Opinião

A precária tutela penal do Estado de Direito

Autor

  • Fauzi Hassan Choukr

    é pós-doutor pela Universidade de Coimbra doutor e mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo especialista em Direitos Humanos pela Universidade de Oxford (New College) e em Direito Processual Penal pela Universidade Castilla la Mancha com capacitação profissional para o sistema acusatório junto ao Centro de Estudos Jurídicos das Américas (Ceja-OEA) pesquisador convidado do Instituto Max Planck para Direito Penal Estrangeiro Internacional e Criminologia (1997 a 2008) pesquisador convidado do Collège de France cátedra sob regência da professora Mirreile Delmas-Marty (2005 a 2011) e coordenador do PPGD da Facamp (programa aprovado pela Capes).

13 de janeiro de 2023, 16h17

O Brasil redemocratizado em 1988 conheceu muito tardiamente a reconstrução de um aparato penal de tutela do Estado de Direito, previsões que só vieram ao mundo jurídico em 1º de setembro de 2021 pela Lei 14.197. Convivia-se, desde 1983, com a Lei 7.170 concebida ainda no regime de exceção e que atualizava outra norma daquele período, o Decreto Lei 898, de 29/9/1969.

Tema que raramente frequenta o quotidiano das preocupações acadêmicas no campo jurídico [1], como, de resto, são os temas correlatos à Justiça de Transição, acostumou-se a ver com alguma naturalidade que a defesa penal do Estado de Direito se valesse de uma construção normativa construída ao longo de período ditatorial.

A tramitação, por exatos 30 anos, do PL 2.462/1991 [2] do então deputado Helio Bicudo, que desencadeou o processo legislativo que culminaria com a lei de 2021, acelerado que foi pelo momento político vivido desde 2018, comprova a dificuldade não só jurídica de enfrentamento do tema como, de forma mais ampla, o reticente comportamento social de enfrentar, de maneira madura, as necessárias transformações sociais para consolidação da democracia.

Ao final desse longo percurso legislativo chegou-se à revogação da então vigente Lei de Segurança Nacional procedendo-se as tipificações de conduta inseridas no artigo 359 A a N do Código Penal.

Aparato legal que recai sobre a própria manutenção da democracia, tem-se que as penas mínimas cominadas em abstrato permitem, a priori, cumprimento de pena em regime aberto ou mesmo sua substituição por penas restritivas de direitos, se tomadas isoladamente cada uma das condutas tipificadas. A conduta de roubo, com todos seus possíveis desdobramentos e causas de aumento de pena é, proporcionalmente falando, apenada de forma mais gravosa e com consolidada interpretação de imposição de regime de cumprimento de pena mais gravoso.

Há, contudo, lacunas sistêmicas e de tipificação que merecem ser refletidas. A conduta prevista na lei de terrorismo (Lei 13.260, de 16/3/2016) de financiamento aos atos definidos como tais precisaria ter sido espelhada na legislação renovada de proteção ao Estado de Direito, não apenas em relação a pessoas físicas, mas, também, tendo sua discussão ampliada para pessoas jurídicas [3].

No campo processual penal, tais condutas não haveriam de permitir, de qualquer forma, a possibilidade de formas alternativas de cumprimento de pena, cuja execução também deveria contar com regras específicas mais severas para a passagem, no transcurso da execução da pena, aos estágios institucionalmente menos controlados sobre a liberdade da pessoa sentenciada.

Ao final, reitero posição assumida em outro texto: às potenciais críticas de que se trata de uma estratégia expansionista do sistema penal, algo que preocupa segmentos da comunidade acadêmica, em particular no estudo da criminologia, a resposta parece-nos uma só: que se há um campo que pode, ainda, legitimar o sistema penal é aquele da proteção do Estado de Direito e dos direitos fundamentais. Defendê-lo com o sistema penal, como última ratio, mas de maneira assertiva, é o mecanismo para tentar evitar sua ruptura.

 


[1] Com raras exceções como Alexandre WUNDERLICH, em Crime político, segurança nacional e terrorismo. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. Também DO TERRORISMO, ASCENSÃO. AS INICIATIVAS DE REFORMA À LEI DE SEGURANÇA NACIONAL NA CONSOLIDAÇÃO DA ATUAL DEMOCRACIA BRASILEIRA: DA INÉRCIA LEGISLATIVA NA DEFESA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO À. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 107, n. 2014, p. 265-305, 2014.

[2] Que contou com inúmeras outras propostas legislativas ao longo dessas décadas. A ver em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2004075&filename=PPP+1+CEURG+%3D%3E+PL+2462/1991

[3] A respeito nosso recente artigo PESSOA JURÍDICA E SUA RESPONSABILIDADE EM ATOS ATENTATÓRIOS AO ESTADO DE DIREITO publicada em https://juridicamente.info/pessoa-juridica-e-sua-responsabilidade-em-atos-atentatorios-ao-estado-de-direito/

Autores

  • é pós-doutor pela Universidade de Coimbra, doutor e mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo, especialista em Direitos Humanos pela Universidade de Oxford (New College) e em Direito Processual Penal pela Universidade Castilla la Mancha, com capacitação profissional para o sistema acusatório junto ao Centro de Estudos Jurídicos das Américas (Ceja-OEA), pesquisador convidado do Instituto Max Planck para Direito Penal Estrangeiro, Internacional e Criminologia (1997 a 2008), pesquisador convidado do Collège de France, cátedra sob regência da professora Mirreile Delmas-Marty (2005 a 2011) e coordenador do PPGD da Facamp (programa aprovado pela Capes).

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