Opinião

Quando a Arte cai em domínio público: ou porque P.I. não responde tudo

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  • Gustavo Bayum de Paiva

    é pós-graduado em Direito de Empresas pela PUC-Rio bacharel em Direito pela UFRJ sócio do Bayum de Paiva & Andrade Advogados e head de Societário & Investimentos e de Private Clients HNW — Art Law.

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20 de janeiro de 2023, 20h16

A propriedade intelectual é um dos ramos mais relevantes do Direito na atualidade. A proteção conferida de forma virtualmente universal pelos ordenamentos jurídicos internacionais promove segurança jurídica a criações do intelecto humano, passando por patentes, invenções, marcas e, inclusive, criações artísticas, resguardando sua autoria e sua exploração econômica. É em decorrência de tais proteções, especialmente as financeiras, que agentes econômicos se fazem responsáveis por imensuráveis avanços tecnológicos, contribuindo para a evolução da medicina, da comunicação, da ciência e, em última instância, da própria humanidade.

Além da resguardada autoria e exploração econômica, o chamado domínio público é um conceito daquela episteme que se faz comum a todos os âmbitos das criações humanas. Tal figura representa o equilíbrio comunitarista à propriedade, se impondo como importante limitação ao poder de entesouramento, ainda que no âmbito do intelecto. Na mesma linha, muito se defende que a própria existência do instituto permite que todo o sistema funcione como uma máquina retroalimentar, uma vez que possibilita a expansão, o desenvolvimento contínuo e o consequente aperfeiçoamento de trabalhos até então finalizados.

Abordando o tema por uma ótica mais intimamente relacionada aos direitos autorais, conforme definidos pela Lei 9.610/98, o domínio público se refere à extinção, seja temporal ou por renúncia, da proteção patrimonial de uma criação. Segundo o conceito dominante, o domínio público pode ser definido como "uma condição jurídica na qual uma obra não possui o elemento do direito real ou de propriedade que tem o direito autoral, não havendo, assim, restrição de uso de uma obra por qualquer um que queira utilizá-la. Do ponto de vista econômico, uma obra em domínio público é livre e gratuita" [1].

A linha da destacada definição se repete pela doutrina nacional com a mesma certeza e delimitação que poucos conceitos jurídicos detêm. Em sua dissertação de doutorado pela Uerj e publicada pela editora Lumen Juris em 2011 [2], Sérgio Branco reforça tal alcance, acrescentando, ainda, que: "Além disso  e ao contrário da regra geral que deve ser observada enquanto vigentes os direitos autorais sobre a obra , é possível fazer uso comercial desta, auferindo lucros com seu uso, independentemente de autorização de terceiros".

Pela ótica da definição dada pela prática de P.I., uma empresa poderia alterar e utilizar a imagem de Davi de Michelangelo (1501-1504), obra em domínio público, para basear uma propaganda. Da mesma forma, um estilista poderia se valer da imagem de Vênus pintada por Botticelli (1485-1486), outra obra em domínio público, para estampar uma nova coleção de roupas. Qualquer estudioso da área de Propriedade Intelectual reproduziria a consagrada teoria em sua recomendação, afinal, se uma obra se encontra em domínio público, não existe qualquer óbice ao seu uso comercial por quem quer que seja.

A empresa de engenharia americana ArmaLite e a grife francesa Jean Paul Gaultier descobriram, recentemente, que P.I. não responde tudo [3]. A definição reducionista e imperativa da doutrina internacional quanto a utilização de obras em domínio público, sem fazer qualquer distinção entre livros, patentes, pinturas ou esculturas, é a evidência de que a prática de propriedade intelectual é demasiadamente ampla para lidar com especificidades particulares do mundo das artes.

Diferente de patentes ou desenhos industriais, a arte (entendida aqui como pinturas e esculturas), representa, em muitos casos, mais do que o seu próprio autor. Obras se consagram pelo significado que traduzem e, em alguns episódios especiais, dão ao mundo que as cercam um significado completamente novo. Permitir, pois, que, ainda que em domínio público, tais obras pudessem ser usadas indiscriminadamente para fins comerciais representaria uma subversão dos valores sob os quais uma sociedade se ergueu.

Como contraponto à mercantilização excessiva de tudo o que pode ser transformado em propaganda, a legislação italiana editou o decreto que instituiu, em janeiro de 2004, o Codice dei beni culturale. Tal diploma define como bem cultural toda e qualquer coisa móvel ou imóvel que represente interesse artístico, histórico, etnoantropológico que se mostrem como base dos valores civilizatórios, estendendo proteção pela limitação ao uso comercial indiscriminado, ainda que tais obras estejam em domínio público (assim como no caso brasileiro, as obras entram no domínio público italiano após o decurso de 70 anos da morte de seu autor).

Dessa forma, a uníssona e irrestrita definição ao instituto do domínio público dada pela prática consagrada da propriedade intelectual torna-se equivocada por não comportar exceções. Em verdade, falha em prever situações em que a proteção não tem caráter econômico, mas sim cultural e sociológico. O que ocorre é uma usurpação de competência: não se pode equiparar arte a invenções finalísticas. Eis a necessidade do estudo legal dedicado ao artístico como campo epistemológico próprio.

Quando Michelangelo concebeu Davi de um bloco esmilhento de mármore, ele não produziu apenas uma das mais belas e tecnicamente perfeitas esculturas da história. Ele deu luz à resiliência heroica do povo fiorentino que resistia bravamente ao poder de Roma e dos Medicis. Quando foi apresentado ao povo na principal praça de Florença, posicionado em desafio e virtuosidade em direção à capital como quem aguarda destemido um gigante esmagador para derrotá-lo com um estilingue e cinco pedras, Michelangelo criou o símbolo de uma sociedade e imortalizou a cultura em si. Davi capturou o nacionalismo e os valores intrínsecos de um povo como nenhum hino ou bandeira jamais conseguiu.

As exceções do Código italiano às regras do domínio público não foram pensadas para proteger o autor. Foram criadas para resguardar a pureza do que nos faz humanos: a arte em seu esplendor mais impactante. Aquele que cria, que transforma, que transcende corpos e unifica a coletividade. Aquele que persiste ao tempo e, séculos mais tarde, ainda é capaz de evocar os princípios que constroem uma civilização.

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