Opinião

Possíveis enquadramentos penais das invasões às sedes dos Poderes

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10 de janeiro de 2023, 20h15

O dia 9 de janeiro de 2023 começou com sentimentos de tristeza e profunda repugnância. No país no qual um fato chocante parece ser sempre superado, em termos de excepcionalidade, pelo que ocorre no momento seguinte, os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023 foram executados para atingir cume de difícil correspondência na medida dos absurdos.  

Ninguém deveria esperar, portanto, que as respostas institucionais não buscariam anular esse nível de aberração. Por respostas institucionais, há de haver medidas que não se limitem ao plano jurídico e sejam pensadas a atacar esse episódio politicamente, naqueles que lhe dão sustentáculo nas casas legislativas e também no Executivo. Mas, dado que as medidas políticas não cabem nesse pequeno texto, reservarmo-nos àquelas de âmbito legal punitivo, limitadas à análise dos tipos penais existentes no Código Penal que tratam da proteção do Estado Democrático de Direito.  

O próprio ex-presidente assinou lei que adicionou ao Código Penal o Título XII, com os dispositivos dos "Crimes contra o Estado Democrático de Direito". Esse título tem quatro capítulos de tipos penais (o capítulo V foi vetado pelo então chefe do executivo). Sobre a natureza desses delitos, há ao menos um artigo publicado no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais que defende que esses crimes possuem natureza política [1], e, como tais, temos aos menos duas consequências imediatas previstas na Constituição Federal: devem ser julgados pela Justiça Federal (artigo 109, inciso IV), com recurso único ordinário ao Supremo Tribunal Federal (artigo 102, inciso II, alínea b).  

Dois desses capítulos, com ofensas contra as instituições democráticas e contra o funcionamento de serviços essenciais, possuem tipos penais que melhor parecem, em um juízo inicial, melhor se amoldar aos eventos observados.  

As invasões e graves depredações dos prédios sede dos poderes constitucionais tiveram por consequência restringir o exercício desses Poderes. Segunda-feira dia 9 de janeiro de 2023, os edifícios dos três Poderes da República estão impedidos de serem utilizados haja visto o estado em que se encontram, e sabe-se lá quanto tempo demorará até que eles possam voltar a ser utilizados. De igual forma, a depredação desses espaços constitui grave ameaça aos seus integrantes, que, mediante a destruição de seus locais de trabalho, foram ameaçados pessoalmente [2]. O fim específico de abolir o Estado Democrático de Direito também está cristalizado, visto que esse agrupamento, sem disfarces, pede a deposição do governo eleito pelo voto popular por um regime militar, o que vai contra todas as regras democráticas. A violência também está muito nítida, em razão da depredação dessas três sedes dos poderes constitucionais.  

Os fatos caracterizam, assim, no mínimo, o tipo penal do artigo 359-L, do Código Penal. É importante observar que esse tipo penal tem por nomen iuris a "abolição violenta do Estado Democrático de Direito", mas, para sua configuração, exige-se apenas a ação de tentar esse fim, sem obviamente consegui-lo, pois, se assim fosse, suplantado o estado, não haveria como haver qualquer punição.  

Todos os invasores diretos e organizadores deveriam responder por ele, ainda que sabidamente a maioria escapará de punição. A dificuldade maior será a formação da prova válida em juízo sobre a omissão daqueles que por dever funcional, ou seja, por obrigação legal, deveriam evitar esses eventos, mas que, em um olhar inicial, parecem ter se omitido dolosamente de suas obrigações, mesmo podendo e devendo agir para evitar o resultado havido, o que constituirá autoria por omissão (artigo 13, § 2º, do Código Penal). A omissão deles, no menor dos patamares, pode configurar prevaricação, mediante a especificação do ato de ofício que deveriam observar e executar. 

A par do crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, a lei penal também criminaliza o golpe de estado, que se dá pela ação de tentar depor o governo legitimamente constituído, igualmente por meio da violência ou grave ameaça (artigo 359-M). Esse ilícito penal parece de mais difícil caracterização na medida em que não havia, em um domingo, o funcionamento dos poderes nesses locais. 

O crime de sabotagem, previsto no artigo 359-R, do Código Penal, e o qual consiste na destruição ou inutilização de estabelecimentos, com o fim de abolir o Estado Democrático de Direito, a priori também está configurado. Porém, os estabelecimentos destruídos ou inutilizados devem ser aqueles destinados à defesa nacional. O Palácio do Planalto é a sede máxima da chefia das Forças Armadas, já que o chefe do Executivo é também seu chefe, de tal modo que esse tipo penal também estaria presente. Assim, a mesma ação configura os crimes previstos no artigo 359-L e do artigo 359-R, mas, como a intenção das duas é a de abolir o Estado Democrático de Direito, deve ser aplicada a regra do concurso formal, prevista no artigo 70, do Código Penal, reconhecendo-se os dois crimes, mas com a incidência da pena somente do delito mais grave, que é aquela do artigo 359-L, que possui pena mínima de 4 anos, enquanto o artigo 359-R, tem pena de 2 anos. Pela regra do concurso formal, a pena de 4 anos deve ser aumentada de 1/6 até a metade na segunda fase de dosimetria da pena. 

Muito se falou sobre o crime de dano ao patrimônio público, mas há fundamento para se entender que a ação nele contida pode estar inteiramente encapsulada naquela do artigo 359-L, do Código Penal, não sendo possível sua aplicação sem em tese ofender o princípio da consunção. 

Pode-se pensar que a aplicação de uma pena-base de 4 anos, aumentada de 1/6 até a metade, é muito leniente à vista dos eventos observados. Afinal, houve a medida de ofensa máxima ao Estado brasileiro. Mas o grau de punição não se limitaria a esse patamar, pois o magistrado pode reconhecer, na primeira fase de individualização, circunstâncias judiciais desfavoráveis, e certamente elas existem, ao menos no quesito de consequências e culpabilidade, e aplicar majorações para a pena inicial de 4 anos. Nesse ponto é que ressurge a dificuldade histórica, palco de controvérsias judiciais, sobre qual a fração exata que deve existir para cada circunstância judicial. Além disso, as notícias até o momento dão conta de aproximadamente 300 prisões em flagrantes. Há centros de detenção com essa capacidade de aprisionamento de pessoas, a mostrar o tamanho da repercussão desse episódio no sistema carcerário já superlotado. 

Não é demais registrar o óbvio de que os fatos de 8 de janeiro de 2023 extrapolaram, em todas as dimensões, a manifestação legítima de críticas aos poderes constitucionais, não sendo cogitável a causa de exclusão de ilicitude prevista no artigo 359-T, do Código Penal. 

Por fim, devemos ressalvar que esse artigo analisou as repercussões penais dos fatos de 8 de janeiro de 2023 apenas sob a luz das disposições do Título XIII, do Código Penal, sem que haja prejuízo da incidência, por exemplo, da Lei 12.850/2013, que tipifica as organizações criminosas. A discussão sobre eventual tipicidade desses acontecimentos à luz da Lei 13.260/2016, que criminaliza atos de terrorismo, parece-nos de mais difícil discussão e mereceria espaço maior que essas linhas.  

Em igual ressalva, nossas considerações não descartam a atividade de busca de reparação cível pela depredação do patrimônio público, a qual deve ser objeto de responsabilização mediante a cobrança dos danos pela Advocacia Geral da União, com ações de cobrança individualizadas, simultâneas ou posteriores à responsabilização penal. Mesmo que seja possível e alcançável algum ressarcimento ao Estado brasileiro, esses eventos são a definição precisa de danos irreparáveis. 

Essas são considerações iniciais apenas no plano de direito penal e em referência aos tipos de crime de proteção ao Estado Democrático de Direito, e elas são evidentemente sujeitas a mudanças diante do desvendar dos acontecimentos.

 


[1] "Crimes contra o Estado Democrático de Direito são políticos", 3 de outubro de 2022, disponível no link https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/8953.

[2] A configuração da violência ou grave ameaça, nesses tipos penais, nao deveria receber uma interpretação assim dita mais tradicional, que seja em linha com aquelas referentes aos crimes contra a pessoa, tal como parece defender César Dario Mariano da Silva em opinião publicada no site ConJur e disponível no link https://www.conjur.com.br/2022-nov-13/cesar-dario-sao-tais-crimes-estado-direito, pois as condutas, dirigidas contra o Estado e contra a pessoa, possuem significantes completamente distintos. A depredação do prédio sede de um poder é um embaraço de ameaça direta contra o funcionamento esse poder e contra as pessoas que o representam momentaneamente, por voto ou por nomeação/investidura no cargo.

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