Opinião

A MPv 1.158/2023 e a autonomia do Coaf

Autor

  • Vladimir Aras

    é professor da UFBA e do IDP integrante do MPF mestre em Direito Público (UFPE) doutor em Direito (UniCeub) especialista MBA em Gestão Pública (FGV) e membro-fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i).

18 de janeiro de 2023, 11h14

1. Introdução
Entra governo e sai governo, e a estrutura orgânica da administração pública federal é alterada. Com a transição de poder em 1º de janeiro de 2023, houve a subdivisão do Ministério da Economia em três pastas, uma delas, o Ministério da Fazenda. A recriação desse ministério trouxe impactos ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), regulado pela Lei 13.974/2020 (Lei do Coaf) e pela Lei 9.613/1998 (Lei de Lavagem de Dinheiro), diplomas que fazem parte de um mesmo sistema normativo.

Criado em 1998 pelo artigo 14 da Lei 9.613/98, o Coaf integrava a estrutura do antigo Ministério da Fazenda. Mais de 20 anos depois, o órgão foi transferido para o Ministério da Justiça, pela MPv 870, de 1º de janeiro de 2019, ficando ali por um curto período, já que a MPv 886, de 18 de junho de 2019, o inseriu no então criado Ministério da Economia.

Pouco depois, a MPv 893, de 19 de agosto de 2019, deu ao Coaf a denominação de Unidade de Inteligência Financeira (UIF), com vinculação administrativa ao Banco Central do Brasil (BCB). Foi essa medida provisória que acabou se convertendo na Lei 13.974/2020, em vigor. Felizmente, no texto então sancionado, a UIF brasileira recuperou o seu nome original e, diferentemente do que se lê alhures, continua a se chamar Coaf.

Analisemos algumas das novidades da MPv 1.158, de 12 de janeiro de 2023, e dois de seus problemas: a autonomia do Coaf e suas finalidades.

2. Duas das alterações mais significativas promovidas na Lei 13.974/2020
A Medida Provisória 1.158/2023 colocou em xeque a autonomia do Coaf e o cumprimento pelo Brasil dos standards internacionais em relação às Unidades de Inteligência Financeira (UIFs)?

Vejamos a seguir a questão da autonomia do Coaf após a MPv 1.158/2023 e a abrangência de sua atividade de inteligência financeira.

2.1. A autonomia do Coaf após a MPv 1.158/2023
A Medida Provisória 1.158/2023 alterou a Lei 13.974/2020 e devolveu o Coaf ao Ministério da Fazenda, pasta na qual o órgão originalmente se situava. Agora o artigo 2º da Lei diz que o Coaf se vincula administrativamente ao Ministério da Fazenda, cabendo ao chefe dessa pasta nomear o presidente do Conselho e seus 12 membros e aprovar o seu regimento interno. Este foi o modelo vigente entre 1998 e 2019.

Foi mantida a autonomia técnica e operacional do Coaf, que já era assegurada pelo artigo 2º da Lei 13.974/2020, o que é essencial segundo os padrões do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi) e do Grupo de Egmont. O Gafi e o Grupo de Egmont são os dois mais importantes organismos internacionais contra a lavagem de ativos. Reúnem unidades de inteligência financeira (UIF) de vários países e estabelecem os seus standards de atuação por meio de normas de soft law [1].

O ponto mais polêmico da MP 1.158/2023 é, sem dúvida, a mudança de endereço da UIF brasileira. A volta do Coaf ao Ministério da Fazenda impacta negativamente a luta contra a lavagem de dinheiro? Na minha opinião, depende. Pouco importa onde o Coaf está organicamente inserido. Ao longo dos anos, nossa UIF já esteve no Ministério da Fazenda, no Ministério da Justiça, no Ministério da Economia e, até os primeiros dias de 2023, era submetida ao Banco Central do Brasil. O pingue-pongue ao longo do ano de 2019 não abalou a eficiência do Coaf. Sua volta ao âmbito da pasta da Fazenda tampouco teria esse efeito, por si só.

Note-se que a Recomendação 29 do Gafi, que trata das UIFs, não determina o locus onde elas devem estar. Espera apenas que as UIFs sejam centros nacionais de recebimento e análise de comunicações de operações suspeitas e de outras informações relevantes sobre lavagem de dinheiro, infrações penais antecedentes e financiamento do terrorismo, e de disseminação dos resultados de tais análises [2].

Na Nota Interpretativa à Recomendação 29 (NIR), o Gafi expressa que "não julga a escolha dos países por modelos específicos", o que equivale a dizer que há uma margem de apreciação nacional sobre o local onde será inserida cada UIF. No item 8 da seção E da NIR 29 esclarece-se que a UIF deve ser operacionalmente independente e autônoma, isto é, deve ter competência para cumprir suas funções livremente, "inclusive tomar por conta própria a decisão de analisar, solicitar e/ou disseminar informações específicas. Em todos os casos, isso significa que a UIF tem o direito independente de encaminhar ou disseminar informações para autoridades competentes" [3].

Essa ideia é complementada pelo item E.9 da NIR 29, segundo o qual, sempre que a UIF for instituída como parte de uma autoridade competente já existente, qualquer que seja esta, as funções principais da UIF devem ser distintas e separadas da instituição que a abriga. Até a MPv 1.158/2023, o arranjo institucional do Coaf se amoldava a essa situação.

Assim, bem compreendida a questão, o que importa não é o endereço da UIF, mas a sua efetiva autonomia técnica e operacional para analisar e difundir informações, a qualificação de seu corpo funcional, a reputação de seu presidente e de seus conselheiros, o cumprimento das Recomendações do Gafi, sua aderência concreta aos Princípios de Egmont e a difusão de inteligência financeira de qualidade e de forma célere, para a prevenção e a repressão a crimes graves, sem ingerências ou ameaças. Isso é também o que diz a NIR 29, seção F: toda UIF deve operar "livre de qualquer influência ou interferência política, governamental ou industrial indevida, que possa comprometer sua independência operacional".

Dito isso, é importante recordar que o Banco Central do Brasil adquiriu autonomia por força da Lei Complementar 179/2021, quando o Coaf já estava vinculado a essa autarquia bancária. Tal autonomia nos termos do artigo 6º da LC 179/2021 caracteriza-se pela ausência de vinculação a ministério, de tutela ou de subordinação hierárquica, e pela autonomia técnica, operacional, administrativa e financeira do Bacen.

Pode-se cogitar, primeiramente, que a desvinculação do Coaf ao Bacen por uma mera medida provisória representa uma ingerência na estrutura, na autonomia e nas competências do próprio Bacen, uma vez que o presidente do Coaf, conforme o artigo 4º, §5º, da Lei 13.974/2020, era indicado pelo presidente do Banco Central do Brasil. Com a MPv 1.158/2023, a nomeação será feita pelo Ministro da Fazenda, a quem competirá também aprovar o regimento interno da UIF brasileira, regular seu processo administrativo sancionador e indicar os membros de seu Conselho.

A alocação do Caof no novo Bacen, virtualmente independente do Poder Executivo, sem dúvida, fortalecia, por tabela, a independência do Coaf, na medida em que, desde a vigência da LC 179/2021, a diretoria do Bacen passou a ter, conforme o artigo 4º, mandato fixo de quatro anos, descasado do mandato do presidente da República. Ademais, o presidente e os diretores do Banco Central devem ser indicados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado Federal, o que lhes garante elevado grau de autonomia.

Portanto, é fácil concluir que a blindagem dos diretores do Bacen, autarquia à qual o Caof se subordinava, lhe transferia mais autonomia e instituía um escudo de proteção da UIF contra ingerências indevidas, ao sabor da política partidária ou de outros interesses. Vale dizer, a alocação antes vigente, dentro de uma autarquia especial, regulada por lei complementar, contribuía para a estabilização do órgão responsável pela análise e difusão da inteligência financeira que alimentará investigações e processos do Poder Judiciário, da polícia e do Ministério Público no cumprimento de suas funções constitucionais, em casos muitas vezes relacionados a pessoas politicamente expostas.

A alteração promovida em janeiro de 2023 pode ser vista assim, à luz da Recomendação 29 do Gafi e de sua Nota Interpretativa, como um enfraquecimento da autonomia operacional do Coaf, pelo aumento do risco de ingerência sobre suas atividades técnicas no campo da inteligência financeira.

2.2. As finalidades do COAF após a MPv 1.158/2023
A MPv 893/2019, aquela que passou a chamar o Coaf de UIF, determinava corretamente, no §1º do seu artigo 2º, que a nossa financial intelligence unity (FIU) seria responsável por "produzir e gerir informações de inteligência financeira para a prevenção e o combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e ao financiamento da proliferação de armas de destruição em massa". Estas são as três funções clássicas das UIFs em todo o mundo, conforme as 40 Recomendações do Gafi.

Contudo, quando a MPv 893/2019 foi convertida na Lei 13.974/2020, uma emenda alterou esse dispositivo, que passou a corresponder ao inciso I do artigo 3º, no qual se atribuía ao Coaf — já com seu nome recuperado — "produzir e gerir informações de inteligência financeira para a prevenção e o combate à lavagem de dinheiro". Ficaram de fora do texto legal as atividades de prevenção e repressão ao financiamento do terrorismo (CFT) e à proliferação de armas de destruição em massa (PF/WMD), na sigla em inglês), que também são apontadas pelos standards internacionais.

Agora, a MPv 1.158/2023 busca corrigir a inconsistência do artigo 3º, inciso I, da Lei 13.974/2020, isto é, a falta de menção expressa ao financiamento do terrorismo e à proliferação de armas de destruição em massa. A pretensão é tornar o texto mais abrangente, ao se dizer que cabe ao Coaf "produzir e gerir informações de inteligência financeira". De que tipo? Daquele mencionado nos artigos 14 e 15 da Lei 9.613/1998, que atribuem ao Coaf receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas na Lei de Lavagem de Dinheiro, e comunicar às autoridades competentes, por meio de relatórios de inteligência financeira (RIFs), suas conclusões quanto à existência de crimes nela previstos, de fundados indícios de sua prática, "ou de qualquer outro ilícito".

Ou seja, pretende-se tornar mais claro agora que o Coaf produz inteligência financeira, não apenas sobre atividades de lavagem de dinheiro, mas também sobre o financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa e sobre as infrações penais antecedentes à lavagem de capitais. A inteligência produzida pelo Coaf continuará a ser difundida ao Ministério Público e à Polícia Judiciária, com base no artigo 15 da Lei 9.613/1998.

Apesar de a supressão proposta pela MPv 1.158/2023 resolver o problema criado pela Lei 13.974/2020, não o faz da melhor forma. Mais clareza textual seria desejável para explicitar na norma todas as funções do Coaf no campo da inteligência financeira, evitando interpretações equivocadas quanto à sua competência.

3. Conclusão
A Medida Provisória 1.158/2023 ainda passará por apreciação do Congresso Nacional e é possível que seja alterada ou rechaçada. Tudo dependerá do balanço das forças políticas no Congresso Nacional, dada a sensibilidade do tema de que nos ocupamos. No entanto, como é próprio das medidas provisórias, suas alterações têm eficácia imediata no ordenamento jurídico.

Se há algo que deveria ser alterado no texto é o inciso I do artigo 3º da Lei 13.974/2020, para que ali, em lugar de uma supressão, tenha-se um acréscimo textual, de modo que caiba ao Coaf produzir, gerir e “difundir” informações de inteligência financeira "para a prevenção e a repressão à lavagem de dinheiro, ao financiamento do terrorismo e à proliferação de armas de destruição em massa", expressamente, nos termos das Recomendações 7 e 29 do Gafi e de suas Notas Interpretativas.

Ademais, ao apreciar a MP 1.158/2023, o Congresso Nacional poderá determinar com precisão se essa nova mudança de endereço do Coaf atende ao interesse público e que interesse público seria esse e se, de algum modo, a sujeição do Conselho ao Ministério da Fazenda pode realmente enfraquecer ou pôr em risco a autonomia técnica e operacional da UIF brasileira. Ao longo de suas mais de duas décadas de existência, já pudemos perceber que o Coaf deve estar firmemente ancorado na estrutura do Estado e distanciado de questões que possam desestabilizar sua capacidade operacional. Neste sentido, o Bacen parecia um porto seguro para o Coaf.

 


[1] GRUPO DE AÇÃO FINANCEIRA INTERNACIONAL. Padrões Internacionais de Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo e da Proliferação: as Recomendações do Gafi. Disponível em: https://www.fatf-gafi.org/media/fatf/documents/recommendations/pdfs/FATF-40-Rec-2012-Portuguese-GAFISUD.pdf. Acesso em: 17 jan. 2022.

[2] As Recomendações do Gafi, op. cit. Vide a Recomendação 29.

[3] As Recomendações do Gafi, op. cit. Vide o item E.8 da Nota Interpretativa à Recomendação 29.

Autores

  • é doutor em Direito (UniCeub), mestre em Direito Público (UFPE), especialista MBA em Gestão Pública (FGV), membro do MP desde 1993, atualmente no cargo de Procurador Regional da República em Brasília (MPF), professor assistente de Processo Penal da UFBA, secretário de Cooperação Internacional da PGR (2013-2017), fundador do Instituto de Direito e Inovação (ID-i) e editor do site www.vladimiraras.blog (Blog do Vlad).

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