Opinião

Os 10 anos da lei anticorrupção empresarial e os próximos 10 — Parte 1

Autores

8 de janeiro de 2023, 10h21

Há dez anos, o Brasil finalmente procurou se alinhar às recomendações internacionais e publicou sua lei anticorrupção empresarial. Nesta última década, se bem houve muitas transformações na sociedade brasileira, a verdade é que a lei ainda não foi capaz de inspirar mudanças sólidas nos padrões de governança e de gestão empresarial.

É bem possível especular sobre alguns dos motivos desta baixa performance legislativa. A principiar pelo excesso de expectativa quanto ao alcance das normas jurídicas, seja pela redução economicista do cálculo de custo/benefício e da lógica perversa dos incentivos, seja pela crença na indução de modificações substanciais nos padrões de governança por força da lei. Nossa tradição formalista ainda não foi capaz de desenvolver estratégias de interpretação mais consistentes, articulando controles e alternativas informais de interação entre políticas públicas e iniciativas do setor privado. Nem nossa sociedade, nem mesmo as complexas estruturas de mercado, podem ser reduzidas a mais um "texto normativo a ser interpretado".

Nesta Parte I, refletiremos sobre a configuração e os pressupostos da análise dos últimos dez anos, sob a ótica das empresas, dos empresários, dos órgãos de controle (como Ministérios Públicos, Tribunais de Contas, Controladorias) e Sistema de Justiça. Na Parte II (breve publicação), será discutida a política legislativa paralela à Lei anticorrupção (que levou à Lei das Estatais e à nova Lei de Licitações, dentre outras). Na Parte III (breve publicação), discutiremos as expectativas que imaginamos para os próximos 10 anos na agenda anticorrupção empresarial.

A lei anticorrupção empresarial nos deu mostra de que não irá muito longe sozinha. Depende de política regulatória que determine com maior clareza os limites legítimos de liberdade de ação empresarial, e não pode prescindir de normas que definam, com a mesma clareza, métricas objetivas para identificar a autenticidade do comportamento empresarial. A política regulatória mais apostou em recombinar o design de nossas instituições do que na efetividade do controle de práticas de governança (pública ou privada).

Nada disso funciona, no entanto, sem a atuação consistente dos órgãos de controle e das autoridades fiscalizadoras. Iniciativas anticorrupção empresarial dificilmente terão maior impacto se não produzirem uma medida objetiva para o exercício do controle social, sobretudo parte do Ministérios Públicos e dos Tribunais de Contas. Esta medida objetiva deve esclarecer (1) quais mecanismos operam, (2) quais funções e (3) em qual contexto a organização empresarial opera, de tal forma a permitir que o fiscalizador possa avaliar se realmente houve alocação de recursos e real capacitação para o cumprimento de deveres no âmbito empresarial. Ao menos é assim que deveria ser a interpretação da autenticidade do comportamento ético.

A legislação anticorrupção, contudo, não nos deu a oportunidade de incrementar a investigação de empresas. O fato é que esta questão é muito pouco difundida, desprestigiada em face de um controle social formal voltado, em sua maioria, para acomodar os pequenos delitos patrimoniais e as ficções criadas em torno da figura do "tráfico de drogas". Salvo exceções — louváveis, como é o caso do grupo de estudos coordenados pela Escola Superior do MP-GO, em parceria com o MP-TO, MP-ES, MP-PR e ENAMP1 —, o processo empresarial segue sendo quase um tabu.

A priorização de recursos do sistema justiça criminal em torno das infrações econômicas seria bastante promissora para preservar os espaços de liberdade na concorrência, de qualificação da cadeia produtiva e de promoção de direitos no setor privado. Do contrário, a falta de experiência neste campo pode gerar uma série de "efeitos não-pretendidos" (unintended consequences), afetando não apenas a performance da empresa ou os resultados de mercado, mas também gerando ambiente de aversão ao risco, fuga de investidores e, o que é ainda pior, de vulnerabilidade daqueles que dependem do orçamento da empresa para o próprio sustento.

Para a condução de investigações de empresa (interna, induzida por autoridades públicas, ou ainda, valendo-se do "privilégio da autoavaliação" — self-evaluating privilege —, defensiva, nos termos da Provimento CFOAB 188/2018), é necessário o devido cuidado com o impacto regulatório e as consequências deletérias que podem desencadear, tanto na esfera individual de dirigentes, quanto na performance da empresa e do mercado.

Porém, mais delicado é o impacto negativo em todos os stakeholders que dependem da rede contratual das empresas, merecendo maior atenção quanto à manutenção de atividades legítimas a partir do princípio da preservação da empresa. A linha é muito tênue, ou bem o conflito encontra uma precisão delimitada desde o início, ou as consequências da investigação podem trazer mais danos do que benefícios à sociedade.

Este cenário também exerce influência nas defesas corporativas. A falta de utilidade do sistema de investigação e sanções representa, sim, um "fator de estranhamento" — "distanciamento" — de empresariado e empresas. Nesta última década, o principal problema é que não foi possível apreender o sentido do que seria de fato uma "postura colaborativa" entre setor privado e autoridades públicas: "colaborar para quê?"; "e se houver abuso nas investigações, sob que parâmetros haverá controle judicial"?

Poderíamos avançar bastante se os controles fossem acompanhados da avaliação de sua necessidade (o que de fato é necessário para a mudança de comportamento da empresa), efetividade (se a implementação foi capaz de influenciar na mudança de comportamento, ou permitiu aprendizagens com sua implementação) e legitimidade (como esta mudança de comportamento gera valor a quem tem algum interesse na atividade da empresa).

Assim como segue havendo muito espaço para se aperfeiçoar a prática de análise de risco, sobretudo a partir da intensificação dos processos de verificação empírica das causas, oportunidades e motivos que levam à fragilidade dos controles e à prática de infrações e violações éticas nas empresas. Como se estivéssemos prescrevendo medicamentos sem diagnóstico clínico, na maioria dos casos, as decisões estratégicas no mercado brasileiro são tomadas sem referência à matriz de risco, bem ao estilo love for sale. A objetividade de uma matriz reduz a possibilidade de "falsa percepção do controle" (criação de falsos: negativo — com um "atestado" de imunização, onde é alta a probabilidade de investigação —; ou positivo — hipóteses em que se imagina que há risco, onde efetivamente não há, com perda de oportunidade legítima de negócio).

No fim das contas, a coerência entre a matriz e os controles implementados é o pressuposto para se evitar a mera adequação formal das estruturas de governança e integridade, com a consequente confusão entre colaboração com autoridades públicas e defesas corporativas. Antes mesmo de mostrar a "cultura de resistência das empresas", uma defesa apoiada na efetividade dos controles foge ao senso comum da proteção do patrimônio da empresa ou da imunização dos dirigentes de alto escalão, mostrando que, na verdade, a colaboração se presta à articulação transparente e verificável com autoridades públicas.

É quase inexplorada no Brasil a delimitação objetiva do conflito envolvendo investigação de empresas, seria bem possível melhorar a qualidade das informações que orientam a fiscalização da corrupção empresarial. Há muito espaço para inovar em soluções alternativas e a saída não é muito mais complexa do que enfrentar as questões elementares da corrupção: identificar e definir quem e como é vulnerado com o comportamento da empresa, constituindo evidências empíricas de prova idôneas para a condução do processo; ou como elaborar uma resposta inteligente, que permita analisar as aprendizagens geradas pela investigação e utilizar os recursos privados para restabelecer as estruturas de mercados e redes contratuais afetadas.

Esta constatação repercute sensivelmente na forma como tem operado o sistema de justiça brasileiro em torno da prevenção à corrupção empresarial. Talvez seja justamente por conta destas zonas indeterminadas que observamos uma conversão do sistema brasileiro de investigações em um verdadeiro "sistema de acordos".

O problema não está nos acordos em si, muito pelo contrário. Neles, a composição do conflito permite soluções dinâmicas, inovando na "construção da responsabilidade das empresas" para além das limitações legais. Independem do tempo (lento) das formas jurídicas e das limitações do processo judicial, autorizam a rápida resposta às crises e a legítima aplicação dos recursos privados para benefícios a quem foi vitimizado por seu comportamento.

A maior dificuldade, porém, é monitorar o efetivo cumprimento do pactuado, e dar conta de possíveis instabilidades nas sucessivas revisões destes acordos (recentemente, com o Decreto 11.129/2022, além de maior nível de detalhes sobre procedimentos de investigação, criou-se muita expectativa em torno da aplicação dos art. 53 e 54 na revisão de acordos de leniência). Aqui também a delimitação empírica do conflito serviria para orientar a atuação das autoridades fiscalizadoras.

Em qualquer destes campos analíticos discutidos nesta Parte I (normativo, regulatório, atuação das autoridades fiscalizadoras, papel do setor privado, colaboração entre setor privado e autoridades fiscalizadoras), a necessidade de avaliação dos controles constitui o denominador comum. Sua validação, seja por meio de evidências científicas, quer por meio da observação por avaliadores independentes, é o que permite identificar com maior acurácia a autenticidade do comportamento de cada um destes atores. Em uma palavra, os controles deveriam ser submetidos à avaliação por pares e ao crivo da segunda opinião.

Na agenda de restauração da gestão democrática dos problemas sociais brasileiros, o enfrentamento da corrupção deveria ocupar uma posição muito privilegiada. A formação de um acervo mais sólido, fundamentado em evidências sobre a necessidade, efetividade e legitimidade dos controles, talvez tenha sido a principal lacuna nestes últimos dez anos da lei anticorrupção. É o impulso que falta para amadurecermos na política de redução da corrupção empresarial no Brasil. Com a melhoria do ambiente negocial, não haveria melhor forma de enaltecer o uso legítimo da liberdade de ação das organizações empresariais. E, tal qual pretendemos explorar nas Partes II e III deste ensaio, não há gestão democrática sem integridade nos negócios2.


1 Mais detalhes, veja-se o canal da Escola Superior do Ministério Público de Goiás: https://www.youtube.com/@esump_mpgo

2 Saad-Diniz, Eduardo (2019). Ética negocial e compliance: entre a educação executiva e a interpretação judicial. São Paulo: RT.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!