Segunda Leitura

O jurista transnacional e a nova arquitetura jurídica mundial

Autor

  • Charles Giacomini

    é juiz federal em Itajaí (SC) mestre em Ciência Jurídica (Univali) especialista em Direito Público professor de Direito Econômico Direito Internacional e formação humanística na Escola da Magistratura Federal de Santa Catarina (Esmafesc) — onde também é membro do Conselho de Ensino — e professor de Direito Tributário em cursos preparatórios e pós-graduações.

8 de janeiro de 2023, 8h00

No início de 2022, a comunidade acadêmica foi contemplada com a obra A Transnacionalização do Direito como Forma de Miscigenação dos Sistemas Jurídicos, de Carla Della Bona, que é professora na Universidade de Passo Fundo (UPF), mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM e doutora em Direito pela Univali, com dupla titulação pela Universidade de Alicante, na Espanha. O livro contém a sua tese de doutoramento.

Della Bona afirma que o Direito Transnacional faz parte de uma nova arquitetura jurídica mundial: "no mundo pós-moderno, em rápida transformação e com complexidade crescente, os juristas deverão ser capazes de oferecer respostas inovadoras que permitam estabilizar as relações e instituições" [1].

A autora enxerga no Direito Transnacional uma força irresistível e transformadora do ambiente que os juristas estão habituados a encontrar. Citando Oscar Vilhena Vieira, afirma que os profissionais do Direito da atualidade estão "muito mais expostos a operações que têm algum componente jurídico internacional do que estavam há uma década; e, provavelmente estarão ainda mais expostos num futuro próximo" [2].

Segundo Della Bona, as profissões jurídicas estão se transformando: "o jurista da era global deve forçosamente interessar-se na rica diversidade do Direito Transnacional, nas ordens jurídicas nacionais com as quais o Direito Transnacional interage"[3]. A fonte normativa já não está concentrada nas mãos do Estado: "os profissionais do Direito serão chamados a participar ativamente — muitas vezes fora do controle estatal — na construção de regimes transnacionais e supranacionais" [4].

A abordagem em questão reflete a essência do pensamento de André-Jean Arnaud, para quem as situações contenciosas tendem a passar cada vez menos pelas vias tradicionais do Estado, administrativas ou as judiciais [5].

Quanto ao papel do magistrado no ambiente jurídico transnacional, Della Bona observa que "o novo jurista não fica somente adstrito na figura do advogado, seja ele estatal ou privado, ele abrange igualmente a função do juiz", pois "ninguém ousaria mais sustentar que ele é apenas 'a boca da lei'" [6].

A globalização e a complexificação da sociedade moderna amplificaram o caráter interdisciplinar do Direito, traço que se projeta na função jurisdicional. Segundo Della Bona, o juiz transnacional é "dinâmico, mais administrador de situações conflituosas do que a voz que proclama do Direito" [7].

Esse novo profissional do Direito, segundo a autora, "deverá, ainda, ser um artífice da paz" [8]. E conclui: "parece que o jurista, no contexto transnacional, precisa ser também um sociólogo jurídico (não somente um filósofo do Direito) dentro de um contexto internacional" [9].

A transnacionalidade já se faz sentir na atividade judicial, bem como na formação profissional e acadêmica do magistrado contemporâneo. Um dos traços mais evidentes dessa transformação diz respeito ao crescimento do intercâmbio entre magistrados.

É nesse contexto que se explicam as posturas inovadoras e transfronteiriças adotadas pelos juízes contemporâneos, que fundamentam suas decisões a partir de julgados estrangeiros; atuam junto a organismos internacionais na condição de membros ou ouvintes; buscam formação acadêmica no exterior; e cooperam com órgãos judiciais estrangeiros ou internacionais. Tudo isso ocorre sem uma necessária intermediação estatal, resultando, muitas vezes, de iniciativa, esforço e custeio individual do próprio magistrado.

Pode-se dizer, então, que a atividade intelectual de natureza jurídica não está condicionada às limitações das estruturas estatais, podendo resultar de experiências transnacionais com características interdisciplinares, difusas e mesmo informais.

Antoine Garapon e Julie Allard, em sua obra Os Juízes na Mundialização: a Nova Revolução do Direito, destacaram que "o Direito tornou-se num bem intercambiável. Transpõe as fronteiras como se fosse um produto de exportação. Passa de uma esfera nacional para outra, por vezes infiltrando-se sem visto de entrada" [10].

Antoine Garapon é magistrado francês e doutor em Direito. Foi docente na Escola Nacional da Magistratura francesa e é autor de diversas obras sobre Direito e Justiça, sendo conhecido em seu país pelos programas de rádio que realiza desenvolvendo seus temas. Julie Allard é professora de Filosofia do Direito na Universidade Livre de Bruxelas, onde dirige o Centro de Direito Público, e pesquisadora associada ao Instituto de Estudos Avançados em Justiça.

Os referidos autores sustentam que a comunicação entre juízes de diferentes países aumentou consideravelmente nos últimos anos, flexibilizando as fronteiras políticas em relação à circulação do Direito. Os juízes são identificados como executores do direito estatal e participantes na discussão de um direito global: "até muito recentemente confinados ao território nacional, os juízes passam, de agora em diante, a estabelecer entre eles, e através das fronteiras, relações cada vez mais sólidas e confiantes" [11].

Este intercâmbio cultural e jurídico, que avança de modo gradativo, não parece ter a pretensão de transformar-se, formalmente, em um sistema jurídico supranacional. Na visão de Garapon e Allard, o fenômeno assemelha-se mais à construção de uma "vasta teia jurídica global". Na edição portuguesa da obra, os autores convencionaram a expressão comércio de juízes para simbolizar este intercâmbio judicial, e a posição sobre o tema em análise é no sentido de que "a mundialização do direito, tal como revelada pelo comércio de juízes, não dá sinais de enveredar por uma nova ordem jurídica mundial". Trata-se, portanto, de "um fórum informal de intercâmbios situado, na maior parte das vezes, à margem dos mecanismos institucionais" [12].

Parece adequado dizer que a magistratura acompanha a evolução do mundo e caminha no sentido de adotar um Direito mais móvel [13]. Afinal, como destacam os referidos autores, os juízes são "simultaneamente funcionários públicos e juristas independentes, executores de um direito estatal e participantes na discussão de um direito global", desempenhando um "papel de interligação no seio da mundialização" [14].

 


ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Os juízes na mundialização: a nova revolução do direito. Tradução de Rogério Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 2005.

ARNAUD, André-Jean; DULCE, María José Fariñas. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos. Tradução do francês por Eduardo Pelew Wilson. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

BONA, Carla Della. A transnacionalização do direito como forma de miscigenação dos sistemas jurídicos: uma recomposição dos fundamentos do direito. São Paulo: Dialética. 2022.

 


[1] BONA, Carla Della. A Transnacionalização do Direito como Forma de Miscigenação dos Sistemas Jurídicos: uma Recomposição dos Fundamentos do Direito, p. 254.

[2] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 265. A obra de Oscar Vilhena Vieira citada pela autora é: "Desafios do Ensino Jurídico num Mundo em Transição". Rio de Janeiro: RDA — Revista de Direito Administrativo, v. 261, p. 376.

[3] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 255.

[4] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 264.

[5] ARNAUD, André-Jean; DULCE, María José Fariñas. Introdução à Análise Sociológica dos Sistemas Jurídicos. Tradução do francês por Eduardo Pelew Wilson. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 357.

[6] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 257-8.

[7] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 264.

[8] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 256.

[9] BONA, Carla Della. Op. Cit., p. 266.

[10] ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Os Juízes na Mundialização: a Nova Revolução do Direito. Tradução de Rogério Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 2005, p. 7.

[11] ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Op. Cit., p. 8.

[12] ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Op. Cit., p. 10-15.

[13] ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Op. Cit., p. 38.

[14] ALLARD, Julie, GARAPON, Antoine. Op. Cit., p. 113.

Autores

  • é juiz federal substituto na 3º Vara Federal de Itajaí (SC), professor da Escola da Magistratura Federal de Santa Catarina (Esmafesc), mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali), coordenador do Centro de Solução de Conflitos (Cejuscon) na Justiça Federal de Itajaí e ex-defensor público do estado de SC.

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