Opinião

Especialização e consensualidade na recuperação de empresas

Autores

  • Clarissa Somesom Tauk

    é juíza de Direito do TJ-SP em exercício na 3ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da Capital e doutoranda em Direito Empresarial (Uninove).

  • Fernanda Bragança

    é pesquisadora do Centro de Inovação Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento doutora em Direito pela UFF e pesquisadora visitante na Université Paris 1 Pantheón Sorbonne.

  • Renata Braga

    é professora da Universidade Federal Fluminense UFF/VR pesquisadora colaboradora externa do Centro de Inovação Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Conhecimento e doutora em Direito pela UFSC.

21 de janeiro de 2023, 14h17

O sistema brasileiro de insolvência passou por uma importante reforma, que trará benefícios a serem colhidos no futuro. A linha de estruturação das inovações legislativas operadas pela Lei 14.112/2020 pautou-se no equilíbrio entre os interesses individuais com interesses da coletividade, possibilitando uma maior celeridade na reestruturação das empresas, oferecendo uma saída rápida do cenário de crise e a retomada das atividades em condição econômica sadia.

De fato, as novas medidas eram protestadas há muito tempo por especialistas da área, sobretudo porque os números brasileiros relacionados ao tema não eram otimistas. O estudo "Doing Business 2020" [1], do Banco Mundial, apontou que a taxa de recuperação dos créditos no Brasil é bem pior do que a média observada na América Latina: enquanto a maioria dos países latino-americanos atingiram um índice aproximado de 31%, o Brasil vem consolidando sua posição ao longo dos anos com um índice de 18%.

Segundo o Ministério da Economia [2], até outubro de 2020, entre as 38.837 empresas em recuperação judicial, apenas 24% das grandes empresas e 9% das médias, micro e pequenas empresas voltariam a operar em "situação normal" após ingressar com pedido de recuperação judicial.

Diante desse quadro, o Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas (CIAPJ/FGV), coordenado pelo ministro Luis Felipe Salomão, realizou alguns estudos abordando o cenário da recuperação de empresas no país. Em 2021, o Centro desenvolveu a pesquisa "Métricas de qualidade e efetividade da Justiça brasileira: o tempo e o custo de um processo de recuperação de crédito"[3], em parceria com a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), o Instituto Recupera Brasil (IRB) e o Fórum Nacional de Juízes de Competência Empresarial (Fonajem). Esse estudo apresentou dados do Banco Mundial, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dos Tribunais de Justiça, bem como ouviu advogados especializados e de representantes de empresas que tiveram a sua recuperação judicial deferida.

O relatório da primeira fase da pesquisa propôs: a) oferta de serviço específico pelos tribunais para as empresas em dificuldade com opções judiciais e extrajudiciais; b) capacitação de mediadores para o tratamento das matérias empresariais; c) criação de um ambiente propício para a ampliação do uso da recuperação extrajudicial, envolvendo os tribunais e a OAB; d) especialização dos juízos empresariais nos estados e a criação de varas regionais; e) maior atuação da OAB no sentido de orientar ou incentivar os advogados na propositura de recuperação extrajudicial.

Essa primeira fase da pesquisa mostrou que cerca de 94% dos advogados especializados nesse segmento sugerem abordagens negociais do devedor com seus credores. Entre as reformas introduzidas pela Lei 14.112, de 2020, merece destaque o direcionamento dos litígios empresariais para uma solução consensual por meio dos métodos alternativos, não só no curso do processo de recuperação judicial, mas também na fase de pré-insolvência. Tal direcionamento já era incentivado pelo CNJ, por meio da Recomendação nº 58, de 2019 [4], a qual orientava os magistrados responsáveis pelo processamento e julgamento dos processos de recuperação empresarial e falências, de varas especializadas ou não, que promovessem, sempre que possível, o uso da mediação. Outra normativa relevante sobre esse aspecto é a Recomendação nº 71 de 2020 [5] do CNJ, a qual dispõe sobre a criação dos Cejuscs Empresariais (Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania).

A segunda edição da pesquisa, sob a coordenação científica da juíza Clarissa Somesom Tauk, partiu dessas proposições e restringiu o campo de análise, voltando-se a dados fornecidos pelos Tribunais de Justiça do país, referentes às varas e câmaras com competência para julgamento da matéria, bem como dos Cejuscs e câmaras privadas de mediação e conciliação, tendo como foco impulsionar tratativas negociais do devedor com os seus credores. O objetivo geral dessa nova fase da pesquisa foi fazer uma análise do grau de especialização dos órgãos judiciários em matéria de recuperação de empresas, bem como da estrutura dos Cejuscs e das câmaras privadas, com a perspectiva de identificar suas fragilidades e potencialidades, a fim de propor soluções e práticas que possam aprimorar o sistema de recuperação de empresas no Brasil. A amostra desse estudo contém dados de 21 Tribunais de Justiça [6] que responderam ao formulário entre os meses de setembro e novembro de 2022.

Quanto ao grau de especialização dos juízos para o tratamento dos conflitos envolvendo a recuperação de empresas, a pesquisa constatou que: a) há ainda pouca especialização no âmbito das estruturas dos Tribunais de Justiça. Na amostra analisada, foram identificadas cerca de 43% de varas especializadas em recuperação empresarial e falência e de varas empresariais; b) o número de câmaras especializadas (segundo grau) também é pequeno. Foram computadas tão somente duas câmaras especializadas em falência e recuperação empresarial em cada um dos seguintes tribunais: TJ-SP, TJ-MG e TJ-RJ; c) o critério para a criação de varas e/ou câmaras especializadas nos tribunais com base na concentração de empresas e atividade empresária foi considerado por cerca de 28% dos tribunais (TJ-DFT, TJ-MT, TJ-RS, TJ-SC, TJ-SP e TJ-TO); e cerca de 67% dos tribunais não levaram em conta esse critério; d) no que concerne à especialização em Direito Empresarial, sete tribunais afirmaram que possuem varas especializadas na matéria, sendo eles: TJ-BA, TJ-CE, TJ-DFT, TJ-MG, TJ-RJ, TJ-RS e TJ-SP. O TJ-RJ é o tribunal com registro de maior número (total de sete) de varas especializadas em direito empresarial; e) somente o TJ-MG, o TJ-SC e o TJ-SP consignaram que possuem câmaras especializadas em Direito Empresarial. O TJ-SC é o tribunal com maior número (total de cinco) de câmaras especializadas.

Nesse sentido, o estudo revelou que: a) apenas cinco tribunais (TJ-AP, TJ-MG, TJ-MT, TJ-RS e TJ-SE) contam com Cejuscs especializados em matéria empresarial. Diante do número pouco expressivo, o encaminhamento dos processos acaba sendo direcionado para um Cejusc cível em geral (cerca de 40% dos tribunais) ou para o Cejusc único (cerca de 60%), que reúne todos os tipos de conflitos; b) apenas nove tribunais, que representam cerca de 43% da amostra da pesquisa, possuem mediadores e conciliadores cadastrados especializados em matéria empresarial, sendo eles TJ-AM, TJ-BA, TJ-CE, TJ-MG, TJ-MT, TJ-RJ, TJ-RS, TJ-SC e TJ-SP.

O relatório final da pesquisa, que será publicado no primeiro trimestre deste ano, apresenta algumas propostas para aperfeiçoamento do sistema, tais como: a) expansão do número de varas especializadas nos tribunais brasileiros para tratamento dos casos de recuperação e falência de empresas; b) criação de mais Cejuscs especializados em matéria recuperacional; e c) aumento das iniciativas de treinamento e atualização dos mediadores e conciliadores nessa matéria.

Esses diagnósticos e proposições ganham ainda mais destaque diante da sinalização de crescimento do volume de pedidos de recuperação judicial em 2023 [7], com um alto número de empresas inadimplentes e com tendência de elevação da taxa de juros.

A pandemia da Covid-19 causou grande impacto no funcionamento das empresas brasileiras. A recuperação judicial é uma ferramenta de superação de crises. Nesse ponto, a Lei 11.101/2005, em sua origem, foi formulada como um mecanismo de socorro para crises de empresas em situação de normalidade de mercado. Para crises sistêmicas, em que economia e o mercado passam a ser afetados como um todo, é fundamental que se reformule as soluções outrora pensadas.

Estudos e pesquisas nessa área são fundamentais para o acompanhamento da implementação e efetividade das novas medidas, de modo que o Judiciário possa otimizar sua atuação nestes processos.

 


[1] WORLD BANK GROUP. Doing Business 2020: Comparing Business Regulation in 190 economies. Washington: The World Bank, 2020. Disponível em: < https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/32436/9781464814402.pdf>. Acesso em: 13 jan. 2023.

[2] Cf. MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Nova Lei de Falências vai melhorar os resultados de recuperações judiciais no país. Regras atualizadas vão garantir vigor das empresas no pós-pandemia, aponta secretário especial de Fazenda. Gov.Br, 28 dez. 2020. Disponível em: < https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2020/dezembro-1/nova-lei-de-falencias-vai-melhorar-os-resultados-de-recuperacoes-judiciais-no-pais>. Acesso em: 13 jan. 2023.

[3] CENTRO DE INOVAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PESQUISA DO JUDICIÁRIO. Um estudo do processo de recuperação de empresas: relatório preliminar analítico-propositivo. Rio de Janeiro: FGV Conhecimento, 2022. Disponível em: < https://ciapj.fgv.br/sites/ciapj.fgv.br/files/relatorio_recuperacaodeempresas.pdf> Acesso em 17 dez. 2022.

[4] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação nº 58 de 2019. Recomenda aos magistrados responsáveis pelo processamento e julgamento dos processos de recuperação empresarial e falências, de varas especializadas ou não, que promovam, sempre que possível, o uso da mediação. Disponível em: < https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3070>. Acesso em 13 jan. 2023.

[5] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Dispõe sobre a criação do Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania – Cejusc Empresarial e fomenta o uso de métodos adequados de tratamento de conflitos de natureza empresarial. Disponível em: < https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3434>. Acesso em 13 jan. 2023.

[6] TJ-AC, TJ-AM, TJ-AP, TJ-BA, TJ-CE, TJ-DFT, TJ-MS, TJ-MT, TJ-PA, TJ-PE, TJ-PI, TJ-RJ, TJ-RO, TJ-RS, TJ-SC, TJ-SP, TJ-SE e TJ-TO.

[7] Cf. Volume de pedidos de recuperação judicial deve crescer neste ano. Valor econômico, legislação e tributos, 11 jan. 2023. Disponível em: < https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2023/01/11/volume-de-pedidos-de-recuperacao-judicial-deve-crescer-neste-ano.ghtml>. Acesso em: 17 jan. 2023.

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