Opinião

Um programa democrático para as Forças Armadas (parte 1)

Autor

  • Antônio Carlos Will Ludwig

    é professor aposentado da Academia da Força Aérea pós-doutor em Educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes)

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6 de janeiro de 2023, 6h32

Conforme dizem muitos cientistas sociais, nossos militares, no decorrer da história, sempre estiveram envolvidos com a política. Afirmam que desde a proclamação da República até a aplicação do golpe na década de 60 do século passado eles exerceram uma espécie de poder moderador. No transcurso dos 20 anos da ditadura, assumiram diretamente o exercício do governo. Encerrado o período autoritário com a entrega do poder aos civis, recolheram-se aos quartéis e dedicaram-se à atividade profissional. Embora de maneira bem menos ostensiva do que no passado, a ação política transcorreu segundo as normas do regime democrático por meio da prática do voto, candidaturas em eleições, formulação da estratégia de defesa nacional e fornecimento de colaboração nos períodos eleitorais.

Entretanto, em 2018 ocorreu o julgamento de Lula no Supremo Tribunal Federal, o qual teve negado seu pedido de Habeas Corpus. Como é do conhecimento de muitos, essa não aceitação teve bastante a ver com o tuíte persuasivo emitido pelo general V. Bôas, movido pelas pressões oriundas dos ativos e inativos da família militar. Outro general já tinha admitido em entrevista que, caso ocorresse a concessão, o recurso à reação armada seria inevitável, porquanto constitui um dever militar restaurar a ordem. A Anistia Internacional, bem como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Nacional dos Procuradores da República e a Associação de Juízes Federais emitiram notas condenadoras do referido tuíte, por atentar contra a independência dos Poderes e se revelar como uma afronta ao Estado Democrático de Direito.

Com Lula fora do páreo, a candidatura de Bolsonaro teve condições de avançar. Quanto a ela, vale dizer que foi construída pelos militares adeptos de valores conservadores e do sentimento antipetista que vislumbraram uma auspiciosa chance de alcançar o poder pela via democrática. Observe-se que logo após esse evento, houve um encontro de Bolsonaro com o general V. Bôas juntamente com integrantes do Alto Comando do Exército, no qual aconteceu o incremento de sua reabilitação no âmbito da força bem como o ganho de um relevante impulso à sua caminhada política rumo ao Planalto. O denominado partido da farda, partido militar ou partido verde-oliva encarregou-se de incentivar os integrantes da caserna a alinharem-se ao capitão candidato. O poder de sedução da onda bolsonarista estimulou inúmeros militares da ativa a violarem os regulamentos castrenses para fazerem campanha nas redes sociais.

Uma das primeiras medidas tomadas por Bolsonaro após eleito foi nomear milhares de fardados para ocuparem cargos na esfera do governo. E, tendo em vista estreitar o máximo possível a relação com eles, concedeu aos mesmos benefícios financeiros, privilégios e agrados, dentre os quais se destacam verba extra para o Ministério da Defesa, salário acima do teto constitucional, reestruturação da carreira e alteração das regras de seguridade social. Essas retribuições não se mostraram apenas como um gesto de agradecimento, mas também, e principalmente, como uma tentativa de cooptação para apoio ao seu projeto populista de governo, o que chegou a entusiasmar uma facção dos fardados.

Após a recente derrota eleitoral do mito, outras manifestações dos servidores de uniforme vieram à tona. Emergiu o aguardado relatório das urnas, que, em sua primeira versão, foi favorável à confiança nas eleições realizadas, porém em uma segunda versão tal confiança foi contestada. Alguns comandantes de quartéis se mostraram simpáticos e condescendentes com os lamuriantes patriotas postados em frente das guaritas vociferando por intervenção federal. Manifesto assinado por militares da reserva e da ativa contra uma suposta insegurança jurídica e uma instabilidade social e política no país foi postado como petição na internet. Um sargento que prestava serviços na administração federal bradou que Lula não iria subir a rampa. Os comandantes das três Forças, em desrespeito às normas militares, ameaçaram abandonar os cargos antes da posse do presidente eleito. E durante os quatro anos de governo a cúpula militar não veio nenhuma vez a público rechaçar a possibilidade da ocorrência de golpe, deixando pairar um sentimento de dúvida e de desconfiança na população.

Embora se faça necessário destacar e enlevar os fardados por não terem  enveredado rumo a uma aventura golpista sob o comando de Bolsonaro, cabe acentuar que esse conjunto de acontecimentos emergidos no transcorrer da história revela, no mínimo, que nossos militares ainda não conseguiram se ajustar adequadamente às exigências do regime democrático. Ademais, essas ocorrências se mostram como sequelas do modo de pensar e sentir deles, que agrega o sentimento de superioridade em relação aos paisanos, o elevado grau de autonomia para tomar decisões e a concepção de que não só podem como devem exercer a tutela sobre o Estado e a sociedade. Além disso, e tão importante quanto elas, é o fato de o Brasil se encontrar bem distante das nações mais desenvolvidas no que diz respeito ao controle democrático das Forças Armadas.

Com efeito, desde há muito tempo, governantes, parlamentares do Congresso Nacional, autoridades dos Poderes constituídos, elites dos vários setores e múltiplas organizações sociais têm demonstrado notória despreocupação e desinteresse para com o que ocorre no interior da caserna, apesar dos inúmeros estudos, das sugestões e das propostas advindos dos pesquisadores integrantes da comunidade acadêmica. Malgrado a existência deste manifesto descaso, revela-se imprescindível a exposição de um programa democrático para tornar as Forças Armadas mais ajustadas à democracia, conforme o que ocorre em outros países por ela regidos.

Papel Constitucional: Nossa Carta Magna prevê para as Forças Armadas as tarefas de defesa da Pátria, de garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer um deles, da lei e da ordem. O grande problema desta finalidade se encontra na garantia da lei e da ordem, uma atividade que os militares exigiram que fosse mantida na Constituição atual para perpetuar a mesma função prevista naquelas que a antecederam. Tais dizeres são condizentes com toda estrutura jurídica de um país que apresenta as denominadas lacunas da lei. Os vazios e brancos da legislação não decorrem apenas de possíveis descuidos ou cegueira provocados pelo caráter ideológico de ocultação que faz parte do Direito. É intencional e atende ao interesse de incluir brechas para ir além da própria lei. Essa tarefa possibilita aos militares continuarem exercendo o antidemocrático poder moderador que veio à tona novamente durante o governo de Bolsonaro em suas contendas com o Judiciário.

Não pode ser esquecido que as Forças Armadas de qualquer país do mundo, apesar do alto grau de autonomia que exibem, encontram-se ideologicamente atreladas aos segmentos dominantes da sociedade. Quando estes setores não conseguem ser hegemônicos na sociedade os militares aparecem em seu auxílio. Há, portanto, um claro apreço pelo ocultamento nestes segmentos porquanto permite a ocorrência de ações flexibilizadas as quais são muito importantes para a prática da hegemonia. Os termos ordem e lei permitem a eles utilizar as Forças Armadas em diversas circunstâncias, até naquelas em que pareça estar sendo violada a determinação legal. Cabe acrescentar que nos países de democracia consolidada não existe esta previsão legal. Em Portugal cabe às Forças Armadas a defesa militar da República e na Alemanha elas têm por funções a defesa do país e a intervenção nos casos em que a Lei Fundamental autoriza expressamente. Portanto, é preciso retirar da Constituição esta tarefa ou acrescentar nela seu explícito e objetivo significado.

Ministério da Defesa: Durante os governos de Fernando Henrique, Lula da Silva e Dilma Rousseff a chefia do Ministério da Defesa foi entregue a um civil. Com Bolsonaro militares assumiram o comando. Pelo que se sabe os ministros civis apresentaram um bom desempenho em suas funções, embora deva ser lembrado que nas gestões deles ocorreram atos de resistência e insubordinação por parte dos fardados resultantes de um legado autoritário segundo estudo feito por Jorge Zaverucha.

Recorde-se que nos Estados Unidos da América do Norte os comandantes que ocuparam o Departamento da Defesa, ou seja, os Secretários da Defesa, foram tanto civis quanto militares, mas os paisanos predominaram. Talvez o povo estadunidense até prefira um militar na chefia deste órgão porquanto o prestígio dos fardados perante a população é muito alto, gira em torno de oitenta por cento. Ademais os cidadãos norte americanos nutrem uma grande preferência pelas soluções militares aos vários tipos de problemas que afligem a sociedade. Em nosso país, ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, os militares, no decorrer da história, interviram demasiadamente no jogo político e o prestígio das Forças Armadas recebeu vários arranhões. Para mudar o modo de pensar dos servidores de uniforme e conseguir a real subordinação deles aos civis eleitos pelo voto é imprescindível que a chefia do Ministério da Defesa seja endereçada apenas aos civis.

Conquanto a história registre que todos os ministros da defesa foram indivíduos do sexo masculino, inclusive o atual já nomeado, a opção por uma mulher, pesquisadora de assuntos militares e com bom trânsito na caserna, seria bem-vinda. Veja-se que as mulheres, desde há muito tempo, estão sendo aceitas nas hostes castrenses em condições de igualdade com os homens nos diversos ramos da profissão militar. Elas são consideradas aptas física e mentalmente para exercer todas as funções destinadas aos fardados masculinos inclusive a de guerreira. Persistem demonstrando um bom desempenho nas atividades a elas destinadas e muitas vêm ocupando posições de destaque por meio do alcance do posto de general. Muitas dezenas de mulheres já ocuparam o cargo de Ministro da Defesa tais como Indira Gandhi na Índia, Elisabeth Rehn na Finlândia, Kim Kampbell no Canadá, Laura Miranda na Costa Rica, Kristin Devold na Noruega, Michelle Bachelet no Chile. Pelo que se sabe, mesmo enfrentado as dificuldades pertinentes todas alcançaram êxito em suas tarefas no decorrer do mandato. Ressalte-se que a atual ocupante da pasta na Alemanha é Christine Lambrecht. Ademais constitui uma forma de aumentar a presença delas em cargos de governo uma vez que a composição ministerial em nosso tem sido majoritariamente masculina.

Ensino nas Academias: Com os trabalhos da atual equipe de transição, particularmente no âmbito da área da defesa, os militares apresentaram quatro pontos que eles não aceitam que sejam tocados, sendo um deles o ensino nas Academias. Em parte, eles possuem razão porquanto devem levar em conta que praticamente inexistem civis entendedores de ensino militar. A favor desta provável suposição mencione-se que nos cursos de Pedagogia não há especialidade em educação castrense e nem na área da pós-graduação. Os mesmos exibem atitude semelhante constatada em colegas estrangeiros, particularmente os da Bulgária, que alegam a falta de civis competentes neste setor de ensino.

Malgrado esta suposição seja verdadeira é sabido que em outras nações tem ocorrido algum controle civil sobre a educação dos fardados. Na Inglaterra e na Alemanha, os alunos antes de frequentarem as Academias Militares precisam concluir uma licenciatura ou um bacharelato em universidades relativos a várias áreas do conhecimento, os quais encurtam a duração do preparo no interior da caserna. O ensino superior de todos os países integrantes da Comunidade Europeia é regido pelo alcunhado Processo de Bolonha complementado pela Estratégia de Lisboa e pela Estratégia Europa o qual visa facilitar o intercâmbio de graduados e adaptar o conteúdo dos estudos universitários às exigências sociais, melhorando a sua qualidade e competitividade através de uma maior transparência e uma aprendizagem baseada no estudante quantificada através dos créditos.

Enquanto uma modalidade de ensino superior o ensino militar também é obrigado a seguir esta orientação e os órgãos centrais de educação de cada país têm a incumbência de monitorar as instituições de ensino castrenses em relação a esta obrigação. A Finlândia é uma nação que vem empreendendo esforços para seguir tal rumo. Para tanto as instituições militares de ensino já incluíram no currículo um conteúdo acadêmico composto de ciências humanas e naturais e instituíram os graus de bacharel, mestre e doutor em Ciências Militares dentre outras mudanças. Na Turquia o ensino superior militar é subordinado ao Ministério da Educação. Sua organização e seu funcionamento obedecem a Lei do Ensino Superior e as normas emanadas do Conselho de Ensino Superior. No caso brasileiro as três Academias Militares poderiam agregar um núcleo básico comum voltado para o estudo de certos temas tais como o papel das Forças Armadas, a defesa da democracia e as relações civis militares, o qual seria diretamente supervisionado pelo Ministério da Educação. É possível ir mais além e seguir os passos da Argentina que criou uma Universidade Nacional da Defesa subordinada ao Ministério da Educação e transferiu para ela a tarefa de formar seus servidores fardados.

 

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Autores

  • é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de "Democracia e Ensino Militar" (Cortez) e "A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania" (Pontes).

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