532/2023, o identitarismo radical, as maiorias e o "racismo reverso"
Nessa linha, se a ideia da Lei nº 14.532/23 foi contribuir para o combate do racismo, não parece razoável ou juridicamente sustentável que o artigo 20-C dê imunidade ao racismo de grupos minoritários contra majoritários, de negros contra brancos, de índios contra negros e assim por diante.

A menos que seja uma lei apenas para sufragar as mais radicais teses raciais da esquerda, somada à tentadora ideia de impor a ditadura das minorias. Se for para enfrentar o racismo e promover igualdade entre todos (maiorias, minorias, brancos, negros) a interpretação da lei deve ser a de que ela quer criminalizar o racismo, não autorizar algumas de suas modalidades (ainda que de menor ocorrência).

A luta contra o racismo não se faz legalizando discriminações ou divisão entre tons de pele. As agressões e ofensas só tendem a aumentar caso se estabeleça essa tese. A ideia pode ser elegante numa sala de aula, mas viola a Constituição e é uma tragédia na vida real.

Se alguém quiser ter a interpretação de que não há "racismo reverso" porque minoria não comete crime contra maioria, também estaremos "autorizando" a prática de qualquer dos crimes ali previstos contra pessoas da maioria. O corolário é esse.

Igualmente, estará legalizado o colorismo que fez Fabiana Cozza ser "vetada" no musical sobre Ivone Lara por "não ser preta o suficiente".

Idem, a patrulha amorosa da "palmitagem", mais uma forma de quererem controlar a vida e decisões dos negros. A História conta sobre perseguir relações interraciais nos EUA e casar arianos apenas com arianos na Alemanha, mas os ideólogos do Brasil incentivam a mesma mentalidade.

Por fim, alguém pertencer a alguma maioria não é motivo para deixar de ser protegido contra discriminação. Uma coisa é a lei criar cotas, por exemplo, onde se pratica alguma política afirmativa para socorrer quem está em situação de inferioridade social e/ou econômica, trazendo-o para um patamar de oportunidades mais justas. Outra coisa, é dar a alguém da minoria o "direito" de discriminar alguém que pertence a uma maioria. Isso esgarça o tecido social.

Além disso, é teratológico um artigo sobre interpretação pretender revogar a lei. Então, ou a interpretação desse artigo está equivocada ou a intenção do legislador era mesmo dar "alvará" para racismo ser praticado por minorias. E, então, há inconstitucionalidade.

Se alguém discorda de tais teses identitárias radicais, costuma ser etiquetado como racista. Se for negro e não repetir acrítica e integralmente a pauta ideológica, é acusado de ser "capitão do mato" ou ofensas análogas. Isso é, aliás, racismo e confirma o quanto é difícil ser negro.

Espera-se que pessoas que sofrem racismo há décadas sejam as primeiras a serem contra judeus, brancos e asiáticos sofrerem ataques em razão da cor da pele; que não digam que isso "não é racismo" ou queiram que as vítimas procurem outro tipo penal que as defenda. Pior ainda é sustentar que em vez de o racismo ser crime contra a coletividade, como diz a lei, é crime praticado pela coletividade/sistema, o que reduz a responsabilidade individual. Se alguém tem, consciente ou inconscientemente, o desejo de retaliação, a solução é terapêutica, na psicologia, e não no Direito.

Independentemente da fonte e do destinatário, se "vem de", ou se "dirige-se a", pretos, brancos, asiáticos ou quem for, as situações de racismo/discriminação/preconceito não devem ser minimizadas. Algumas pessoas defendem que é possível falar "branco azedo", "branquelo", "japa", pois estes são maiorias "opressoras". Isso banaliza o mal. Chamar os mesmos atos por nomen iuris diferentes em razão da cor dos agentes é engenharia semântica para chancelar mais racismo. Não há um racismo para o branco e outro para o preto, apenas racismo de um ser humano contra outro.

O ponto é que a odiosa e longa escravidão do passado e os graves problemas do presente não justificam novas discriminações. Esses males não serão curados com a generalização de todos os brancos ou com a liberação do assédio contra pessoas em razão da cor ou religião.

Sobre religião, recentemente fizeram piadas com o sentimento religioso dos cristãos em um "Especial de Natal" no qual Jesus é usuário de drogas e Maria é uma prostituta. Achamos errado, mas se isso é protegido pela liberdade de expressão ou pelo direito ao humor, essa lógica tem que ser aplicada a piadas com todas as religiões. Isonomia.

O Judiciário dará tratamento diferenciado para questões raciais e religiosas? São valores igualmente presentes no artigo 5º da CF. Sobre liberdade de expressão, que seja escolhida a doutrina norte-americana ou a europeia, mas que a mesma régua seja usada para todos.

Ainda sobre religião, é ideológico querer dizer que há uma religião "preta". Há brancos e negros em todas as tradições religiosas.

Outro alerta: não podemos confundir racismo com proselitismo e com liberdade religiosa (ver o ROHC 134.682/BA).

Conclusão
Reafirmamos que não existe assédio "do bem", qualquer que seja o nome que se dê ao assédio. Não existe monopólio do racismo. Mesmo assim, não vemos condenações midiáticas nem notas de repúdio quando brancos, cristãos, conservadores etc. são vítimas dos mesmos atos que outros grupos. Essa é exatamente a proposta de alguns extremistas de esquerda e/ou raciais e do inconstitucional artigo 20-C.

Nelson Mandela e Martin Luther King Jr. declararam que brancos e pretos podem ser racistas, eles sabiam que todo racismo é errado. Eles diriam que, de fato, não existe racismo reverso, mas porque todo racismo é racismo, qualquer que seja a cor do racista, qualquer que seja a cor da vítima.

Autores

  • é desembargador Federal/TRF2, professor, escritor, mestre em Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho (UGF) e pós-graduado em Políticas Públicas e Governo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (EPPG/COPPE/UFRJ).

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