Opinião

Ainda a (contra)reforma da Lei de Improbidade Administrativa

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12 de janeiro de 2023, 17h15

O ano de 2022 já acabou, mas as revisões que o Supremo Tribunal Federal tem feito na Lei de Improbidade (LIA) parecem não ter fim.

Dia 27 de dezembro passado, o ministro Alexandre de Moraes, na condição de relator da ADI 7.236, ajuizada pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), deferiu parte da liminar requerida e suspendeu, às margens do recesso forense, vários dispositivos inseridos na LIA pela Lei Federal 10.230/21. E, embora se possa discordar das alterações promovidas em 2021 pelo legislador, a verdade é que todas foram feitas dentro dos quadrantes do §4º do artigo 37 da Constituição Federal ("Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível").

Já nas ADIs 7.042 e 7.043, que foram julgadas em agosto desse ano, para declarar a inconstitucionalidade do caput e dos §§ 6º-A e 10-C do artigo 17, assim como do caput e dos §§ 5º e 7º do artigo 17-B, e, em parte, do §20 do artigo 17 da LIA, a maioria dos ministros do STF optou por alterar a vontade do legislador a partir de fundamentos no mínimo questionáveis. Exemplo maior foi reconhecer matéria constitucional no dispositivo que atribuía a legitimidade de agir apenas ao Ministério Público. No mesmo sentido foi a análise das alterações relativas à prescrição, feita no julgamento do RE 843.989 (Tema 1.199 da Repercussão Geral), pois não se cuidava de matéria constitucional.

Agora, liminarmente, o Supremo suspende a eficácia de mais seis dispositivos da lei: artigo 1º, §8º ("Não configura improbidade a ação ou omissão decorrente de divergência interpretativa da lei, baseada em jurisprudência, ainda que não pacificada, mesmo que não venha a ser posteriormente prevalecente nas decisões dos órgãos de controle ou dos tribunais do Poder Judiciário"); artigo 12, §1º ("A sanção de perda da função pública, nas hipóteses dos incisos I e II do caput deste artigo, atinge apenas o vínculo de mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração, podendo o magistrado, na hipótese do inciso I do caput deste artigo, e em caráter excepcional, estendê-la aos demais vínculos, consideradas as circunstâncias do caso e a gravidade da infração"); artigo 12, §10 ("Para efeitos de contagem do prazo da sanção de suspensão dos direitos políticos, computar-se-á retroativamente o intervalo de tempo entre a decisão colegiada e o trânsito em julgado da sentença condenatória"); artigo 17-B, § 3º ["Para fins de apuração do valor do dano a ser ressarcido, deverá ser realizada a oitiva do Tribunal de Contas competente, que se manifestará, com indicação dos parâmetros utilizados, no prazo de 90 (noventa) dias"]; artigo 21, §4º, ["A absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)"]; artigo 23-C ("atos que ensejem enriquecimento ilícito, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de recursos públicos dos partidos políticos, ou de suas fundações, serão responsabilizados nos termos da Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995").

Como se nota de saída, é questionável a existência de matéria constitucional nos temas tratados nos dispositivos cuja eficácia foi suspensa. Mas o que mais chama atenção é a natureza dos princípios constitucionais tidos por violados. Embora não tenha a pretensão de discutir a existência ou não de matéria constitucional a ensejar a jurisdição do Supremo, algumas ponderações me parecem pertinentes.

Segundo o relator, "o critério estabelecido no art. 1º, § 8º, da LIA, é excessivamente amplo e resulta em insegurança jurídica apta a esvaziar a efetividade da ação de improbidade administrativa". Ainda que se admita tal largueza do princípio da segurança jurídica, a pergunta é: o legislador não pode ter levado isso em considerado e optado, legitimamente, nesse cenário de insegurança, beneficiar os agentes públicos acusados?

Com relação ao artigo 12, §1º, o fundamento é calçado na falta de razoabilidade: "configurados, portanto, indícios de desrespeito ao princípio da razoabilidade, uma vez que não observadas as necessárias proporcionalidade, justiça e adequação entre o dispositivo impugnado e o conceito constitucional de improbidade administrativa". Aqui, a pergunta é a seguinte: onde a CF estabelece o conceito de improbidade administrativa, se o próprio artigo 37, §4º, atribui à lei a forma e agradação das sanções? Imagine-se um professor da rede pública concursado que exerceu por um ano o cargo de secretário de educação de um município do interior. É razoável que seja condenado a perda da função de professor, se o ato ímprobo foi praticado enquanto exercia o cargo comissionado? Podemos responder que sim e que não. Mas a resposta correta e que deve ser aceita, por não trazer qualquer mácula constitucional, gostemos ou não, é a do legislador.

O §10 do artigo 12 foi suspenso com base nessas razões: "considerando que os efeitos da detração estabelecida pela norma impugnada, cujo status é de lei ordinária, podem afetar o sancionamento adicional de inelegibilidade prevista na Lei Complementar 64/1990, reconheço o risco de violação ao art. 37, § 4º, da Constituição Federal, e aos princípios da vedação à proteção deficiente e ao retrocesso". Como falar em violação do artigo 37, §4º, se é este mesmo dispositivo que determina que a gradação e a forma das sanções serão feitas pela lei ordinária? Como falar em retrocesso, se a inelegibilidade prevista na LC 64/10 é de oito anos, enquanto a suspensão dos direitos políticos por ato de improbidade tem limites mais amplos (12 ou 14 anos)? O que a lei ordinária fez foi apenas reduzir o tempo da sanção por ela prevista, na exata medida da sanção cumprida em decorrência da LC 64/10, ou seja, foi apenas cuidar da "forma e gradação" da sanção.

Também foi suspensa a eficácia do §3º do artigo 17-B. Segundo o ministro Alexandre de Moraes, "a norma aparenta condicionar o exercício da atividade-fim do Ministério Público à atuação da Corte de Contas, transmudando-a em uma espécie de ato complexo apto a interferir indevidamente na autonomia funcional constitucionalmente assegurada ao órgão ministerial", consistindo em inconstitucionalidade perante "a independência funcional consagrada nos artigos 127 e 128 da Constituição Federal". Aqui, apesar de a inovação legislativa estar meio capenga, como bem observado pelo relator, não existe matéria constitucional que atraia a jurisdição do Supremo. A intenção do legislador foi a de evitar que discussões intermináveis sobre o montante do dano ao erário prejudiquem a realização do acordo. Atribuir aos Tribunais de Contas a tarefa de se manifestar sobre o valor do dano, indicando parâmetros, não significa dizer que o valor indicado será obrigatório. Poderia haver mais clareza lei, mas esse vício não é constitucional, e pode ser resolvido pelo Congresso ou pelos demais órgãos do Poder Judiciário.

Após reconhecer que a independência entre as esferas penal e administrativa guarda a exceção da hipótese de a instância penal decidir pela inexistência material do fato ou pela negativa de autoria, o fundamento para suspender a eficácia do art. 21, §4º, foi o seguinte: "Nada obstante o reconhecimento dessa 'independência mitigada' (Rcl 41.557, rel. min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 10/03/2021), a comunicabilidade ampla pretendida pela norma questionada acaba por corroer a própria lógica constitucional da autonomia das instâncias, o que indica, ao menos em sede de cognição sumária, a necessidade do provimento cautelar". Mais uma vez, o dispositivo constitucional tido por violado parece ter outra intenção, a de prever a possibilidade de as ações, penal e de improbidade, caminharem juntas. Essa previsão constitucional não é capaz, contudo, de impedir que o legislador, dotado pelo próprio texto constitucional de poder de regulamentar a ação de improbidade, decida barrar o processamento desta ação quando a ação penal tratar dos mesmos fatos. Não havendo inconstitucionalidade, por que não aguardar que a conformação mais adequada dessa norma seja feita pelo Superior Tribunal de Justiça, órgão encarregado pela CF de uniformizar a interpretação da lei federal?

Por fim, foi suspensa a eficácia do artigo 23-C sob a seguinte motivação: "os partidos políticos recebem vultosos recursos de natureza preponderantemente pública, provenientes do Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos – Fundo Partidário (Lei 9.096/1995, art. 38), de modo que a descaracterização da eventual aplicação das sanções por ato de improbidade tipificadas constitucionalmente mostra-se igualmente apta a contradizer o § 4º do art. 37 da Constituição Federal". Mais uma vez, não é possível reconhecer em que medida o dispositivo suspenso contradiz o texto constitucional que atribuiu ao legislador a regulação, na forma e na gradação, da responsabilidade por ato de improbidade. Se a Lei nº 9.096/95 já trata da responsabilização por desvios de recursos do fundo partidário, por que a LIA não pode, ao definir quem se submete às suas regras, excluir os partidos políticos? Não se trata de simplesmente imunizar os partidos de qualquer sanção por mau uso do dinheiro público, mas apenas não os colocar sob o regime da probidade.

Como se pode ver sem muito esforço, a opção do legislador reformista foi claríssima e perfeitamente amoldada aos limites da Constituição Federal. A justificativa quase sempre utilizada é a de que o Poder Judiciário não age de ofício; essa premissa, porém, não autoriza concluir que todas as demandas apresentadas têm razão e merecem um julgamento de mérito.

É preciso lembrar que, se a jurisdição ordinária é o palco dos processos contenciosos, a jurisdição constitucional necessita de comedimento, prudência e sabedoria. Antes de pressupor conhecimento técnico jurídico, o controle de constitucionalidade abstrato exige maturidade e consciência de que o Poder Judiciário é o fiel da balança que equilibra os poderes e de que a Constituição Federal, posto elaborada pelos seus representantes, não foi feita para agradar a maioria. A guarda da Constituição e o valor do Supremo Tribunal Federal não advêm da ampliação descomedida da jurisdição constitucional.

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