Controvérsias Jurídicas

A vertente neorrealista e o uso da mentira como arma de guerra

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

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20 de janeiro de 2023, 11h40

John J. Mearsheimer, teórico das relações internacionais e das ciências políticas, professor titular da Universidade de Chicago, tornou-se um dos maiores nomes da vertente neorrealista das relações internacionais em função de seus escritos, que buscam compreender as razões da hegemonia das grandes potências na contemporaneidade, dentre os quais destaca-se The Tragedy of Great Power Politics.

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Na referida obra, o autor analisou a importância do poder para a manutenção do Estado, as origens da natureza anárquica do sistema internacional e as principais formas de os agentes estatais exercerem o poder diante de um sistema tão agressivo. Afirma também que, por conta de não existir uma autoridade que se sobreponha aos Estados, os atores políticos detentores do poder buscam constantemente a manutenção de sua hegemonia, cultivando um sentimento de desconfiança e perseguição mútua.

"As grandes potências perceberam que a melhor forma de garantir sua segurança é conquistar a hegemonia, eliminando assim, qualquer possibilidade de um desafio por outra grande potência. Apenas um Estado insensato perderia a oportunidade de ser um Estado hegemônico do sistema por acreditar que já tenha poder suficiente para sobreviver" [1].

A corrente teórica neorrealista, ou do realismo ofensivo, caracteriza-se como uma vertente do realismo político, tendo como premissa a atuação predominante dos Estados nas relações internacionais. Trata-se, portanto, de uma teoria de abordagem estrutural que sustenta a imutabilidade da anarquia do sistema internacional (cada Estado procura satisfazer as suas necessidades e prevalecer perante os demais, independentemente do equilíbrio de poder entre as nações). Ainda de acordo com o autor, um dos principais pontos de instabilidade política das relações internacionais perpassa pela mentira, artifício utilizado por chefes de Estado e agências de inteligência para ludibriar outro Estado quanto às suas reais intenções.

Na obra Por que os Líderes Mentem: Toda a Verdade sobre as Mentiras na Política Internacional" [2], Mearsheimer apresenta a justificativa utilizada pelo governo de George W. Bush de que Saddam Hussein possuiria grande arsenal de armas de destruição em massa, com o intuito de justificar a futura invasão do Iraque. Para que a investida no Oriente Médio se fundamentasse, sustenta o autor que o governo norte-americano se utilizou de falsas motivações: figuras-chave do governo alegaram a existência de armas de destruição em massa sob domínio iraquiano; afirmaram existir fortes evidências de que Saddam Hussein era aliado estratégico de Osama Bin Laden; sustentaram que o líder iraquiano tinha participado dos ataques ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001; e que o objetivo principal da incursão norte-americana era a solução pacífica do conflito, quando, em verdade, a decisão pela invasão armada já estava tomada.

Adverte que nenhuma das mentiras contadas pelos integrantes do governo foi para a obtenção de ganho pessoal, mas por acreditar estarem agindo em consonância com os interesses nacionais. Assim, utilizando-se da exegese utilitarista, afirma o autor que a mentira se tornou um importante instrumento de manipulação da opinião pública interna e das relações entre países em âmbito global. Mearsheimer apresenta duas categorias distintas de mentira: as mentiras estratégicas, utilizadas pelos governantes visando à sobrevivência de suas nações no caos das relações internacionais; e as mentiras egoístas, distintas daquelas ditadas por raison d'État, que visam à proteção dos interesses pessoais do governante, de seu grupo político ou de correligionários ideológicos.

Centrando-se nas mentiras estratégicas, o cientista político afirma que no espectro da política externa, os líderes se utilizam de mecanismos de falseamento da verdade, que se constituem como invenção (criação de um fato inexistente), torção (inversão de um acontecimento que ensejou a ação) ou omissão (o não dizer de algo relevante para as relações dos países). As mentiras interestatais são aquelas direcionadas para outras nações com o objetivo de obtenção de superioridade estratégica (domínio na produção de alimentos, hegemonia das matrizes energéticas, dependência econômica ou domínio militar). Por sua vez, as mentiras de difusão do medo ocorrem quando um líder mente para seu próprio povo a respeito de uma suposta ameaça de política externa, distorcendo as reais motivações da ação do Estado.

Os acobertamentos estratégicos se constituem em ocultação de políticas de governo fracassadas ou controversas, objetivando manter a unidade da opinião pública interna acerca de determinado fato. Tal estratégia, na maioria das vezes, caminha com as mentiras de caráter nacionalista, denominadas pelo autor como "mitificações". Nessas situações, os governantes mentem para seu próprio povo sobre o passado da nação, ensejando na criação de um falso sentimento de pertencimento de grupo que facilite a maior participação popular em conflitos armados.

Finalmente, destacam-se as mentiras liberais, as mentiras de imperialismo social e os acobertamentos deploráveis. As mentiras liberais são aquelas destinadas a encobrir o comportamento do Estado ao contradizer amplo conjunto de normas liberais, denotando inequívoco caráter intervencionista e limitador das liberdades individuais. O imperialismo social se fundamenta na mentira contada acerca das reais intenções de outro Estado, de modo a promover seus próprios interesses econômicos, políticos ou militares. Já os acobertamentos deploráveis demonstram caráter personalíssimo, fundados no falseamento de políticas malsucedidas que visam a proteger a figura do líder de eventuais responsabilizações jurídicas.

É de acordo com esses preceitos que John J. Mearsheimer também analisa o atual conflito entre Rússia e Ucrânia, o primeiro em continente europeu desde o fim da Segunda Guerra. Nesse contexto, Vladimir Putin se utilizou de várias estratégias para manipular a opinião pública interna, unir o país em torno de um propósito de defesa nacional e fundamentar suas ações perante os organismos internacionais. Operou também o acobertamento estratégico como forma de esconder do público interno e externo os revezes militares e possíveis crimes de guerra e ataques à população civil.

Putin tirou proveito da dependência energética do seu continente nos gasodutos russos que vem abastecendo a Europa com intensidade cada vez maior desde o início dos anos 90. O aumento dessa dependência era indicativo de que não havia animosidades entre as nações e que a diminuição da autonomia russa estava absolutamente fora do radar. Outro pretexto utilizado pelo atual regime russo foi a aproximação entre a Ucrânia e a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), que, em tese, representaria ameaça à soberania russa frente aos países do leste europeu, principalmente aos antigos integrantes da Cortina de Ferro.

Criada em 1949, durante a Guerra Fria, a Otan se constituiu ao longo do século 20 como meio de aumentar a influência militar norte-americana e garantir sua hegemonia sobre a parte ocidental da Europa. Em função da cláusula de ataque comum, a partir do momento em que quaisquer dos países integrantes do tratado sofrer ataque de nação estrangeira, a ação representará uma agressão a todos os países do grupo. Desse modo, a nação agredida passaria a se valer do poderio militar norte-americano e de outras grandes potências europeias para sua defesa e retaliação.

Partindo sempre da premissa de que a aproximação da Ucrânia com a União Europeia representaria um risco à soberania russa, as tentativas de incursão em território ucraniano não são recentes. A Guerra da Crimeia já anunciava a escalada da tensão entre os países, na qual a Rússia anexou significativa parte do território da Ucrânia, fundamental para as relações internacionais por dar saída ao mar Negro e de Azov.

Por outro lado, a temerária insistência da Otan em provocar a Rússia com os repetidos convites para o ingresso da Ucrânia contribuiu para dar a Putin a justificativa de que necessitava para a invasão. É fato que os Estados Unidos e a Otan mentiram para Gorbachev, logo após o fim da União Soviética, garantindo a ele que não avançariam "nenhuma polegada" em direção ao leste europeu.

Com a queda do muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, mesmo com a expressa promessa por parte do governo dos EUA de que a Otan não avançaria nos territórios da Cortina de Ferro, o que se viu a partir de 1991 foi a expansão do bloco, de modo que a Ucrânia e Belarus se tornaram as únicas áreas remanescentes sem influência direta norte-americana. Em 1999, Polônia, Hungria e Chéquia (antiga República Tcheca) ingressaram na Otan. O mesmo se deu com a Letônia, Estônia, Lituânia, Bulgária, Romênia, Eslováquia e Eslovênia em 2004, todos pertencentes à extinta União Soviética, restando claro o descumprimento do acordo firmado no final da década de 80.

Logo após as primeiras incursões em território ucraniano, diante da fragilidade do exército resistente e da falta de estrutura das cidades dominadas, o Kremlin começou a propagar que uma das razões para a guerra seria o "processo de desnazificação" das tropas ucranianas, abandonando o motivo precípuo de receio quanto ao aumento de influência da Otan na região. Posteriormente, em mais uma guinada argumentativa, passou a justificar a ação militar em "defesa do povo russo residente em território ucraniano", como se o regime de Zelensky representasse algum tipo de ameaça aos povoados de Donbass.

Ressalte-se, por fim, que a Guerra da Ucrânia serve como uma cartilha para o estudo da tragédia da política internacional. Outras mentiras, tais como a mitificação em torno do retorno do grande território russo (do qual a Ucrânia faria parte) serviram para unificar a opinião pública e mobilizar as tropas. Ainda assim, mal calculando o poder de reação da Ucrânia ante o envio de material bélico de alta tecnologia pelos EUA, o governante russo ainda acobertou estrategicamente a retomada de algumas cidades visando a esconder a defasagem de seu exército em comparação com as forças ocidentais.

Zelensky, por sua vez, agiu com extrema falta de habilidade, servindo de instrumento para as inoportunas provocações da Otan e agora, embora tenha se tornado celebridade mundial, terá de conviver com o fato de ter arrastado o seu país para a destruição. Qualquer que seja o resultado final dessa guerra, dificilmente a União Europeia abrirá suas portas a um país economicamente destruído. Em todas as situações aqui narradas, muita dor e destruição foi causada e a única vencedora, que sempre colhe seu triunfo, foi a mentira.

 


[1] MEARSHEIMER, John. A tragédia da política das grandes potências. Ed. Gradiva, 2007, p. 48.

[2] MEARSHEIMER, John, Por que os líderes mentem: toda a verdade sobre as mentiras na política internacional. Ed. Zahar, 2012.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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