Opinião

Indulto de Natal: aplicação nos casos de concurso de crimes e efeitos retroativos

Autor

  • Claudia Spinassi

    é juíza de Direito no estado do Paraná atualmente na função de juíza substituta da VEP de Cascavel idealizadora da página @justapenabr (Instagram) doutoranda em Direito Penal pela UBA Buenos Aires professora de Execução Penal na Escola da Magistratura do Paraná e em cursos de pós graduação em Direito Penal coordenadora do projeto Apac de Cascavel colaboradora do GMF/CNJ do estado do Paraná; pós-graduada em Direito Aplicado pela EMAP-PR diplomada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina autora de artigos publicados em revistas científicas e em obras coletivas ex-advogada da União e ex-assessora de juiz tendo atuado também como advogada em escritórios privados.

    View all posts

9 de janeiro de 2023, 14h15

Em resposta ao artigo publicado em 6/1/2023 pelos professores Lenio Luiz Streck e Marcio Guedes Berti

 

Reprodução
Que o ornitorrinco é um animal diferente, não há dúvidas. Pode ser feio para alguns, bonito para outros, afinal a beleza depende dos olhos de quem vê. Porém, assim como ocorre no mundo animal, também na seara jurídica, embora o diferente possa causar estranheza em um primeiro momento, é sempre muito bem-vindo.

Aliás, no mundo jurídico quase nada costuma ser muito puro e original. Praticamente todas as normas resultam de um compilado de outras, e as novas teses, em geral, advêm da evolução das anteriores. Assim é a ciência, especialmente uma ciência social.

O caso do Decreto de Indulto de Natal de 2022 (Decreto nº 11.302/2022) não é diferente. Ao publicá-lo, o então presidente da República repetiu algumas partes de outros e também inovou bastante em alguns artigos, criando um certo conflito aparente de normas. Cabe agora a nós, juristas, interpretar o decreto seguindo as regras de hermenêutica, especialmente aquelas do Direito Penal.

Logo que publicado, o Decreto nº 11.302/2022 foi objeto da ADI nº 7.330, proposta pela PGR em 27/12/2022 (ainda sem decisão liminar), a qual ataca especialmente o artigo 6º, caput, alegando ofensa à Constituição Federal na medida em que permite indulto para crimes atualmente considerados hediondos. Segundo a PGR, para fins de indulto, a natureza dos crimes — se hediondos ou não — deve ser aferida no momento da publicação do decreto, e não no momento do cometimento do delito.

Além disso, a PGR alega que especificamente os crimes cometidos no nominado "Massacre do Carandiru" são delitos de lesa-humanidade, cometidos com grave ofensa aos direitos humanos e já reconhecidos como tais pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, razão pela qual não podem ser indultados, uma vez que o Brasil se obrigou internacionalmente a combater essa espécie de crimes ao assinar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e poderá sofrer sanções internacionais caso descumpra a decisão da Corte.

Quanto ao primeiro argumento da ADI nº 7.330, o STF tem posicionamento bastante dividido, havendo decisões em ambos os sentidos. Particularmente, comungo do entendimento de que a classificação de uma infração penal ocorre no momento de seu cometimento, em respeito ao princípio constitucional da irretroatividade da lei penal (artigo 5º, XL da CF). Essa classificação aplica-se para todos os institutos de Direito Penal. Aplica-se às regras de progressão de regime, ao livramento condicional e, inclusive, ao indulto. Não é possível, por meio da hermenêutica jurídica, transformar um crime não hediondo ao tempo de sua prática em hediondo apenas e tão-somente para fins de indulto. Um delito é hediondo ou não é. Essa exceção somente poderia ser criada pela Constituição Federal. Entender de forma contrária afronta as regras de interpretação do Direito Penal que determinam a proteção e ampliação dos direitos fundamentais.

Por outro lado, no que tange especificamente aos delitos cometidos no evento conhecido como "Massacre do Carandiru", de fato há relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA declarando o Brasil responsável por graves violações a direitos protegidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos e decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos determinando que o Brasil investigue e puna tais crimes. Indultar tais delitos viola o dever constitucional de observância dos tratados internacionais de direitos humanos (CF, artigos 1º, I e II; 4º, II, e 5º, §§ 2º e 3º), e da cláusula de vinculação do Brasil a tribunais internacionais de direitos humanos (ADCT/CF-1988, artigo 7º).

Ocorre que por mais relevância nacional e internacional que esse tema possa ter, está longe de ser a parte mais polêmica, difícil de interpretar e de maiores reflexos práticos do decreto de indulto de 2022. Os principais pontos de dúvida do Decreto nº 11.302/2022 estão nos casos de concurso de crimes e na definição de seus efeitos retroativos. Explico.

Tradicionalmente, os decretos de indulto exigiam o cumprimento de um percentual mínimo da pena para concessão do perdão da pena remanescente. Tanto é assim que o principal objeto da ADI nº 5.874 foi o fato de o presidente ter exigido o cumprimento de apenas 1/5 da pena de determinados crimes para a concessão do indulto. Naquela ocasião, o Supremo Tribunal Federal discutiu profundamente o tema e, em um extenso acordão de 318 páginas, decidiu que o decreto presidencial que concede o indulto configura ato de governo, caracterizado pela ampla discricionariedade, estando limitado apenas pelo disposto no artigo 5º, XLIII, da Constituição, que proíbe a graça [1] a determinados crimes.

O Decreto de Natal de 2022 inovou, pois, deixou de exigir qualquer lapso temporal mínimo de cumprimento de pena como requisito para a concessão de indulto nos casos de condenação por crimes cuja pena privativa de liberdade máxima em abstrato não seja superior a cinco anos (artigo 5º).

A abrangência do disposto no artigo 5º do Decreto nº 11.302/22 é enorme, alcançando mais de uma centena e meia de crimes só no Código Penal, passando por furto simples, estelionato, apropriação indébita, calunia, injúria, difamação, dano, associação criminosa, falsidade ideológica, desacato, etc. Além de muitos outros previstos em legislações esparsas, tais como posse e porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, embriaguez ao volante, etc. Mais de 50% das pessoas presas, atualmente, devem ter condenação por ao menos um destes crimes.

Todavia, raramente esses crimes aparecem de forma isolada. Na imensa maioria das vezes são cometidos em concurso e é aqui que se instaura a grande celeuma jurídica criada pelo Decreto nº 11.302/22, pois, ao passo que o parágrafo único do artigo 5º diz para considerar individualmente as infrações penais, o caput do artigo 11 determina que seja considerada a pena resultante da soma ou unificação. E aí, como bem indagam os professores Lenio e Berti, "aplica-se o parágrafo único do artigo 5º ou o artigo 11?".

Para começar a destrinchar a questão é preciso estabelecer algumas premissas.

A primeira é que concurso de crimes existe tanto no processo criminal quanto na execução penal. O instituto do concurso de crimes disciplina como devem ser aplicadas as penas quando alguém comete mais de uma infração penal. Essa aplicação pode ocorrer no mesmo processo criminal ou não. Se os diversos crimes são apurados no mesmo processo, o juiz aplica as regras do concurso de crimes na sentença criminal. Se são apurados em processos separados, o artigo 111 da Lei de Execução Penal dá a solução e determina ao juiz da execução penal que some (concurso material) ou unifique (concurso formal ou crime continuado) as penas.

A segunda premissa é que estamos diante de um conflito aparente de normas e, em casos tais, devemos seguir as regras de hermenêutica jurídica. Aplicando o princípio da especialidade ao caso, observamos que o parágrafo único do artigo 5º é especial, ele se refere especialmente ao disposto no caput do artigo 5º — e isso está expresso em sua própria redação: Para fins do disposto no caput, na hipótese de concurso de crimes, será considerada, individualmente, a pena privativa de liberdade máxima em abstrato relativa a cada infração penal. Esse parágrafo foi criado para deixar claro que o concurso entre crimes do caput não desnatura a condição de "crime com pena privativa de liberdade em abstrato não superior a 5 anos". Logo, o parágrafo único do artigo 5º só pode ser aplicado às hipóteses de concurso entre crimes previstos no caput do mesmo artigo.

A partir dessas premissas, podemos responder aos questionamentos feitos pelos professores Lenio e Berti, no artigo publicado em 6/1/2023. Vamos lá!

Acerca do concurso de crimes, três diferentes situações podem surgir: 1ª) concurso entre infrações penais previstas no caput do artigo 5º; 2ª) concurso entre crimes do caput do artigo 5º e delitos do artigo 7º; 3ª) concurso entre crimes do caput do artigo 5º e outros não previstos no decreto. Seja qual for o tipo de concurso que se estabeleça, deverão ser aplicados conjuntamente o parágrafo único do artigo 5º E o artigo 11. Eles não se repelem, se complementam. Vejamos.

No caso de concurso entre crimes previstos no caput do artigo 5º do Decreto — pena privativa de liberdade em abstrato não superior a 5 anos — aplica-se o disposto no parágrafo único do artigo 5º e, consequentemente, deverá ser considerada a pena de cada delito de forma individualizada. Vamos imaginar um concurso entre vários estelionatos, por exemplo. Não importa a espécie de concurso que ocorreu, se material, formal ou crime continuado; não importa se a pena total resultou da soma ou do aumento de pena; não importa quantos crimes são. Em qualquer das hipóteses a pena abstrata de cada uma das infrações penais deve ser considerada de forma individualizada e todos os crimes terão direito ao indulto.

Diferentemente ocorre no caso de concurso entre crimes previstos no caput do artigo 5º e crimes listados no artigo 7º (crimes impeditivos). Nesta situação deve ser aplicado o disposto no parágrafo único do artigo 11, segundo o qual "não será concedido indulto natalino correspondente a crime não impeditivo enquanto a pessoa condenada não cumprir a pena pelo crime impeditivo do benefício". Pensemos, por exemplo, no concurso entre um furto simples e um tráfico. Para que o sentenciado tenha direito ao indulto do furto simples, precisará cumprir integramente (1/1) a pena do tráfico (crime impeditivo).

Agora chegamos ao ponto de grande polêmica: os casos de concurso entre crimes do caput do artigo 5º e infrações penais não previstas no decreto como, por exemplo: furto simples e furto qualificado; estelionato e posse/porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, etc. Em casos tais, não pode ser aplicada a regra do parágrafo único do artigo 5º, porque ela é especial e se refere apenas ao caput, ou seja, somente pode ser invocada quando todas as infrações penais em concurso se enquadrarem no caput. Da mesma forma, não é caso de aplicação do disposto no parágrafo único do artigo 11, afinal não há concurso com crime impeditivo. O que deve ser aplicado, então?

Deve ser aplicada a regra prevista no caput do artigo 11. Segundo este dispositivo, "as penas correspondentes a infrações diversas serão unificadas ou somadas até 25 de dezembro de 2022, nos termos do disposto no artigo 111 da LEP". Pois bem! Vamos imaginar que no nosso primeiro exemplo (concurso entre furto simples e furto qualificado) o sentenciado recebeu 3 anos de pena pelo furto simples e 4 anos pelo furto qualificado. Somando as penas, temos um total de 7 anos. Pensemos que ele já cumpriu 1 ano, tendo uma pena remanescente de 6 anos.

Aí eu pergunto: que diferença isso faz para a aplicação do Decreto de indulto de 2022?

Nenhuma. Essas penas são penas em concreto. O artigo 5º trata expressamente de pena em abstrato. A circunstância de a soma das penas privativas de liberdade resultar um total superior a 5 anos afasta o fato de o sujeito ter sido condenado por um crime cuja pena privativa de liberdade máxima em abstrato não supera 5 anos? Não.

O caput do artigo 11 só se aplica aos casos em que exigido o cumprimento de um percentual mínimo da pena para a concessão do indulto, como por exemplo artigo 2º, II; artigo 4º e artigo 15. Quando o presidente opta por indultar uma classe de crimes selecionada a partir da pena fixada pelo legislador em abstrato, a soma ou unificação das penas aplicadas em concreto pelo Judiciário passa a não fazer diferença.

É importante destacar que quando o decreto quis excetuar sua aplicação no concurso de crimes, ele o fez de forma expressa. Isso ocorreu no parágrafo único do artigo 5º, quando deixou claro que as penas em abstrato deveriam ser consideradas de forma individualizada, bem como no parágrafo único do artigo 11, quando exigiu o cumprimento integral da pena dos crimes impeditivos para concessão do indulto aos crimes não impeditivos. Não havendo regra alguma para o concurso com crimes não previstos no decreto, pode o interprete criar uma regra contrária ao direito à liberdade do sentenciado? A resposta mais condizente com todos os princípios do Direito Penal é não.

Para finalizar e responder aos questionamentos apontados pelos professores Lenio e Berti nos itens (i), (ii) (iii) e (iv), acerca dos efeitos retroativos do indulto de Natal de 2022, temos como ponto essencial esclarecer que indulto não é absolvição. O indulto é um mecanismo do sistema de freios e contrapesos de nossa tripartição de poderes que permite ao Executivo certo controle sobre o Judiciário. Quando o presidente da República concede indulto ele apenas perdoa a pena, não apagando seus efeitos. Consequentemente, todo o período que a pessoa permaneceu presa até a edição do indulto, seja provisoriamente respondendo ao processo criminal ou já em cumprimento de pena, era devido, pois o indulto não torna o indivíduo inocente, apenas perdoa a pena que lhe foi imposta pelo Poder Judiciário. Da mesma forma, o indulto não macula o processo criminal ou de execução penal, tão-somente perdoa o restante da pena a cumprir, ainda que, no caso dos crimes previsto no artigo 5º, esse "restante" possa abranger a pena toda para aqueles que sequer tenham iniciado seu cumprimento.

Deste modo, as penas eventualmente cumpridas até a data da publicação do decreto (i) permanecem como penas cumpridas para todos os fins, inclusive de alcance de direitos na execução penal, devendo ser computadas como requisito temporal; (ii) não serão consideradas indevidas, não podendo servir para fins de detração penal em processo criminal diverso. (iv) A decisão judicial que concede o indulto retroage à data da publicação do decreto, ainda que concedida posteriormente e, a partir da publicação do decreto, o tempo de pena cumprido não será mais computado no processo criminal indultado.

É isso! Esta é minha opinião jurídica, fundada especialmente nas 318 páginas da decisão do STF na ADI 5.874, segundo a qual a concessão de indulto não está vinculada à política criminal estabelecida pelo Legislativo, tampouco adstrita à jurisprudência formada pela aplicação da legislação penal, muito menos ao prévio parecer consultivo do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, sob pena de total esvaziamento do instituto.

A prevalecer posicionamento semelhante ao meu, os impactos que o decreto de Natal de 2022 gerará no sistema carcerário serão imensos, beneficiando um número muito grande de condenados, pois a extinção de algumas penas irá gerar reflexos em outras e, consequentemente, mudará para melhor o cálculo de pena de mais de metade da população carcerária.

Todavia, ao contrário da conclusão dos professores Lenio e Marcio, no sentido de que O presidente da República pode muito. Mas não pode tudo. Não pode escolher, sem critérios, para quem deseja conceder indulto, porque isso provoca efeitos colaterais. Quando se decreta um indulto, há que fazer uma prognose, evitando surpresas decorrentes do sistema”, entendo que em termos de indulto, sendo ele instrumento de controle da separação de poderes, o presidente pode quase tudo, só não pode ofender a Constituição Federal e os tratados internacionais. Assim, embora os efeitos posam ser gigantescos na seara penitenciária, essa foi a opção de quem tinha a discricionariedade em mãos, não cabendo ao Poder Judiciário limitá-la.

 


[1] Gênero do qual o indulto é espécie.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!