Opinião

O joio e o trigo: reflexões sobre culpabilidade e os atos de 8/1/2023

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21 de janeiro de 2023, 6h16

Ninguém minimamente sério há de questionar o caráter criminoso das condutas praticadas pelos vândalos que invadiram as sedes dos três poderes, durante nosso "Capitólio Tupiniquim".

O que vimos causa repulsa, revolta e indignação.  Vou mais longe, até.  Causa engulho em qualquer homem médio, cidadão minimamente instruído, à esquerda ou à direita.

E nossa revolta deita raízes em fatores que vão muito além do nosso apreço incondicional ao Estado constitucional de Direito, duramente conquistado após lancinante "via crucis" ditatorial.

É que aquelas pessoas, muitas das quais se julgam enquadradas no conceito de "cidadãos de bem", expressão que se tornou tão popular nos últimos quatro anos, encarnam o que há de pior em nós mesmos, a besta que todos trazemos desde o nascimento, que nos acompanhará até os estertores de nossa existência e que logramos "quase sempre" controlar, às vezes a duras penas.

Todos possuímos nossas convicções que, a depender do nível de evolução do indivíduo, podem ser mais ou menos flexíveis.  Uma vez contrariadas, podem deflagrar sentimentos bastante negativos e até despertar a besta que habita em nós, e que muitas vezes nos surpreende justamente nos momentos em que mais necessitamos de temperança e equanimidade.

Quem nunca se surpreendeu com uma atitude incompatível com seu padrão comportamental que atire a primeira pedra. Hobbes e Freud explicam.

Ao nos arrostarmos com nossos semelhantes em tamanhas situações de crise bestial, apontamos o dedo para nós mesmos e para o que de pior existe em nós.  Somos os nossos piores algozes e possuímos a tendência irrevogável e irrefreável de sermos mais duros conosco do que somos com os outros. Portanto, ao julgarmos semelhantes, se não houver o devido preparo, corremos o risco de neles reconhecermos o que trazemos de mais assustador em nossos inconscientes, sem que disso nos apercebamos, as mais das vezes.

Livres dos riscos da punição, porque, desta vez, não nos deixamos levar pela turba (visto que nossos interesses com os dela não coincidiam, não desta vez), podemos nos investir na função do juiz rigoroso, sem dó nem piedade, daí a necessidade de uma Justiça equidistante, serena e imparcial.

Os atos antidemocráticos de 8/1 desnudam a necessidade de um releitura do conceito de culpabilidade num mundo hiperconectado, em que as informações circulam livres de filtros e em que, paradoxalmente, as pessoas se acham cada vez mais solitárias e sequiosas por se unirem em bolhas que confirmem suas crenças já arraigadas.

No que concerne especificamente às pessoas que se envolveram nos atos antidemocráticos, o julgador judicioso há de atentar para as peculiaridades de cada uma, cônscio de que muitas delas, segundo tendo a crer, acreditavam, no seu íntimo neurótico, estar fazendo a coisa certa, por mais abjeta que tenham sido a conduta e o resultado de suas condutas criminosas.

Não se pode fechar os olhos para uma realidade sociológica que é o mundo de hiper-realidade em que muitos passaram a viver, imersos num ambiente onde grassam as 'fake news' e a desinformação propositalmente difundida, o mundo dos acampamentos golpistas que se formaram nas barbas do estado e, por que não dizer, com a sua leniente omissão, onde as informações e os dados chegam distorcidos e muitas vezes manipulados por grupos que se valem dessa massa de manobra para obter lucro e poder.  É o que Cass Sustein, em seu livro #Republic, chama de "universo de informação perfeitamente controlada", como.

Some-se a isso a feição multitudinária dos crimes praticados, circunstância atenuante consagrada na legislação penal (Código Penal, artigo 65, inciso III, alínea "e") e que, na precisa lição de Cleber Masson, se caracteriza por ser uma "deformação transitória da personalidade que sofre o indivíduo sob a pressão das paixões violentas que agitam o grupo em sublevação", uma "turvação acidental que acomete o espírito dos amotinados, em quem falta a serenidade necessária para pesar razões e decidir conforme o Direito".

É induvidoso que, na maioria dos casos, tais vicissitudes informacionais não possuirão o estofo necessário para afastar o caráter criminoso da conduta, noves fora os baderneiros profissionais, em relação a quem o apenamento haverá de ser rigoroso.

Entretanto, o excessivo número de presos e de réus, caso todos venham a ser denunciados, imporá ao julgador assisado o dever de separar o financiador do baderneiro e este da aposentada que, de bermudas e chinelos, fiando-se em informações perfeitamente controladas, acreditava, psicoticamente mesmerizada, estar fazendo a coisa certa, por mais incrível que isso possa nos parecer ao observador imparcial e por mais antipatia que possa nos causar a exposição que fizeram de suas lamentáveis figuras, em situações muitas vezes vexatórias (como o chamamento pela intervenção de generais extraterrestres e outras tantas bizarrices que vimos acompanhando perplexos nos meios de comunicação).

Nessa tarefa sempre tormentosa, não devemos nos esquecer de que, como num Namastê ao reverso, "a besta que habita em mim saúda a besta que existe em você".  É por isso que não acredito na robotização do Poder Judiciário, num magistrado "bot".  Somente um ser humano sabe a dor e a delícia de sê-lo, de modo a separar, de forma isenta de paixões, o joio do trigo

Autores

  • é juiz de Direito da 33ª Vara Cível de Belo Horizonte, pós-graduado em Direito de Empresas pela PUC-Rio e graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Foi procurador e procurador-geral adjunto da Fazenda Nacional, além de procurador regional da Fazenda Nacional da 1ª Região.

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