Opinião

Vandalismo, corrupção e desastre patrimonial cultural

Autores

  • Ana Maria Moreira Marchesan

    é procuradora de Justiça no estado do Rio Grande do Sul integrante do Conselho Superior do MP-RS mestre e doutora em Direito Ambiental e Biodireito pela Universidade Federal de Santa Catarina integrante da diretoria da Associação Brasileira dos membros do Ministério Público do Meio Ambiente (Abrampa) e da diretoria do Instituto "O Direito por um Planeta Verde".

  • Sandra Akemi Shimada Kishi

    é procuradora regional da República mestre em Direito Ambiental pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) vice-presidente da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público do Meio Ambiente (Abrampa) coordenadora do projeto Conexão Água da 4ª CCR/MPF diretora do projeto Territórios Vivos GIZ – Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit e Ministério Público Federal.

10 de janeiro de 2023, 17h19

Controlar o risco, tal como previsto na Constituição da República Federativa do Brasil, é um imperativo em diversas fases das atividades que o envolvem, e será mais eficiente quando mais antecipada a implementação das medidas de precaução.

Não apenas a sociedade brasileira, mas também cidadãos e governos globais, assistiram atônitos, numa nublada tarde de domingo, em 8/1/2023, aos inaceitáveis crimes decorrentes de atos de vandalismo em Brasília que atingiram bens e valores, dos mais caros aos Poderes da República, a abalarem não apenas estruturas físicas, mas, de forma descontrolada, o regime democrático e a dignidade da nação. Com efeito, para além de estruturas físicas institucionais, valores sociais, culturais e éticos da sociedade brasileira foram, às escâncaras, deliberadamente dilacerados, mediante atos violentos abjetos, favorecidos por condutas omissivas infratoras e criminosas que culminaram num desastroso e verdadeiro cenário de guerra.

Relatório de 24/2/2014, da Universidade das Nações Unidas, relacionou a gestão deficiente de águas como ato de corrupção. No âmbito das Assembleias do Escritório de Redução de Riscos e de Desastres da ONU, o Protocolo de Sendai (2015-2030) [1] estabeleceu o fortalecimento de governanças corporativas do setor público ou privado para a adequada gestão de riscos nas atividades de risco em se envolvam. De fato, a falta de planejamento e o inadequado controle do risco para evitação de desastrosos danos levam a situações de crise. Nessa seara, há inclusive comando constitucional para a adoção de medidas efetivas de precaução e de controle do risco (artigo 225, § 1º, IV, V e VII, CF/1988), em todas as atividades que envolvam riscos. O princípio do controle do risco está também reforçado na Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) e na Lei de Política Nacional de Defesa Civil (Lei 12.608/2012). Tais normas privilegiam a adequada gestão para evitação de danos, sendo que "a incerteza do risco de desastre não constituirá óbice para a adoção das medidas preventivas e mitigadoras da situação de risco" (artigo 2º, §2º, da Lei 12.608/2012). Ora, uma grande passeata na Esplanada dos Ministérios e junto às sedes dos três Poderes da República, que abrigavam bens de inestimável valor para a sociedade brasileira, às vésperas do empossamento do alto escalão de um novo governo, após uma disputada eleição presidencial no país, são circunstâncias que conformavam uma atividade que envolveria riscos de toda sorte. Falhas na gestão de riscos dessa atividade e a falta de monitoramento e precaução do financiador num estado de desconformidades assumidas sem adoção de medidas de evitação dos desastrosos danos a que assistimos também podem incorrer em atos de corrupção sujeitos à responsabilidade por não compliance, para além de outras condutas criminosas.

Com efeito, é mais que salutar invocar-se, neste momento, a responsabilidade por não compliance. Isto diante da necessidade de se enfrentar a realidade da origem das práticas de corrupção, resultantes em danos de toda ordem por intermédio de agrupamentos associados para o crime, evitando-se e punindo-se incentivos e financiamentos insustentáveis a uma cultura de não-compliance, que não controle riscos à sociedade, que não promove valor e nem impõe relevância a atuações voltadas a padrões legais e éticos pelos atores envolvidos na cadeia de atividades envolvendo riscos. Na concreta situação, a passeata envolvia risco à sociedade brasileira e ao Estado, com objetos de inestimável valor cultural em locais que poderiam ser invadidos. E bem por isso quem financiou os deslocamentos e os transportes dos envolvidos nos atos criminosos à Brasília, quem apoiou as estadas desses manifestantes, quem fiscalizava o movimento e quem permitiu as invasões deveriam ter adotado medidas de precaução e controlado os riscos mais que previsíveis e inerentes à passeata no atual contexto de possíveis danos.

O Decreto Presidencial 3.678/2000 ratificou a Convenção Anticorrupção da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que visa à cooperação técnica, material e internacional na implementação de mecanismos e medidas de prevenção, controle e de repressão de atos de corrupção a servidores públicos em nível nacional e internacional, em todas as searas de responsabilidades.

Não bastasse essa norma incorporada ao sistema jurídico pátrio, há a Lei 12.846/2013 [2], conhecida como lei do compliance empresarial ou lei anticorrupção, que prevê inclusive responsabilidade objetiva, independentemente de culpa, no âmbito da responsabilidade administrativa e civil pelo financiador, pessoa jurídica de direito público ou privado (artigo 1º c.c. artigo 5º, II) e de quem dificultar atividade de fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação (artigo 5º, V).

Com efeito, há de se apurar a responsabilidade por parte dos órgãos que deveriam ter prevenido e evitado danos no desenvolvimento das atividades de risco, com a adoção de devidas medidas de segurança e com o real monitoramento e fiscalização das atividades na passeata que envolvia riscos de danos previsíveis, com efetiva aplicação do melhor aparato logístico disponível, antes da eclosão do dano, por força do dever de máxima precaução, num retorço à prevenção de desastres de toda ordem. Todo esse aparato de planejamento de gestão e de controle é exigido, dos atores envolvidos, inclusive em nível de quem financia esses movimentos, até para uma valoração da incapacidade de suporte de contenção ou de evitação de danos de ordem social, econômica e ambiental, que considere inclusive escalas de propagação e de não contenção de riscos. No caso em concreto, diante do consumado é evidente o descumprimento do dever de diligência, desde o início do elo da cadeia de ações que propiciaram este resultado, começando por quem financiou. Este dever vem da necessária eficiência na conformidade aos princípios e normas e da responsabilidade objetiva por atos de corrupção ou de não compliance, à luz da Lei 12.846/2013 e de seus decretos regulamentares, abarcando a responsabilização por parte dos envolvidos na cadeia de iniciativas e atividades de risco, desde os financiadores até os órgãos de controle e de fiscalização da atividade de risco pela prática de fatos típicos de não conformidade frente a atividades envolvendo riscos de danos ao patrimônio público nacional, inclusive e notadamente o cultural e por não aderência à execução de medidas de integridade ética e de políticas internas corporativas.

Uma devida valoração do dano social e cultural dos vultosos valores culturais destruídos nos atos de vandalismo a que assistimos frente a estruturas republicanas será crucial para a internalização dos custos, que não devem ser arcados ao final pela sociedade, além do ônus com a reparação integral do dano ao patrimônio cultural destruído pelos atos criminosos. As responsabilidades por atos de corrupção devem ser apuradas e devidamente sancionadas, a par dos crimes de responsabilidade por danos ao patrimônio público e ao patrimônio cultural associados aos danos causados, com dupla imputação, em relação aos indivíduos e pessoas jurídicas criminosas, tudo agravado pela malha muito fina da responsabilidade civil objetiva, sob a modalidade do risco integral.

O atual contexto de sociedade de risco reclama a adoção do conceito de responsabilização pelo risco, diante da relevância jurídica de uma necessária cultura da segurança jurídica, tal como preconizada na Lei 13.655/2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, conferindo-lhe nova dimensão operacional: no âmbito público, com repercussão no setor privado, para reforçar a segurança jurídica com a necessária indenização do risco não evitado.

A norma constitucional brasileira não admite o desprezo frente aos riscos de danos sociais e ambientais, dentre os quais os danos a valores culturais e tampouco um estado de irresponsabilidade em relação à reparação desses danos.

Normas imutáveis da Constituição da República Federativa do Brasil (artigo 225, caput e § 1º, V e VII c.c. artigo 216, § 1º) exigem o controle do risco, ao longo da tutela ofertada pelo Estado ao acervo cultural de notável e expressivo valor cultural reconhecido pela sociedade danificado nos atos de vandalismo materializados nas invasões às dependências físicas dos prédios dos três Poderes da República: do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto, destruindo bens e documentos públicos acautelados ou inventariados, tombados ou não, de relevante valor e referência histórica e cultural, sob a tutela e salvaguarda do Estado, legitimada a proteção também pela sociedade brasileira. Inegável que a imagem da obra magnífica de Di Cavalcanti aparentemente danificada fere profundamente, em nível moral e material, o patrimônio cultural de toda uma sociedade, e não apenas a brasileira, mas também em nível humanitário universal, como ilícito lesa humanidade, inclusive. Não menos simbólica — e igualmente repudiável — foi a destruição de um relógio trazido para o Brasil pela família real, obra da oficina de Balthazar Martinot, relojoeiro de Luís XIV, cujo outro exemplar jaz bem conservado no Palácio de Versalhes.

A ordem jurídica e democrática do Estado de Direito, que se deseja ver aqui respeitada por toda a sociedade, exige a imputação de responsabilidades por atos de corrupção por inadequada gestão de riscos ou falha na fiscalização da atividade e por quem financiou atos contra a administração pública e pelos crimes contra o patrimônio cultural, a par de diversas outras lesividades e danos provocados pelo extenso rol de condutas criminosas, derivadas de ação ou omissão, inaceitáveis e a serem apuradas. Isto porque as condutas ilícitas também culminaram na destruição de bens de valoroso referencial cultural para a sociedade.

Para além da responsabilidade pelos atos ilícitos patrimoniais, as responsabilidades por não compliance, diante dos desastrosos prejuízos decorrentes de ações ou omissões, hão de ser apuradas e aplicadas em razão do financiamento insustentável que culminou nos atos praticados, devido à ausência do necessário due diligence, diante da falta de controle de riscos e da não adoção de medidas efetivas e tempestivas de controle pelas autoridades responsáveis, invocando as sanções previstas pela prática da conduta descrita no artigo 6º da Lei Anticorrupção, por omissões no controle do risco e pela não prevenção dos danos ao patrimônio público e do patrimônio cultural.

No tocante à responsabilidade por dano ao patrimônio cultural trata-se de uma das espécies de dano ambiental e possui particularidades que o distingue dos demais tipos de danos ao meio ambiente. Uma de suas principais características é justamente a da dificuldade ou até impossibilidade de reparação específica. Reporta-se sobretudo a valores intangíveis que são também passíveis de valoração, mesmo para bens culturais e históricos, cujos componentes não têm valor de mercado. Além disso, o dano ao patrimônio cultural carrega um forte componente intergeracional, justamente pelos valores históricos culturais relacionados com o passado e identitários de referência cultural, em conexão com o futuro.

Ademais, em sede de sérios danos ao patrimônio cultural, como ocorridos no lamentável episódio de criminalidade massiva contra o Estado Democrático Cultural de Direito, houve ainda evidente incidência de um dano moral coletivo, somado ao dano patrimonial, aprofundando o grau de lesividade e da ofensa direta e indireta aos mais caros valores e direitos fundamentais da pessoa humana e de toda uma coletividade, a perdurar como grave mácula na vida digna de gerações presente e futuras.

Cabe afirmar, sem medo de errar, que os praticantes desses atos de destruição violenta são adeptos do obscurantismo. Negam a ciência, o valor da cultura, da informação, da estética urbana e da arquitetura. Oxalá que o Estado brasileiro logre se organizar na proporção necessária para enfrentamento desses crimes cujas consequências não encontram precedentes na recente história do Brasil!

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