Opinião

Em defesa das instituições democráticas — não é terrorismo

Autor

17 de janeiro de 2023, 14h17

Atendendo à tendência normativa internacional, a recente Lei 14.197/21 estabeleceu os crimes contra o Estado Democrático de Direito na Parte Especial do Código Penal, todos em franca tutela do Estado de Direito e das suas instituições democráticas  fundamentalmente, condutas contra a soberania nacional, as instituições democráticas, o funcionamento dessas instituições no processo eleitoral e a regularidade dos serviços públicos essenciais. Não se discute, portanto, a necessidade de intervenção penal no campo da ordem democrática, sobretudo em razão da expressiva relevância dos bens jurídicos que foram protegidos. 

O capítulo II, do título XII, "Dos crimes contra as instituições democráticas", conta com dois tipos penais: abolição violenta do Estado Democrático de Direito (artigo 359-L) e golpe de Estado (artigo 359-M). Tais crimes tratam do Estado de Direito que se manifesta justamente por meio da regularidade e do funcionamento de suas instituições democráticas [1]. Seria tecnicamente melhor que o título do capítulo fosse também dedicado ao Estado Democrático de Direito, vinculando o nomen juris aos crimes seguintes, que não tratam especificamente da tutela das instituições democráticas, o que acarretaria uma qualificação jurídica mais adequada. De outro lado, não se pode esquecer que a novel legislação fulminou o modelo de segurança nacional imposto no Brasil, adotando, com a tutela das instituições democráticas, um modelo constitucional de proteção e defesa do Estado [2]. Em meu juízo, a opção pela criminalização não macula uma proposta de intervenção mínima de Direito Penal e contribui para a superação definitiva do antigo modelo autoritário, com a adequação ao paradigma trazido pelo texto constitucional [3], que protege a organização política do Estado, fundamentalmente em sua órbita interna.

Ocorre que a lei não conceituou o que sejam as instituições democráticas e as figuras penais tutelam o próprio Estado de Direito  em sua essência, a manutenção da ordem democrática. No ponto, quando se trata de proteção das instituições democráticas não há empecilho para um conceito alargado. A expressão deve ser compreendida de forma ampla, como instrumento do Estado que opere em favor de sua integridade, seu funcionamento e de sua própria realização enquanto Estado de Direito. Logo, o Parlamento, o Executivo, o Judiciário e o serviço público essencial, pois a democracia é estruturada e se manifesta justamente por meio dessas instituições. A sua defesa representa a própria proteção da ordem democrática e a plena realização do Estado de Direito por meio da concretização dos direitos fundamentais [4].

Diante do quadro legal brasileiro, o que se viu na capital da República no último dia 8 de janeiro representa gravíssima ofensa a ordem democrática e suas instituições. Há indícios de crimes de alta repercussão. Os meios de comunicação mostraram uma série de crimes que foram praticados com violência e de forma grupal. É o que a doutrina denomina crime de multidão [5], do que são exemplos os linchamentos, as agressões de torcidas organizadas e as invasões coletivas de propriedades privadas ou de órgãos públicos. O que geralmente ocorre é que o tumulto praticado pela multidão que delinque deriva do sentimento de uma experiência de frustração que é comum a todos os membros do grupo, pessoas que, reunidas, com maior facilidade perdem os freios inibitórios, o que consequentemente acarreta o relaxamento do vínculo moral à lei. No plano jurídico-penal, essas situações enquadram-se na autoria coletiva, que torna típica qualquer conduta que integre o conjunto da ação criminosa da turba, havendo assunção de risco, ainda quando a prática é por instinto imitativo.

No caso do crime previsto no artigo 359-L do Código Penal, que é classificado como comum e formal, o sujeito ativo não impõe qualquer condição especial, é aquele que tenta, com o preenchimento das exigências normativas, como a violência e a grave ameaça, a abolição da democracia. A doutrina trata a figura jurídica como um crime de atentado, também denominado crime de empreendimento, aquele em que se prevê na descrição típica o comportamento de se tentar o resultado naturalístico, afastando-se assim a possibilidade de reconhecimento da modalidade da tentativa [6]. É claro que o crime exige como elemento subjetivo o dolo específico, pois há um fim especial de agir, ainda que praticado em crime grupal. No caso, tem especial importância a elementar típica de impedimento ou restrição do exercício dos poderes constitucionais, entendidos como os três poderes do Estado  Executivo, Legislativo e Judiciário. Atacar violentamente a Corte de Justiça do país, por exemplo, é forma de impedir ou restringir o exercício do poder constitucional, transparecendo que o ataque da turba pretendia a abolição do Estado democrático de Direito.

De outro lado, é um erro invocar a Lei Antiterror na situação dos ataques de Brasília, pois o crime de terrorismo no Brasil, ao contrário de outros países, é praticado por um ou mais indivíduos, desde que por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, e quando cometido com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública (artigo 2º, Lei 13.260/16). À primeira evidência, não estão presentes no ocorrido os imperativos legais do crime de terrorismo, além de faltar a essência do crime, qual seja: a finalidade de provocar terror social ou generalizado.

Nesse ponto, há de se ter redobrada cautela, pois a própria lei nacional excepciona as manifestações políticas ao tratar da criminalidade terrorista (parágrafo 2º do artigo 2º: não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei).  

Insistir no equívoco técnico é uma aventura jurídica arriscada. Aqui, o risco de uma interpretação alargada do crime de terrorismo pelo Supremo Tribunal Federal pode soar como usurpação de tarefa do legislativo. Além disso, a indevida ampliação ou inadequação técnica de eventual acusação gerará discussão jurídica desnecessária e retardará as punições dos crimes efetivamente praticados. Aliás, convém lembrar que o tratamento da criminalidade terrorista tem produzido efeitos deletérios no modelo garantista ao redor do mundo. É o que ocorreu após a publicação do Patriot Act, nos Estados Unidos, da Lei de Segurança Nacional e de Luta ao Terrorismo do Reino Unido e das declarações de Estado de emergência que acompanhamos na Europa, quando da guerra contra o terror [7]. O antiterrorismo possibilitou um discurso de ampliação dos poderes do Executivo, inclusive para rastrear e interceptar comunicações dos cidadãos. A experiência internacional revela a criação de uma série de limitações aos direitos fundamentais, notadamente dos direitos de liberdade, de comunicação, e do alargamento do tempo de prisão, assim como da limitação do habeas corpus, na redefinição do alcance da proibição da tortura e do tratamento cruel e degradante [8].

Até o momento, pouco se sabe sobre os eventuais agentes privados e públicos que realizaram, auxiliaram e/ou permitiram as práticas ilícitas perpetradas em Brasília. Os fatos dependem de pronta apuração. Há pessoas que praticaram crimes e outros tantos que se manifestaram e que não realizaram crime algum, provavelmente. Por outro ângulo, o que se percebe é que aqueles que organizaram e lideraram os ataques, para além de incidirem em crimes, conseguiram algo que não se viu nos últimos anos no Brasil, reuniram rapidamente, e do mesmo lado, o atual presidente da República e os chefes dos demais Poderes, os governadores dos estados, os ministros da Suprema Corte, o procurador-geral da República e os ministros de Estado. E como era de se esperar, reuniram-se todos em repúdio aos ataques ao patrimônio público e em favor da democracia.

 


[1] WUNDERLICH, Alexandre, Crime político, segurança nacional e terrorismo, SP: Tirant lo Blanch, 2020, p. 46.

[2] REALE JÚNIOR, Miguel; WUNDERLICH, Alexandre, "Parecer sobre a Lei de Segurança Nacional e a defesa do Estado de Direito no Brasil", Revista Brasileira de Ciências Criminais, SP: Revista dos Tribunais, n. 182, ano 29, ago./2021.

[3] "Artigo 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: […] II − a cidadania; III − a dignidade da pessoa humana; […] V − o pluralismo político"; "Artigo 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:[…] II − prevalência dos direitos humanos; […] VI − defesa da paz; VII − solução pacífica dos conflitos; VIII − repúdio ao terrorismo […],"; "Artigo 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I − zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público […]. No título V, consta: 'Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas'".

[4] WUNDERLICH, Alexandre, Crime político, segurança nacional e terrorismo, p. 272.

[5] LIMA, Luiz Fernandes, "Os crimes das multidões", Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 53, p. 322-342, 1958. [Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66299. Acesso em: 16 jan. 2023.]

[6] SOUZA, Luciano Anderson, Direito Penal: Parte Especial: artigos 312 a 359-R do CP. 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 793.

[7] VALENTE, Manuel Monteiro Guedes, Direito penal do inimigo e terrorismo: o "progresso ao retrocesso", 5ª ed., São Paulo: Almedina, 2021, p. 117 et seq; WUNDERLICH, Alexandre, "A criminalização do terrorismo no Brasil: a exceção do crime político a partir da Lei nº 13.260/2016", In: VALENTE, Manuel (coord.), Os desafios do Direito (penal) do Século XXI, Lisboa: Ledit Edições, 2018, p. 101-120.

[8] PÉREZ ROYO, Javier (dir.); CARRASCO DURÁN, Manuel (coord.), Terrorismo, democracia y seguridad, en perspectiva constitucional, Madrid: Marcial Pons, 2010; especialmente: GÓMEZ CORONA, Esperanza, "Estados Unidos: política antiterrorista, derechos fundamentales y división de podres", p. 95; CARRASCO DURÁN, Manuel, "Medidas antiterroristas y Constituición, tras el 11 de septiembre de 2001", p. 27. Ver ainda: BACHMAIER WINTER, Lorena, Terrorismo, proceso penal y derechos fundamentales, Madrid: Marcial Pons, 2012 e HUSTER, Stefan; GARZÓN VALDÉS, Ernesto; MOLINA, Fernando, Terrorismo y derechos fundamentales, Madrid: Fundación Coloquio Jurídico Europeo, 2010.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!