Bebê a bordo

Ação contra vídeo sobre corrupção com crianças levanta debate em Moçambique

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19 de janeiro de 2023, 15h41

Um vídeo de humor satirizando a corrupção de policiais rodoviários está gerando comoção em Moçambique. A procuradoria provincial de Manica enxergou calúnia e difamação contra o Estado moçambicano na esquete — que, para complicar, é protagonizada por três crianças, uma delas o humorista Valter Danone, de seis anos de idade.

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ReproduçãoVídeo de criança ao volante foi um dos fatores que motivou processo

Tudo começou com a divulgação de um filmete no canal e redes sociais de Valter Danone. Nele, três crianças fazem uma encenação no qual um veículo é parado pela polícia de trânsito. Uma das crianças finge estar ao volante. O suposto motorista diz estar ansioso para chegar em casa e tomar um shake. Mas é abordado por dois policiais que vistoriam o veículo e encontram irregularidades.

No desenrolar da cena, o diálogo se volta para a possibilidade de escapar das infrações. Os agentes — um deles é Danone — pedem dois shakes para anular a multa de 50 mil meticais (em torno de 790 dólares). Duas garrafas de iogurte líquido são dadas aos "policiais de trânsito".

Imbróglio jurídico
O vídeo, com pouco mais de 4 minutos de duração, foi gravado pelo tio de Danone, Denilson Daniel, na província de Manica. Não passaria de uma postagem com engajamento local se não fosse a reação da Justiça moçambicana. Depois disso, ganhou enorme repercussão no país africano e também na Europa.

Em 29 de novembro, a 1ª Seção do Tribunal da cidade de Chimoio, na província de Manica, deu início ao julgamento do processo que acusa os envolvidos num crime de calúnia e difamação ao Estado. A Promotoria Pública interpretou o vídeo como "ridicularização" da polícia de trânsito, além de "ofensa e banalização" ao Estado.

Mas a sessão foi interrompida duas horas depois porque foi preciso criar condições para que fosse projetado o vídeo em questão. A corte também designou um perito em imagens para confirmar, ou não, se o garoto ao volante estava realmente conduzindo o automóvel. O julgamento foi retomado no dia 27 de dezembro.

De acordo com a imprensa moçambicana, a procuradora Belarmina Sitoi disse durante o julgamento de novembro que "na ótica do vídeo, (os agentes representados pelas crianças) limitam-se a extorquir os bens dos cidadãos. Há ainda indícios da prática de crime de exposição de pessoas a perigo pelo fato do senhor Denilson ter colocado um menor na direção de um veículo, fato que poderia fazer com que este se acidentasse".

O caso repercutiu negativamente junto à sociedade. E 24 horas depois do início do julgamento, a Procuradoria Distrital de Chimoio divulgou nota alegando que o processo não fora instruído contra as três crianças. O processo, segundo a Procuradoria, tinha como alvo Denilson, por indícios da prática do crime de exposição da pessoa a perigo, previsto nos termos do artigo 218 do Código Penal, pelo fato de aparecerem crianças na direção de um carro.

A nota criou novas divergências. De acordo com imprensa local, a acusação contra os três menores humoristas era real e foi lida no Tribunal pela representante do Ministério Público. Na fala dentro da corte, a procuradora arguiu que as crianças que participam do vídeo "denotam possuir, desde tenra idade, uma imagem pejorativa dos membros da PRM (Polícia da República de Moçambique), especificamente a Polícia de Proteção e a Polícia de Trânsito, que, na ótica do vídeo, limitam-se a extorquir os bens dos cidadãos". 

O julgamento foi concluído mesmo diante de tantas situações inusitadas juridicamente. A leitura da sentença do caso Valter Danone foi marcada para o dia 7 de fevereiro.

No conturbado julgamento, Denilson Daniel foi o único ouvido oficialmente pela corte. Foi acusado, no dia 27 de dezembro passado, de ter exposto as crianças a perigo, segundo comunicado divulgado pela procuradoria. No entanto, o próprio procurador em Chimoio, Remigí Guiamba, em entrevista à imprensa local, afirmou que os menores não estavam em perigo.

E no Brasil?
No Brasil é necessário haver uma separação entre a responsabilidade civil — reparação dos danos causados — e a responsabilidade criminal — punição pela prática de conduta proibida. Mas é preciso também observar outra separação: criança (até 12 anos de idade) de adolescente (entre 12 e 18 anos de idade), de acordo com os termos do artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

"Acerca da responsabilidade criminal, é certo, nos termos do artigo 104 do ECA, que nem criança, nem adolescente, pode cometer crimes ou contravenções penais. Quando um adolescente pratica um ato definido como crime ou contravenção, para a lei, o que ele fez é considerado um 'ato infracional'(ECA, artigo 103) – pelo qual ele será julgado com normas processuais distintas dos adultos, previstas no artigo 111 do ECA, a fim de acomodar o desenvolvimento típico da idade. E se condenado, não será punido, mas sim submetido às 'medidas socioeducativas' constantes do artigo 112 do ECA", explica Vinicius de Carvalho Carreira, advogado especialista em Direito de Família e das Sucessões e em Direito Processual Civil, presidente da Comissão de Infância e Juventude da OAB Bauru e sócio fundador da Carreira, Cardia & Bacci Sociedade de Advogados.

Já para as crianças, por força do artigo 105 do ECA, não existe ato infracional. Crianças que praticam condutas consideradas como crimes ou como contravenções penais são vistas pela lei como se estivessem em situação de vulnerabilidade e violação de direitos. Ou seja, os responsáveis e a sociedade em geral falharam com essa criança e ela precisa ser protegida, ressalta Carreira.

"Neste contexto, à criança pode ser aplicada qualquer das medidas protetivas previstas no artigo 101 do ECA, as mesmas que seriam aplicadas à uma criança em situação de violência, abuso ou abandono", diz o especialista, ao apontar que tudo isso tem relação com a responsabilidade criminal.

A responsabilidade civil tem outro critério cronológico, previsto nos artigos 3º a 5º do Código Civil: antes dos 16 anos, entre 16 e 18 anos e após os 18 anos. O caso da acusação e julgamento em Moçambique, de acordo com Carreira, equivaleria, no Brasil, à primeira hipótese, na qual a criança é tida como "absolutamente irresponsável" — não porque ela não sabe o que está fazendo, mas porque, mesmo que saiba, a responsabilidade não pode recair sobre ela. "No Brasil, um processo como o de Moçambique seria absolutamente ilegal", conclui Carreira.

História
No Brasil, muito antes do Estatuto da Criança e do Adolescente, até o ano de 1920, crianças também eram encarceradas. Foi pelas mãos do então presidente da República Washington Luiz que houve a instituição do Código de Menores, considerando inimputável o indivíduo até os 17 anos, respondendo por seus crimes a partir dos 18 anos.

Atualmente, o ECA substitui o antigo Código de Menores. "No Brasil após a queda do Império, o Código Penal de 1890 aduzia que crianças podiam ser julgadas a partir dos 9 anos de idade – e eram colocadas na cadeia, junto com os adultos e sofriam todos os tipos de violência", explica Patricia Gorisch, pós-doutora em Direitos Humanos pela Universidad de Salamanca, Espanha, e sócia do escritório Sociedade de Advogadas.

Em 1922, após a reforma do Código Penal, elevou-se a menoridade penal de 9 para 14 anos, e, com a instituição do Código de Menores, a prisão foi proibida e medidas socioeducativas passaram a ser aplicadas — como são aplicadas até hoje, pelo ECA.

De acordo com estimativas da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) há em todo o mundo mais de um milhão de crianças atrás das grades, culpadas por algum tipo de crime.

"Muitas são mantidas em condições abusivas e degradantes, sem acesso à educação. Há uma característica em comum nos países que prendem crianças: as sentenças que violam o Direito Internacional são desproporcionais. O Direito Internacional exige que a prisão de crianças seja 'em conformidade com a lei e seja usada apenas como medida de último recurso e pelo período de tempo apropriado mais curto'. Mas muitas crianças são detidas por atos que não deveriam ser considerados crimes, como faltar à escola, fugir de casa, fazer sexo consensual — ou mesmo fazer uma piada sobre corrupção em um país onde a corrupção é usual — como no Brasil", exemplifica Patricia.

"Nos Estados Unidos, onde cada estado da federação possui sua própria legislação, há a possibilidade até mesmo de prisão perpétua para menores. São inúmeros os casos noticiados. Um episódio recente diz respeito a um menino de 6 anos que disparou uma arma dentro da sala de aula e se encontra preso. Há mais tempo, um adolescente de 13 anos teria confessado o assassinato de uma criança de 4 anos e permaneceu preso por mais de 20 anos", relata Márcio Gesteira Palma, membro da Comissão de Processo Penal da OAB do Rio de Janeiro, advogado do Perilo, Costa, Fregapani e Palma Advogados Associados.

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