Opinião

Para reconstruir o país é preciso conter a degeneração dos Poderes

Autor

  • Adriana Cecilio

    é professora de Direito Constitucional advogada especialista em Direito Constitucional mestra em Direito e autora da obra A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos.

18 de janeiro de 2023, 13h18

A origem dos três Poderes remonta à Idade Antiga. Platão, Aristóteles e, de forma mais completa, Políbio explicam esse desenvolvimento da tripartição do poder. Ensinam os mestres que as formas clássicas de governo — a monarquia, a aristocracia e a república —, quando exercidas em sua constituição pura, tendem a degenerar-se dada à falta de controle interno.

A monarquia, governo de um só, tende a degenerar-se em tirania. A concentração de poder sem limites nas mãos de um só levará o exercente do poder a abusar dele, transformando-o de monarca em um tirano. A aristocracia, governo de alguns — "os melhores entre o povo", no dizer de Políbio —, tende a degenerar-se em oligarquia. A república, governo da maioria, tende a degenerar-se em anarquia. Assim, para evitar essa degeneração, foi desenvolvida, na Roma Antiga, a teoria da Constituição mista, que tinha por escopo misturar essas três formas de governo.

À camada da sociedade composta pela realeza foram outorgados poderes próprios de uma monarquia. Ou seja, na figura do rei ou imperador ficavam concentradas decisões importantes que demandavam escolhas necessárias à administração da cidade-estado, facilitando assim a governabilidade. À nobreza foram atribuídas funções próprias da aristocracia. Cabia aos nobres, esse seleto grupo de pessoas bem preparadas, julgar temas complexos e assim tomar decisões com vistas à manutenção da paz dentro do corpo social. Ao povo, como é a maioria em qualquer nação, dentre outras competências, a mais significativa era a de criar as leis, a fim de as normas possuíssem a maior legitimidade possível.

As funções assim divididas funcionavam de forma harmônica, pois a estrutura oferecia recursos para que um grupo pudesse frear a atuação de outro, caso seus atos se revelassem danosos ao interesse comum. Essa engenharia política foi assim desenhada em razão da clara compreensão, pautada pela história, de que sem a existência de controles recíprocos a tendência natural de qualquer agente que exerça o poder é cometer abusos.

Séculos depois, esse conhecimento foi trazido novamente à tona com os ensinamentos de Montesquieu, na celebre obra Do Espírito das Leis. A separação dos Poderes foi incluída na Constituição dos Estados Unidos da América (1787) e na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). O Brasil importou todo o modelo de Estado estadunidense, com a Constituição de 1891, instituindo assim a tripartição dos Poderes em nosso país.

Essa longa, mas necessária, digressão histórica é essencial para explicar o momento político que estamos vivendo.

Os três Poderes possuem inspiração nas formas clássicas de governo: o Executivo, que administra o Estado, tem como parâmetro a monarquia; o Legislativo, que legisla e fiscaliza o Poder Executivo, remonta à república, e o Judiciário, que julga, tem a sua matriz histórica na aristocracia. Entretanto, a história revela que o poder que não encontra limites eficazes tende a degenerar-se.

O sistema de freios e contrapesos estabelecido no texto constitucional brasileiro prevê instrumentos capazes de conter abusos, por exemplo, o Poder Executivo pode vetar uma lei criada pelo Poder Legislativo, buscando evitar a criação de leis com vícios de inconstitucionalidade ou que violem o interesse popular. Ao Legislativo é dado processar o impeachment do chefe do Poder Executivo e dos membros do Poder Judiciário, destacando-se especialmente os membros do Supremo Tribunal Federal, limitando assim a atuação desses agentes estritamente ao que lhes compete realizar dentro dos parâmetros estabelecidos na Constituição e na lei que regulamenta o processamento do impeachment. O Poder Judiciário julga e realiza o controle de constitucionalidade dos atos praticados pelos outros Poderes. Esses são alguns exemplos de mecanismos que compõem o sistema de freios e contrapesos previsto na Constituição brasileira.

Esse sistema precisa funcionar de maneira eficiente para que os Poderes encontrem limites, evitando assim a prática de abusos por parte dos agentes que compõem essas funções estatais. Entretanto, o que vimos em nossa história recente foi que o impeachment não funcionou quando precisaria funcionar em relação ao chefe do Poder Executivo. O fato de o Poder Legislativo não fiscalizar com eficiência os atos praticados pelo presidente desencadearam uma forte reação por parte do Poder Judiciário, que adotou uma atuação de contenção de danos, por vezes talvez, ultrapassando os limites constitucionais, mas escorado na justificativa da necessidade de impedir ou evitar graves arbitrariedades.

Essa análise nos leva aos seguintes apontamentos:

A monarquia degenera-se em tirania quando o monarca é incapaz de estabelecer um vínculo de confiabilidade com o povo e passa então a governar pelo medo. Nos tempos antigos e em algumas experiências autocráticas pós-modernas, governar pelo medo ligava-se à repressão, medo da figura central que se encontrava no poder. O que vivenciamos foi uma forma diferente de expressar a tirania. O medo foi implantado através de fake news que envolveram uma parcela do povo em teorias da conspiração, levando as pessoas a crer em riscos e inimigos imaginários. Além dos abusos e violações constantes ao texto constitucional e do uso do poder para beneficiar parentes e amigos.

O medo do "comunismo", que colocaria em risco a propriedade privada; da "ideologia de gênero", que corromperia as crianças; "dos banheiros unissex", que seriam espaço de promiscuidade; da "fraude nas eleições", que levaria ao desrespeito da decisão popular; essas e outras graves mentiras amplamente divulgadas pelo ex-presidente e seu staff levaram muitas pessoas a sentir um sério temor por algo que não existe e nunca existirá. Mas o medo foi uma estratégia necessária para que Jair Bolsonaro pudesse se colocar como salvador do povo… O único capaz de solucionar os terríveis problemas que ele mesmo criou de forma fictícia. Uma tirania high-tech.

A república degenera-se em anarquia quando, ao invés de o grupo que está no poder cumprir o seu papel institucional buscando fazer leis que regulamente as relações sociais com vistas a buscar o bem comum, cada um visa seus próprios interesses. O desrespeito às leis e a ausência de uma atuação pautada pelo interesse comum geram uma anarquia que leva à ingovernabilidade.

O orçamento secreto foi um expediente que viabilizou aos parlamentares manejar mais de 19 bilhões sem nenhuma supervisão efetiva. As decisões não foram tomadas pensando no bem comum, mas sim nos interesses de cada parlamentar e, em especial, no atendimento dos acordos realizados com os parlamentares da base aliada ao Poder Executivo. O resultado da ausência de fiscalização efetiva por parte do Poder Legislativo e o uso inadequado do dinheiro público culminaram em um governo que não realizou nenhuma política pública. E cabe também mencionar a aprovação de leis que em nada se ligam ao atendimento dos interesses do povo brasileiro. Ou seja, a anarquia clássica.

Uma aristocracia degenera-se em oligarquia quando os membros do seleto grupo ao qual é confiado o poder passam a tomar decisões que eles julgam mais acertadas, em detrimento de se ater aos deveres que lhes foram confiados. No âmbito do Poder Judiciário, cabe aos seus membros atuar dentro dos limites legais e constitucionais. Agir para além do que o ordenamento jurídico permite configura-se no já conhecido e muito estudado ativismo judicial.

Ativismo nada mais é do que o julgador agir de acordo com o seu pensamento, ao arrepio dos parâmetros previstos na legislação. Ainda que as intenções possam ser boas e até pareçam necessárias, não deixa de ser a manifestação de uma degeneração da atuação judicial. Vimos decisões extremamente importantes e corajosas ao longo desses quatro anos, porém, mais recentemente, algumas que podemos talvez questionar se não extrapolaram as fronteiras legais, como, por exemplo, a decisão que determinou a quebra de sigilo dos empresários bolsonaristas, em agosto de 2022.

Portanto, para reconstruir o país é preciso que o Poder Executivo consiga conquistar a confiança do povo e debelar as teorias da conspiração que ainda amedrontam parcela significativa de cidadãos brasileiros. Cabe ao Poder Legislativo agir de forma transparente e cumprir seus desígnios fiscalizando de maneira adequada e isenta de interesses personalistas os atos do Poder Executivo. Para tanto, é essencial pôr fim ao orçamento secreto. E ao Poder Judiciário, que ainda está combatendo os atos antidemocráticos, cabe refletir sobre a necessidade de autocontenção em relação a algumas decisões.

Todas as atitudes que ultrapassam as balizas constitucionais comprometem a estabilidade do Estado Democrático de Direito. Não existe atuação degenerada benéfica. A curto ou a longo prazo, os prejuízos se manifestarão. Apropriar-se desses conhecimentos fará com que essa fase tão difícil de nossa história recente não tenha sido em vão. Que esse aprendizado nos faça amadurecer e avançar como nação!

 

– Texto inspirado na obra A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos.

Autores

  • é professora de Direito Constitucional, advogada, especialista em Direito Constitucional, mestra em Direito, autora da obra A Separação dos Poderes e o Sistema de Freios e Contrapesos e consultora de Direito Constitucional da Comissão de Observatório Eleitoral da OAB-SP.

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