Opinião

Ataques aos símbolos do Estado de Direito: vandalismo político e democracia

Autor

9 de janeiro de 2023, 10h18

1. Um ataque simbólico: a justiça em lágrimas
Aconteceu nos EUA, em 6 de janeiro de 2021. Após o final do mandato do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a invasão do Congresso norte-americano (Capitólio) é o paradigma contemporâneo do ódio à democracia e às instituições democráticas.

Aconteceu no Brasil, em 8 de janeiro de 2023. Após o final do mandato do ex-presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, a invasão dos prédios dos Três Poderes da República (Supremo Tribunal Federal; Congresso Nacional; Planalto) segue o paradigma dos ataques às instituições democráticas.

Por mais previsíveis que fossem os atos antidemocráticos, a gravidade, a extensão e o grau dos danos provocados devem ser lamentados, gerando as devidas responsabilidades.

A vergonhosa conivência das forças policiais e de algumas autoridades públicas tornaram possível os eventos macabros que aconteceram ao longo de toda a tarde do dia 8 de janeiro de 2023.

Os símbolos mais caros às instituições brasileiras foram violados, depredados, destruídos, enquanto manifestações da mais alta intolerância política, do radicalismo, da revolta e do deboche para com a democracia e seus resultados. Com isso, percebe-se que temos Estado, mas a República está doente, e que, também, temos política, mas a democracia vai mal.

Que se registre que o ato do dia 8 de janeiro de 2023 tem o condão de deixar uma marca indelével na vitalidade da democracia brasileira. Trata-se de um perigoso e irresponsável assalto ao Estado brasileiro, numa lamentável repetição do trumpismo.

2. Estado, República e democracia: uma fratura dos limites legais
A invasão dos edifícios públicos produz inúmeros significados e deverá trazer diversos desdobramentos. É certo que teve condão material, político e simbólico, com vocação de defraudar a democracia brasileira. Mas, a invasão teve o sentido de representar um ataque a um conjunto de símbolos das instituições brasileiras.

Por ocasião da invasão do Capitólio, nos EUA, havia-se criado uma cicatriz negativa na vida política contemporânea e um precedente perigoso, que se sabia com clareza que seria imitado e repetido em outras partes do mundo, incitando ao fanatismo e ao extremismo político. As autoridades estavam (ou, deveriam estar), no mínimo, atentas ao mimetismo antidemocrático norte-americano.

Do ponto de vista do Brasil, trata-se de um ato sem precedentes na história. Em verdade, é a culminância de uma série de atos de gravidade crescente, cometidos nos últimos tempos, agora voltados para a capital federal.

Ele foi capaz de captar e condensar a intensidade das paixões políticas degradadas pela polarização, pelo obscurantismo e pela intolerância. O vazio pós-eleitoral, o não-questionamento dos resultados eleitorais e a falta de "atos de contrariedade" tornaram possível a sua precipitação, quase que como um resultado óbvio da transição (interrompida e estilhaçada) do poder do Estado brasileiro.

3. Radicalismo político, violência e depredação: entre símbolos e destroços
Provocar o caos, a desestabilização e expor a democracia brasileira a mais um teste de fogo.

No centro dos atos antidemocráticos e golpistas de 08 de janeiro de 2023, estavam os prédios artisticamente desenhados pela caneta de Oscar Niemeyer.

Aqui, registra-se o quanto a radiografia dos ataques aos principais Palácios, símbolos dos Poderes constituídos (Legislativo; Executivo; Judiciário) representa uma negação da institucionalidade brasileira, na medida em que a devastação institucional é algo próprio das autocracias.

No radicalismo político, há uma negação antipolítica do lugar das instituições, uma recusa aos resultados das eleições de 2022, uma vocação pelo golpe e pela vandalização dos símbolos mais significativos das instituições brasileiras.

Uma nova forma (indecorosa) do nacionalismo canhestro, rebelde e despudorado dos nossos tempos. E, nenhum compromisso maior senão com a baderna, a desordem e a produção orgulhosa (e, lamentável) de imagens para grupos nas redes sociais.

4. Estabilidade institucional, pacificação nacional e manifestações populares
A cultura do golpismo avançou a pontos exorbitantes. A polarização não somente ocupou espaço demais na política nacional, como agora ameaça a imagem da democracia brasileira no mundo.

As lentes do jornalismo mundial se voltam para o Brasil, agora para contemplar os destroços gerados pelos discursos de ódio, pelo autoritarismo e pelo cultivo da cultura golpista.

Ao contrário da cultura do golpismo, deve-se cultivar a ideia de que os resultados eleitorais devem ser respeitados. O revezamento democrático no exercício do poder do Estado é o aspecto mais saudável da atividade política.

O sistema político nacional, que se construiu a duras penas, não pode ser comprometido, violentado e atacado, sem consequências. Neste momento, quando se restaura a ordem local, não se trata apenas da ordem pública, se trata também da percepção que se tem do funcionamento das instituições e da simbólica nelas contidas.

Para pensar em termos de democracia, discordar é importante; numa democracia não se espera unanimidade, mas vandalizar, depredar e destruir, ameaçar e devastar um patrimônio público inestimável — que se encontrava guardado nos locais afetados pelas invasões — implica uma outra coisa.

Por isso, não se queira colocar sob a ideia de liberdade a destruição do patrimônio público brasileiro. Não se queira chamar de nacionalistas os atos que invadem, destroem, depredam e vandalizam.

Os caminhos da democracia são tortuosos, mas há limites na manifestação política pública, legítima, organizada e pacífica. Atos criminosos não são aceitáveis, nem mesmo por orientação político-ideológica, e comprometem o exercício das funções precípuas do governo e das instituições públicas.

5. Responsabilidade, legalidade e ordem pública
Nos termos da Lei n. 14.197/2021, entre atos que envolvem grave desordem pública, sabotagem do funcionamento das instituições públicas e democráticas, destruição do patrimônio público, e, até mesmo, a possível tentativa de golpe de Estado, numa sequência de atos que atentam contra o Estado Democrático de Direito, os atos de 8 de janeiro de 2023 devem ser rechaçados com as medidas mais enérgicas, guardando-se o direito de defesa, o amplo contraditório e os limites da legalidade.

Para além disso, os atos devem ser alvo de profunda reflexão ao povo brasileiro, sobre os destinos do país. Atos deste tipo somam ou acrescem algo ao desenvolvimento do país? Atos desta natureza são construtivos? Atos deste perfil melhoram o desempenho das instituições brasileiras?

Um espetáculo tétrico e detestável concede uma glória momentânea a vândalos — que ocupam poltronas para selfies, destroem equipamentos públicos, espaços simbólicos, para exibições que encontram audiências de fanáticos —, tomados por uma loucura momentânea.

A tentativa de esgarçar a democracia brasileira já está exausta. A tentativa de desestabilizar o governo, as instituições democráticas e criar uma pressão adicional sobre os agentes públicos e a opinião pública haverão de soçobrar, na medida da falta de legitimidade do emprego da violência como mecanismo de intimidação.

O Estado Democrático de Direito não se rende, não se curva e não se amedronta.

Ao vandalismo político, as penas das leis.

 


Bibliografia
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

CHALOUB, Jorge, Os lugares da política na crise da democracia, in Argumentum, Vitória, v. 13, nº 2, maio/ago. 2021, ps. 21-31.

OLIVEIRA NETO, Emetério Silva de, Crime de terrorismo e atos práticos por radicais após resultado do 2º. turno, in CONJUR, 20 de dezembro de 2022. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-dez-20/oliveira-neto-crime-terrorismo-resultado-turno. Acesso em 8 de janeiro de 2023.

ROCHA, João César de Castro. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. São Paulo: Editora Caminhos, 2021.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Autores

  • é professor associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, é membro titular do Grupo de Pesquisas Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo – IEA/ USP e pesquisador N-2 do CNPq.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!