Máfia, tráfico de obras de arte e a resposta da Polícia Federal
19 de janeiro de 2023, 21h16
No último dia 16 de janeiro, depois de 30 anos de perseguição implacável, o capo di tutti i capi da Cosa Nostra Matteo Messina Denaro foi preso em Palermo, Sicília, pelos Carabinieri, a polícia italiana. Nascido em Castelvetrano, Sicília, em 1962, Matteo Messina Denaro é filho do padrino Francesco Don Ciccio Messina Denaro e sucedeu o mítico Salvatore Totò Riina na liderança do clã corleonese, após a prisão deste último em 1993. Matteo Messina Denaro chegou a ser um dos dez fugitivos mais procurados do mundo.
Don Ciccio ficou famoso por roubar, em Castelvetrano, em 1962, a estátua conhecida como o Efebo de Selinunte, um Adónis em bronze, de 400 aC, recuperada em Foligno em 1968, graças à atuação do agente secreto e crítico de arte Rodolfo Siviero. Segundo a Direzione Investigativa Antimafia da Itália, por trás desse crime estava Giovanni Franco Gianfranco Becchina, conterrâneo dos Messina Denaro e famoso traficante internacional de arte. De tão importante, Becchina, dono de cinco armazéns repletos de obras de arte no Freeport de Genebra, tem direito até a verbete na famosa base de dados Sherloc, do Escritório das Nações Unidas para as Drogas e o Crime.
Um dos maiores crimes da história da arte, o roubo da gigantesca tela Natività, de Caravaggio, do Oratorio di San Lorenzo, em Palermo, em 1969, jamais encontrada, também teria as digitais dos Messina Denaro.
O mafioso pentito Giovanni Brusca delatou que, no início dos anos 1990, o chefão Totò Riina o encaminhou a Matteo Messina Denaro quando ele quis obter algum importante achado arqueológico para oferecê-lo ao Estado italiano em troca de benefícios prisionais para seu pai. Matteo Messina Denaro também esteve envolvido no assalto à Galleria Estense, de Módena, em janeiro de 1992, quando bandidos levaram pinturas de Velázquez, Correggio e El Greco que seriam trocadas por benefícios carcerários para o boss Felice Maniero, preso oito anos antes. Nestes e em outros casos, a arte roubada foi utilizada em secretas negociações entre o Estado e a Máfia.
No final dos anos 90, Matteo Messina Denaro comandou o roubo do Sátiro Dançante de Mazara del Vallo, um precioso bronze grego atribuído a Praxiteles. A obra foi recuperada quando já estava prestes a ser comercializada a peso de ouro, através de canais suíços, a um colecionador estrangeiro.
Pizzinu, em dialeto siciliano, é o bilhetinho de papel que a máfia utiliza para comunicações entre os chefões. Em um famoso pizzinu apreendido pela polícia, Matteo Messina Denaro escreveu: "Con il traffico di opere ci manteniamo la famiglia". Com o tráfico de obras de arte se mantém a famiglia, seja ela a Cosa Nostra, a Camorra, a 'Ndrangheta, a Banda della Magliana ou a Sacra Corona Unita.
Artefatos de valor histórico e cultural, além de significar poder e prestígio para um capo e valiosa moeda de troca, são ainda especialmente susceptíveis a operações de lavagem de dinheiro, entre outros fatores, devido à alta subjetividade do valor desses itens, à tradicional confidencialidade das transações nesse mercado e ao baixo nível de controle estatal sobre os atores do segmento. O tema não é novo.
Ao longo das múltiplas fases da operação "lava jato", por exemplo, mais de 200 obras de arte de alto valor foram apreendidas pela Polícia Federal em residências e escritórios associados a figurões da política nacional, megaempresários e operadores financeiros. Obras de arte foram encontradas também pela Polícia Federal em casos envolvendo a falência do Banco Santos, o superfaturamento de obras na antiga Avenida Água Espraiada (hoje Jornalista Roberto Marinho) e a prisão do traficante colombiano Juan Carlos Ramirez Abadia.
Nesses e outros casos em que artefatos culturais são adquiridos por criminosos com dinheiro "sujo", ou mesmo quando as próprias obras são objeto de crimes, como o furto e o tráfico internacional, a legislação criminal brasileira autoriza sua apreensão e perdimento.
No entanto, dar concretude ao comando legal não é tarefa fácil. Para possibilitar a apreensão de pinturas, esculturas, antiguidades e outros itens, é preciso que os policiais estejam aptos a investigar operações espúrias, identificar obras valiosas, periciar e apontar corretamente seu preço de mercado e dar adequada destinação aos artefatos, ao fim da investigação.
Ciente da importância e da dificuldade dessas tarefas, a Polícia Federal inaugurou em agosto de 2021 o projeto Goia, acrônimo para Guarda, Observação, Investigação e Análise de Patrimônio Histórico, Bens Culturais e Obras de Arte — e, claro, homenagem a Francisco José de Goya y Lucientes, o estupendo pintor espanhol. O projeto tem como missão funcionar como facilitador em todas as etapas da investigação que envolverem peças, sítios e imóveis de patrimônio histórico e bens culturais, desde o planejamento da operação até a destinação dos bens.
O Goia tem orientado investigadores em relação à formalização de apreensões, transporte, nomeação de depositários, execução dos trabalhos periciais, cooperação internacional e repatriação de obras. O grupo já capacitou mais de cem policiais federais para trabalhar com a temática e visa ampliar ainda mais a difusão de conhecimento sobre a matéria na Polícia Federal.
Outro foco do grupo são acordos de cooperação com outras instituições, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e universidades, com a finalidade de ampliar a expertise da Polícia Federal, receber auxílio técnico e criar uma rede de instituições dispostas a custodiar provisoriamente os bens apreendidos.
Em janeiro de 2021, por exemplo, a Polícia Federal entregou ao Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, integrante da rede Goia, mais cem obras de artistas renomados, decorrentes de 11 mandados de busca e apreensão cumpridos na 79ª fase da operação "lava jato", denominada Vernissage. No acordo, o museu fica integralmente responsável pelos de armazenamento e conservação das peças.
Em seus planos para o futuro, o Goia trabalha para a criação de um grande banco de dados com informações de peças roubadas, desaparecidas e dados de análises técnicas, contando, para isso, com o apoio dos parceiros integrantes da própria rede, bem como da Interpol. O crime organizado, além de nos roubar a liberdade e a esperança, rouba também o nosso patrimônio cultural, e a criação do Goia é uma excelente resposta à luta contra esse tipo de criminalidade.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!