Opinião

Cautelares estigmatizantes: é preciso pôr fim ao espetáculo das operações

Autor

  • Pablo Domingues Ferreira de Castro

    é advogado criminalista doutor em Direito Constitucional pelo IDP-DF mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) especialista pelo IBCCrim pós-graduado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) professor de cursos de graduação (Unifacs) pós-graduação e coordenador adjunto da pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito

6 de janeiro de 2023, 20h15

Não é incomum — aliás é vulgar, ordinário — que investigações policiais, ou presididas por outros órgãos de persecução, desdobrem em medidas cautelares que impliquem afastamentos de sigilo; buscas e apreensões; prisões temporárias e preventivas, dentre outras, dos investigados. As medidas, desde que necessárias, não devem atrair maiores atenções críticas.

Também não se pretende, por meio desse breve ensaio, questionar o uso demasiado dessas medidas. Aqui, se poderia subdividir em três grandes equívocos que não raras vezes envolvem as medidas cautelares de natureza criminal: (1) excesso e abuso na postulação de determinada medida (como se fosse irrelevante a demonstração de necessidade, utilidade e, ainda, adequação do que se postula com o que se busca realizar em termos de produção de provas ou preservação do processo/investigação); (2) excesso e abuso na decisão judicial que defere tais medidas, novamente sem observância da necessidade, utilidade e, ainda, adequação do que se postula com o que se busca realizar em termos de produção de provas ou preservação do processo/inquérito (STJ – HC: 497699 MG 2019/0068160-8, relator: ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO); (3) excesso e abuso dos agentes responsáveis por cumprir estas medidas que, em muitas ocasiões, ignoram aspectos de legalidade que legitimam o ato (STJ – HC: 673489 SP 2021/0183180-5, relator: ministro OLINDO MENEZES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO).

Portanto, não é uma crítica aos excessos conhecidos e que rodeiam os atos de força autorizados pelo Estado. Para estas a jurisprudência reconhece as eventuais ilegalidades e a elas dá o respectivo tratamento, revogando decisões, reputando como nulos determinados atos, dentre outras medidas.

O que se propõe é uma reflexão crítica sobre o que se cunhou denominar "operações" capitaneadas pelas polícias ou Ministérios Públicos, de forma integrada, ou não, com demais órgãos de controle e fiscalização, com o fim de se promover uma espécie de "batismo" de alguma(s) dessa(s) medidas, que mais comumente têm como alvos números consideráveis de investigados, alicerçadas com imposições a estes de medidas cautelares de diversas naturezas, de modo cumulado.

Como consequência, de modo oficial, as autoridades que postulam essas medidas passam, então, à nomeá-las (as medidas cautelares aplicadas simultaneamente) como "operações", sempre acompanhadas de um substantivo ou adjetivo para rotulá-las, invariavelmente de modo negativo, atribuindo características que, ou desqualificam as pessoas dos investigados, promovendo-se, em muitos casos, trocadilhos com os ofícios desempenhados pelos destinatários das medidas, ou utilizando-se de expressões que denotariam uma necessária purificação dos envolvidos. Exemplo destes últimos é a própria operação "lava jato". Para os demais, tem-se "Operação Registro Espúrio"; "Operação Injusta Causa"; "Operação Faroeste", etc.

Com efeito, com esses expedientes — tal qual ocorre na medicina quando uma equipe de cirurgiões — os "cirurgiões de polícia ou Ministério Público" igualmente promovem suas operações, tendo como paciente o tecido social, e daí inaugura-se uma verdadeira e novel categoria processual não prevista em lei. Afinal, não há lei em vigor, notadamente em Direito Penal material e Processual Penal, que assegure aos órgãos de persecução o direito (nem muito menos o dever) de apelidarem de "operações" as medidas cautelares que postulam e nem tampouco de as complementarem com termos depreciativos, antecipando um juízo de valor negativo sobre o objeto da investigação.

A este respeito Paulo Henrique Drummond Monteiro (2019, p. 7) adverte que as teorias da Reação Social consideram que o delito é definido por meio dos processos de criminalização realizados pelos próprios sistemas de controle social. Portanto, o desvio de conduta não ostentaria uma matriz ontológica e, sim, definitória. Estes sistemas são seletivos, discriminatórios e capazes de rotular algumas pessoas, as quais sustentam um verdadeiro estigma.

Voltando-se à hipótese do que se pretende aqui mentalizar, é de se ponderar que a adoção desses nomes e expressões para "batizar" as medidas cautelares refletem justamente o processo de criminalização, rotulação e estigmatização aferidos nas teorias da Reação Social.

É dizer: ao alcunharem estes atos processuais, aqueles que se valem das medidas cautelares postuladas e deferidas criam o estigma necessário para os destinatários das medidas, para torná-los verdadeiros "criminosos". Tornam-se os corpos enfermos da medicina. Lá, os médicos cuidam de uma sociedade fisiologicamente doente. Aqui usa-se a força bruta do Estado para tentar (inutilmente) dar algum tratamento ao tecido social, compostos por pessoas agora identificadas, rotuladas. Pior: com cicatrizes que as demarcam processualmente.

A partir daí, imergidos em uma categoria processual inominada e não autorizada por lei, estes sujeitos etiquetados travam com o Estado verdadeira disputa para se recolocarem em um ambiente em que possam exercer os seus direitos constitucionais mais comezinhos, sem que deixem toda a carga negativa e pecha de delinquente interferirem no devido processo legal, bem como na ampla defesa e contraditórios com todos os meios e recursos a ela inerentes.

Aqui cabe melhor reflexão, precisamente no que se refere a capacidade de interferência que este etiquetamento é capaz de produzir.

É que um ambiente de supressão de direitos passa a preponderar. As medidas de impugnações defensivas das pessoas que estejam envolvidas nas ditas "operações" não gozam, materialmente, dos mesmos alcances caso estivessem se defendendo num contexto a parte de uma operação.

Significa dizer que um sujeito envolvido em uma dessas operações experimentará dificuldades muito além daquelas — já excessivas — encontradas por um indivíduo comum, atrelado a um inquérito que esteja em fase de persecução, porém sem submeter o investigado a medidas cautelares diversas e orquestradas.

As "operações", sempre acompanhadas de uma cobertura dedicada dos veículos de impressa, são capazes, ainda que no subconsciente do senso comum ou no consciente daqueles que participam das "operações", de carimbar os seus pacientes (em termos médicos) ou os alvos (em termos jurídicos), para que passem a ser identificados, não apenas pela sociedade, pelo apelo público que geralmente essas medidas desvelam, mas, o que se reputa ainda mais grave, um tratamento categorizado e etiquetado no âmbito do próprio Poder Judiciário.

O tratamento jurídico que o Poder Judiciário dispensa à determinadas pessoas quando precisam se defender no âmbito de um inquérito, instaurado para apurar práticas ilícitas penais isoladamente, é completamente diferente de quando, em análise dos mesmos tipos penais, esta pessoa precisa se defender em um inquérito demarcado com a mácula de ser fruto de uma "operação".

A ideia (desvirtuada e falsa) que se passa com essa categorização ilegal (registre-se) é que os alvos — e são formalmente nomeados assim- precisam ser expostos (daí há um empenho para que o caso, em que pese sigiloso, tenha informações compartilhadas com a mídia) e, para além disso, por não serem meros investigados, também experimentam dificuldades reais de terem acolhidas as medidas de defesa implementadas. Todo o corpo julgador, por mais neutro que tente ser, estará, a esta altura, não mais tratando o sujeito como mais um investigado. Não. Este indivíduo agora carrega a cicatriz do sujeito que é investigado em uma "operação".

Ainda que contra esse sujeito último não haja nada para confirmar a hipótese da Polícia ou outro órgão de persecução, seu(s) pleito(s) defensivo(s), para ser atendido(s), sempre terá(ão) de trilhar os caminhos tormentosos da descontaminação, cujo objetivo é tentar afastar um eventual não pertencimento ao corpo social estigmatizado.

Numa ideia de que "faço parte da investigação, mas não possuo elos com demais investigados".

Inicia-se, para a defesa técnica, o martírio da comprovação do "não-fato". Afinal, neste momento, o sistema do Judiciário já lhe recebe em seus assentamentos com qualificações aquilatadas de "investigado na operação…". Muda a categoria. Muda o tratamento que lhe é dispensado.

Se, individualmente, o investigado faz postulações de revogações de medidas cautelares e este pleito é apreciado em curto lapso de tempo. Sujeitos carimbados e marcados por serem alvos de operações, reproduzem mesmos pleitos que demoram muito mais tempo para ser analisado. Afinal, e é a resposta que se acaba externando, por ser uma "operação", é preciso que os casos sejam analisados com ainda mais cuidado. Esta é uma perspectiva nefasta, mas que atinge, por enquanto, o caráter da celeridade e entrega jurisdicional.

Em outro vértice, as "operações" angariam números significativos de investigados que, cada um com sua assistência técnica, ajuíza meios de impugnações autônomos e cria-se uma segunda dificuldade para aquelas rotulados como alvos nesta "operação": para além de demonstrar sua falta de vinculação com qualquer evento delitivo (novamente o não-ato), precisará evidenciar as razões pelas quais o meio de impugnação que está a utilizar tem fundamentos jurídicos diferentes de outro utilizado por outro alvo na operação e que já foi negado.

O que se quer dizer é que esta "operação" cria estigmas indissociáveis aos investigados que, para se defenderem precisam sobrepor níveis ainda maiores para, legitimamente, desenvolverem o seu direito à ampla defesa e contraditório.

Com legalidade completamente duvidosa, os próprios sistemas de controle processuais do Estado identificam medidas cautelares com os seus respectivos "apelidos". Forma-se um sequencial de números de registro do processo (ou inquérito) acompanhado, em inúmeras situações, da expressão "operação".

Com efeito, institucionalizar esta medida traz consequências também de ordem institucionais e culturais. O alcance no imaginário de quem precisa tratar destas medidas cautelares de modo institucionalizado, atinge desde o servidor que cuida de tarefas cartorárias que envolvam este processo até os próprios julgadores, que sobre eles terão de entregar uma prestação jurisdicional.

Em breve ensaio, se quer dizer que esse mecanismo de se impor cicatrizes nos investigados, compromete, em níveis diversos e com profundidade diferentes, o exercício regular da ampla defesa e contraditório. Compromete, ainda, a qualidade do julgamento, feito por julgadores que identificam seus jurisdicionados a partir das cicatrizes deixadas pelas "operações" feitas que, ao invés de representarem meras (e juridicamente suficientes) medidas cautelares em matéria penal, tornam-se ambiente de espetáculo, com seus alvos marcados, etiquetados e subcategorizados. Desnecessário, ilegal e ilegítimo.

 


MONTEIRO, Paulo Henrique Drummond. Papéis sociais, preconceito, estereótipo e estigma. A apresentação da imagem/voz de pessoas presas como instrumento do processo de degradação da personalidade. Revista do ICP – Instituto de Ciências Penais, Belo Horizonte, n. 4, p. 399-428, nov.. 2019. Disponível em: http://200.205.38.50/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=155390. Acesso em: 11 dez. 2022.

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  • é advogado criminalista, doutorando pelo IDP-DF, mestre pela UFBA, especialista pelo IBCCRIM, pós-graduado pela UFBA, professor de cursos de pós-graduação e coordenador adjunto da pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito.

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