Opinião

Estupro de vulnerável: já é a hora de uma figura qualificada!

Autores

  • Ricardo Rodolfo Rios Bezerra

    é profissional graduado em Direito no IDP pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal no IDP pós-graduando em anticorrupção e compliance no IDP aluno especial do mestrado na UnB e autor de artigo escolhido para publicação na coleção do IDP Grandes Temas da Graduação.

  • Iasmin Silva de Barros

    é profissional do escritório Maciel Marinho Advocacia.

19 de janeiro de 2023, 6h32

Antes de adentrar na análise do artigo de lei que tipifica o crime de estupro de vulnerável, cabe uma sintética rememoração dos dois casos que servirão de palco exemplificativo/provocativo da proposta do presente artigo, qual seja, a criação de um tipo penal qualificado ao crime de estupro de vulnerável.

Em meados de julho de 2022, o médico anestesista Giovanni Quintella Bezerra foi filmado por funcionários do Hospital da Mulher de São João de Meriti supostamente cometendo crime de estupro contra uma paciente, enquanto ela estava dopada e fazia uma cesariana no Hospital da Mulher Heloneida Studart em Vilar dos Teles, São João de Meriti, município na Baixada Fluminense.

A equipe vinha desconfiando do comportamento do anestesista e estranhava, por exemplo, a quantidade de sedativo aplicado nas grávidas, por isso o gravaram durante a cirurgia e após identificaram o crime.

Uma das colegas de trabalho relatou à polícia que "Giovanni ficava sempre à frente do pescoço e da cabeça da paciente, obstruindo o campo de visão de qualquer pessoa" na sala de cirurgia.

O anestesista foi indiciado por estupro de vulnerável, cuja pena varia de 8 a 15 anos de reclusão.

Já na data de 16 de janeiro de 2023, o anestesista colombiano Andres Eduardo Oñate Carrillo, de 32 anos, foi preso por supostamente estuprar pelo menos duas pacientes sedadas durante cirurgias — caso semelhante ao de Giovanni Quintella Bezerra. Andres Eduardo gravou a si mesmo abusando das vítimas.

O primeiro crime aconteceu no dia 15 de dezembro de 2020 no Hospital Estadual dos Lagos Nossa Senhora de Nazareth, em Saquarema, Região dos Lagos, durante a realização de uma cirurgia de laqueadura.

O segundo foi em 5 de fevereiro de 2021 em uma das salas de cirurgia do Complexo Hospitalar Universitário Clementino Fraga Filho, o Hospital do Fundão, da UFRJ, durante um procedimento para retirada de útero.

Uma das vítimas contou que a sedação foi tão intensa que era semelhante à de um parto de cesárea, tendo ela ficado totalmente desacordada por mais de duas horas.

Similaridades entre os casos:

  • Médicos anestesistas
  • Ambos atuavam em casos de ginecologia/obstetrícia
  • Utilizavam dosagens maiores que o necessário para tornar a vítima vulnerável e possibilitar o suposto estupro
  • Foram presos em razão de gravações de vídeo do caso
  • Ambos realizavam estupro através de felação em pacientes
  • Indiciados por estupro de vulnerável, artigo 217-A, CP

Entendendo os casos em questão e suas similaridades, passa-se ao cerne da análise, o crime tipificado no artigo 217-A.

O estupro de vulnerável foi inserido no código penal em 2009 através da Lei nº 12.015, que alterou os crimes contra a dignidade sexual. O referido artigo dispõe que:

"Estupro de vulnerável (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

§ 1º. Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência." (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

Desta feita, ao menos em tese, as condutas dos médicos se amoldariam a parte final do parágrafo primeiro "por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência". Incorrendo na mesma pena atribuída ao caput do dispositivo legal.

Segundo o autor Cleber Masson:

"Na hipótese em que a vítima é totalmente privada da sua capacidade de resistência, há que se reconhecer o estupro de vulnerável, pois da sua parte não há vontade de participar do ato" [1].

Ocorre que, a descrição do tipo penal descreve os verbos "ter" ou "praticar", amoldando-se perfeitamente ao caso dos menores de 14 anos, situação na qual a vulnerabilidade ganha contornos objetivos e bem definidos — a idade.

Já a conduta descrita na parte final do parágrafo primeiro carrega os mesmos verbos do tipo, levando, contudo, a conduta ao sujeito passivo que "por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência".

Em tais casos, podemos utilizar como exemplo a conjunção carnal com indivíduo desacordado, por excesso de drogas ou substância entorpecente, fato que, sem sombra de dúvida amoldar-se-ia à parte final do referido parágrafo, e para tanto, parece-nos correta a aplicação da pena legalmente estipulada, de 8 a 15 anos.

Ocorre que em diversos casos, como o exemplo dos médicos, a impossibilidade de oferecimento de resistência fora criada dolosamente pelo próprio agente do delito, com intento de reduzir a vítima ao status de vulnerável, e atentar contra o bem jurídico da dignidade sexual. A conduta, para o caso em tela mostra-se ainda mais reprovável tendo em vista que supostamente criaram a situação de vulnerabilidade de forma artificial, já que com a intenção de estuprar, aumentaram a dose de sedativo das pacientes para que não pudessem oferecer resistência.

E aqui se encontra a deficiência da legislação: não mensurar a punibilidade da conduta dolosa precedente, a de reduzir dolosamente o indivíduo à condição de vulnerável.

O alargamento dos elementos do iter criminis, na medida em que o agente comete atos preparatórios visando a consecução do ato delitivo deve ser entendido como tipo mais complexo, ou qualificado, recebendo, por conseguinte, a exasperação da sanção estatal.

Segundo o professor Nélson Hungria, a qualificadora ocorre quando o próprio tipo penal estabelece uma nova escala penal, quando há um preceito secundário diverso. Em termos simples, a qualificadora ocorre quando o texto da lei traz novos elementos ao tipo penal, e esses novos elementos aumentem a pena máxima e mínima [2].

Trançando viés comparativo, existem diversos tipos penais que comportam sua figura qualificada, ou seja, comportam elementos previstos em um crime específico, que o enquadra em um tipo penal mais grave.

Elege-se aqui o crime de furto, que, em sua modalidade qualificada, entrega o dobro da pena aos casos previstos no parágrafo quarto.

Note que, em comparação, o crime de furto dispõe que:

Furto

Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:

Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.

§ 1º – A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso noturno.
§ 2º – Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.
§ 3º – Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico.

Furto qualificado

§ 4º – A pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido:
I – com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa;
II – com abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza;
III – com emprego de chave falsa;
IV – mediante concurso de duas ou mais pessoas."

Ou seja, o Código Penal identifica que, no crime de furto [3], certas condutas de ordem objetiva merecem penas mais severas, e face de condutas mais reprováveis. É o caso da destruição ou rompimento de obstáculos, escalada, ou com emprego de chave falsa, fato que demonstra que o agente criminoso tinha real desejo de violação do bem jurídico a ponto de enfrentar dificuldades físicas para a sua consecução, o abuso de confiança, ou também denota certo nível de premeditação, uma vez que a consecução do instrumento necessário para a prática do ato delitivo é uma preparação que antecipa em muito a planificação delitiva, revelando um maior desvalor de ação.

Outro ponto que merece comparação é a qualificadora subjetiva do abuso de confiança, situação na qual, por conta das relações existentes entre a vítima e o autor, é facilitado o acesso deste último ao objeto que termina sendo furtado.

Ora, tais situações trazidas na qualificação do furto poderiam ser utilizadas com plena exatidão ao tipo do estupro de vulnerável, seja pela extrema vontade de o agente criminoso consumar o delito previsto no artigo 217-A, a ponto de lançar mão do ato preparatório de dopar ou utilizar a superdosagem de anestésicos reduzindo a situação da vítima em vulnerável, seja pelo abuso de confiança da relação médico/paciente [4] em um ambiente hospitalar, ou no curso de um procedimento cirúrgico, situação que deveria exasperar em muito a reprovabilidade da conduta.

Inimaginável que, sem fazer juízo valorativo quanto a importância dos bens jurídicos, exista o sopesamento de uma forma qualificadora para o tipo do furto (protegendo o bem jurídico patrimônio) e que o crime de estupro de vulnerável (que resguarda a dignidade sexual) não seja contemplado com uma qualificadora que elenque a conduta pretérita do profissional da saúde ou agente que cria a condição de vulnerabilidade sem a qual o delito não seria consumado.

Tal provocação ganha ainda contornos mais urgente tendo em vista em recente levantamento, 9 estados brasileiros registraram 1.734 estupros e abusos sexuais em ambiente hospitalar [5].

Nesse sentido, existe o Projeto de Lei 2016/2022 [6] apresentado pela então senadora Simone Tebet, para aumentar em até 2/3 a pena de estupro e abuso sexual praticado por médico e demais profissionais da área de saúde. O texto também considera estupro de vulnerável a conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso praticado em pacientes pelos referidos profissionais durante atendimento médico, clínico ou hospitalar.

Contudo, a criação da causa de aumento de pena, sem o robustecimento do núcleo do próprio tipo penal, não nos parece a solução legislativa mais adequada.

Por tudo isso, entende-se que é necessário repensar e discutir uma alteração legislativa para a criação do tipo qualificado do crime de estupro de vulnerável visando maior proteção jurídica e um robustecimento da sanção correspondente.

 


[1] MASSON, Cleber. Direito Penal esquematizado: parte especial, arts. 213 a 359-H, vol. 3, 6.ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016

[2] Nélson Hungria. Comentários ao Código Penal, vol. VII, Rio de Janeiro: Revista Forense, 1958, pp. 41/42.

[3] Busato, Paulo C. Direito Penal – Vol. 2 – Parte Especial, 3ª edição. Disponível em: Minha Biblioteca, Grupo GEN, 2017.

[4] CASSEL, E., 1982. The nature of suffering and the goals of medicine. New England Journal of Medicine, 306:639-645.

[5] Lara de, Bruna. Licença para estuprar – mais de mil estupros em serviços de saúde: nem em centros cirúrgicos e UTIs mulheres estão a salvo. The intercept, 2019. Disponível em: https://theintercept.com/2019/04/28/estupros-servicos-saude/. Acesso em: 16/01/2023.

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