Público & Pragmático

Contratação direta ilegal à luz da nova Lei de Licitações e Contratos

Autores

  • Tomás Tavares de Alencar

    é formado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) advogado mestrando em Direito Administrativo no IDP especialista em Direito Eleitoral e Direito Administrativo com atuação expressiva em favor entes municipais e gestores públicos e presidente da Comissão de Direito Municipal da Ordem dos Advogados do Brasil — Seccional de Pernambuco.

  • Guilherme Benício de Castro Neto

    é advogado graduado pela Universidade Federal da Paraíba mestrando em Direito Administrativo Contemporâneo no IDP/Brasília e secretário legislativo-geral da Assembleia Legislativa da Paraíba.

15 de janeiro de 2023, 8h00

1. Introdução
A Constituição da República de 1988 dispôs em seu artigo 37, XXI, que "as obras, serviços, compras e alienações" realizadas pela administração pública serão, como regra, precedidas de licitação pública "que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes" que desejem pactuar com o poder público.

Com vistas a regulamentar o citado normativo constitucional, foi criada a Lei Federal nº 8.666/1993, a qual trouxe expressivos avanços às contratações públicas, estabelecendo os parâmetros e princípios que devem nortear os certames licitatórios, bem como delineando os procedimentos a serem adotados, as modalidades cabíveis, os limites, etc.

Em determinadas situações, contudo, essa própria legislação, por explícita autorização da Carta Magna, veio a estipular exceções à regra geral da licitação, nas quais a realização do certame seria dispensável, dispensada ou inexigível. Tais hipóteses de contratação direta, contudo, devem ser interpretadas restritivamente, não podendo servir como subterfúgio aos gestores que pretendem favorecer determinado particular em detrimento de outros e/ou preterir a proposta mais vantajosa à administração pública.

Assim, com vistas a salvaguardar a Carta Magna e coibir práticas que, utilizando-se de instrumentos lícitos, busquem alcançar fins ilícitos, a própria Lei nº 8.666/93 tipificou como crime, em seu artigo 89, a conduta de dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses ou formalidades legais.

Ocorre que, por já vigorar há quase três décadas, tal legislação carecia de naturais e benfazejas atualizações, razão pela qual, em abril de 2021 foi sancionada uma Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLCA), a Lei nº 14.133/21, a qual se prestou a trazer necessárias e substanciosas atualizações às formas, modalidades e regras das contratações públicas.

Nesse sentido, especificamente quanto ao aspecto penal, cabe esclarecer que a Nova Lei veio imediatamente a revogar, e de forma integral, todos os artigos que tratavam dos crimes licitatórios previstos na Lei nº 8.666/93, vindo a inseri-los, mas com outra nomenclatura, na parte dos "Crimes Contra a Administração Pública" do Código Penal, através da criação do "Capítulo II-B", o qual passou a tratar de forma codificada dos "Crimes em Licitações e Contratos Administrativos".

Bom que se diga, todavia, que embora a maioria dos crimes inseridos no Código Penal já encontrassem guarida na Lei Federal nº 8.666/93, estes sofreram alterações com o advento da nova legislação, notadamente no seu preceito secundário (sanctio iuris), tendo havido, de forma geral, um agravamento das penas previstas, seja pela ampliação das penas cominadas, seja pela progressão do regime de detenção para o regime de reclusão.

Já no tocante ao preceito primário, que é aquele que detalha a conduta típica propriamente dita, não ocorreram grandes alterações em relação aos tipos penais outrora previstos na antiga Lei de Licitações e Contratos, à exceção do crime disposto no retromencionado artigo 89, agora denominado de "contratação direta ilegal", o qual passou a ser disciplinado no artigo 337-E do Código Penal com diversas alterações, inclusive tornando atípica parte da conduta antes apenada.

Por essa razão, e considerando que tal dispositivo é um dos mais importantes na preservação de contratações públicas hígidas e vantajosas à administração pública, bem como que as inovações trazidas ao crime de contratação direta ilegal foram uma das principais alterações advindas na NLLCA, este será o objeto de estudo do presente artigo.

2. Uma análise comparada do crime de contratação direta ilegal
O crime de contratação direta ilegal, conhecido por outra nomenclatura antes de ser inserido no Código Penal, nasceu com o advento da Lei nº 8.666/93, a qual veio a regulamentar o artigo 37, XXI, da Constituição Federal, instituindo normas para licitações e contratos da Administração Pública.

Com o disciplinamento das normas licitatórias, também foram estipuladas as situações em que esse procedimento de contratação deveria ou poderia ser excepcionado, de modo a dar ensejo às contratações diretas. Todavia, exatamente para se evitar que tais exceções dessem azo ao compadrio, ao favorecimento, bem como à preterição do interesse público, definiu-se como crime, ainda na mesma legislação, o uso inadequado dos institutos de dispensa e inexigibilidade, nos termos do que estabeleceu o artigo 89 da citada lei, in verbis:

"Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:

Pena – detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público."

Esta foi a origem do crime de contratação direta ilegal, que vigorou por quase 28 anos em lei especial, quando foi revogado pela Lei nº 14.133/21, a qual veio a inserir no Código Penal o artigo 337-E, trazendo nova redação e uma nova roupagem ao delito em testilha, senão vejamos:

"Art. 337-E. Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa."

A partir de então, houve a mudança não só na denominação do tipo penal sob análise, como também de seus diversos aspectos, as quais serão objeto de detida e cuidadosa análise neste artigo.

De início, cabe destacar que a simples inclusão deste crime no título XI do Código Penal já provocou uma consequência importante no combate à prática delituosa, tendo em conta que, uma vez inserido formalmente na parte dos crimes contra a administração pública, não pode mais a prática de tal tipo penal ser relativizada com base no Princípio da Insignificância, tendo em vista que o bem jurídico a ser protegido é, mais do que o aspecto patrimonial, a probidade administrativa, a isonomia, impessoalidade e a moralidade pública [1].

Além disso, essa simples mudança também acabou por ensejar uma maior efetividade na reparação patrimonial do Estado, vez que, sendo formalmente definido como crime contra a administração pública, a progressão de regime pelo condenado fica condicionada à reparação do eventual dano causado aos cofres públicos, nos termos do que determina o §4º do artigo 33 do CP.

Ademais, quanto à alteração ocorrida na própria redação do delito, se observa que houve o abandono dos termos "dispensar" e "inexigir" para se adotar expressões como "admitir", "possibilitar" e "dar causa" à contratação direta, o que, apesar de não ensejar expressiva alteração no conteúdo da norma, provocou um maior alargamento do tipo penal sob análise, por tratar-se de condutas mais gerais, dando ensejo, inclusive, a debates sobre a possibilidade do cometimento do crime de "dispensar ou inexigir fora das hipóteses legais" também por omissão, e não apenas de forma comissiva (FERREIRA, 2021, p.26).

Verifica-se, ainda, e de forma mais clarividente, que a alteração da norma também provocou a efetiva exclusão da conduta de "deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade", antes prevista no artigo 89 da Lei nº 8.666/93. Assim, as falhas procedimentais ocorridas quando da elaboração de contratações diretas tornaram-se conduta atípica, um irrelevante na esfera penal, tendo, portanto, se operado a "abolitio criminis" da referida conduta (FONTENELLE, 2021, p. 2).

Outra grande mudança que se verifica no tipo penal sob açoite é a alteração da pena cominada, passando-se de uma previsão mais branda, de três a cinco anos de detenção e multa, para uma previsão mais severa, de quatro a oito anos de reclusão e multa. Tal atualização da pena prescrita significou, mais do que um enrijecimento penal com fito de dissuadir a prática criminosa, um avanço importante no combate ao crime de contratação direta ilegal, vez que veio a permitir, por exemplo, a utilização de métodos mais sofisticados de investigação, como a possibilidade de uso de interceptação telefônica, a qual só passou a ser possível pela alteração da pena de detenção para reclusão2.

Além disso, essa modificação da pena de detenção para de reclusão também veio a permitir que o início de seu cumprimento se dê em regime fechado, o que antes não era possível, constituindo mais uma inovação a contribuir para refutar tal prática criminosa e, principalmente, para auxiliar na reparação de eventual dano ao erário, tendo em vista que o início do cumprimento da pena em regime fechado, associado a questão da progressão de regime ficar condicionada à reparação do eventual dano causado, torna muito mais efetivo esse ressarcimento aos cofres públicos.

Bom assinalar, ademais, que o aumento da pena mínima também provocou repercussão na possibilidade de celebração de acordos de não persecução penal (ANPP), uma vez que a Lei nº 13.964/19 prevê como um dos requisitos para negociação penal a existência de pena mínima inferior a quatro anos, não sendo mais esse o caso do tipo penal sob análise, o que contribuiu para mitigar a sensação de impunidade que existia na sociedade, decorrente, em boa medida, de acordos firmados com o Ministério Público que buscavam tão somente reparar o erário, sem se preocupar em estabelecer consequências aos investigados (LAGO, et al, 2021. p. 05).

Cabe pontuar, ainda, que outra repercussão trazida pelo artigo 337-E do CP foi a exclusão do parágrafo único do artigo 89 da Lei nº 8.666/93, deixando de existir tal previsão na NLLCA, muito embora, na prática, essa alteração não venha a impedir ou a anistiar a responsabilização daquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da contratação direta ilegal, vez que este já estaria incluído como sujeito ativo do crime em epígrafe por força do próprio caput do artigo em evidência. Isso porque, quem concorre para consumação da ilegalidade ou se beneficia desta, nada mais está fazendo do que admitindo, possibilitando ou dando causa à contratação direta ilegal (FIGUEIREDO; VELLOSO, 2021, p.05).

Por último, resta ainda pontuar que, por se tratar de uma norma penal em branco, o delito em referência também sofre reflexos das alterações ocorridas no disciplinamento dos institutos da dispensa e inexigibilidade de licitação, vez que quando a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos alarga as possibilidades legais de realização de contratações diretas pela administração pública, acaba por reduzir, consequentemente, as hipóteses de configuração da conduta tipificada como crime.

Nesse sentido, cabe esclarecer que a Lei nº 14.133/21 trouxe, nos seus artigos 74 a 76, inovações quanto às regras de contratação direta, notadamente quanto ao aumento do valor máximo da dispensa de licitação em razão do valor, bem como a exclusão da "singularidade" como requisito para contratação por inexigibilidade de serviços técnicos especializados, alterações substanciais nos institutos de contratação direta que, consequentemente, provocaram a descriminalização de práticas antes tidas como ilegais.

3. Considerações finais
Diante de todo o exposto, verifica-se que apesar de uma aparente continuidade normativo-típica do crime de dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses legais, diversas foram as inovações trazidas pela Nova Lei de Licitações e Contratos ao delito em referência, não havendo que se falar que, in casu, operou-se uma simples manutenção da figura criminosa através de outro dispositivo legal.

Desta feita, percebe-se que a nova legislação licitatória trouxe significativos avanços ao ordenamento jurídico brasileiro, notadamente no combate à contratação direta ilegal, avanços estes que se materializam tanto pela descriminalização de condutas de menor reprovabilidade social, que acabavam por relativizar a gravidade do delito sob açoite, como pelo maior enrijecimento da norma em quase todos os aspectos, o que tende não só a punir mais severamente o infrator, como a desincentivar com maior efetividade a prática da conduta tipificada.

 


[1] SÚMULA 599, CORTE ESPECIAL

[2] Lei nº 9.296/96, Art. 2°. Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses: (…) III – o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção.

REFERÊNCIAS:

FERREIRA, Otávio Sendtko. O dolo específico e o efetivo prejuízo ao erário na responsabilização penal pela contratação direta no TJSC. 2021.

FONTENELE. Vivian Tavares. Novos crimes da nova lei de licitações: saiba mais. Master Juris. 2021. Disponível em: https://masterjuris.com.br/novos-crimes-da-nova- lei-de-licitacoes-saiba- mais/#:~:text=Impedir%2C%20perturbar%20ou%20fraudar%20a,tr%C3%AAs)%20a nos%2C%20e%20multa.&text=E%2C%20do%20mesmo%20modo%20que,liberdade%20e%20multa)%20s%C3%A3o%20cumulativas. Acesso em: 24 de outubro de 2022.

FIGUEIREDO; VELLOSO. Aspectos penais da nova lei de licitações e contratos administrativos. Figueiredo & Velloso advogados associados. p. 05. Disponível em: https://figueiredoevelloso.com.br/aspectos-penais-da-nova-lei-de-licitacoes-e- contratos-administrativos. Acesso em 24 de outubro de 2022.

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17. ed. São Paulo: RT, 2016.

LAGO, Natasha et al. Mudanças penais da nova Lei de Licitações. p. 2. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021abr-05/opiniao-mudancas-penais-lei-licitacoes. Acesso em: 25 de outubro de 2022.

LUCCHESI, Guilherme Brenner e NOGARI, Maria Victoria Costa. Nova lei de licitações: Em meio ao espírito punitivista, uma abolitio criminis. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/343497/novalei-de-licitacoes-em-meio-ao-espirito-punitivista. Acesso em: 23 de outubro de 2022.

PINHEIRO, Igor Pereira. Crimes Licitatórios. Leme. SP: Mizuno, 2021.

SCALCON, Raquel Lima. O impacto das decisões de Tribunais de Contas sobre o exame judicial da tipicidade objetiva do crime de dispensa ou inexigibilidade ilegal de licitação (art. 89, lei 8.666/93) e do novo crime de contratação direta ilegal (art. 337-e, cp). Revista da CGU, v. 13, n. 23. 2021. Disponível em: https://revista.cgu.gov.br/Revista_da_CGU/article/view/388/265. Acesso em: 24 de outubro de 2022

Autores

  • é formado em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), advogado, mestrando em Direito Administrativo no IDP, especialista em Direito Eleitoral e Direito Administrativo, com atuação expressiva em favor entes municipais e gestores públicos, e presidente da Comissão de Direito Municipal da Ordem dos Advogados do Brasil — Seccional de Pernambuco.

  • é advogado graduado pela Universidade Federal da Paraíba, mestrando em Direito Administrativo Contemporâneo no IDP/Brasília e secretário legislativo-geral da Assembleia Legislativa da Paraíba.

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