Opinião

Transação tributária e rebuliço hermenêutico

Autor

  • Carlos Henrique Machado

    é doutor e mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Santa Catarina especialista em Direito Tributário pelo Ibet professor de Direito Tributário na Faculdade Cesusc sócio e coordenador do Núcleo de Educação Corporativa no escritório Marchiori Sachet Barro e Dias Advogados.

2 de janeiro de 2023, 15h16

As relações sociais da contemporaneidade sugerem um feixe de complexidades que legitimam as vias plurais de prevenção e resolução de litígios, descortinando, também nos redutos do Direito Tributário, um modelo multiportas dotado de mecanismos diversos para o enfrentamento da conflitualidade.

O paradigma multiportas reflete uma nova dogmática jusfilosófica que impõe revisitar os conceitos históricos que sustentaram a essencialidade do Estado em questões sensíveis, notadamente a dissipação de disputas jurídicas erigidas a partir de objetos outrora identificados com os chamados interesses (indisponíveis) públicos.

No Brasil, só recentemente foram rompidas as fronteiras para algum avanço da consensualidade e da concertação em controvérsias envolvendo os créditos de natureza tributária, especialmente diante da postura mais compassiva da administração pública e de avanços significativos em termos legislativos.

Esse cenário oferece contornos para a percepção de uma administração pública ressignificada, mais dialógica e menos ensimesmada, aberta ao colóquio pluralizado de interesses diversificados, corporificados no âmago de sociedades cada vez mais complexas, plurais e multifacetadas.

É argumento prosaico que a lei sempre representou a segurança mais efetiva dos cidadãos contra arroubos autoritários dos poderes instituídos, todavia, hoje, tem sido justamente referenciada como um embrião de insegurança para o direito, diante da profusão demasiadamente complexa, excessiva e mal elaborada.

Esse ambiente disruptivo passa a reconhecer, notadamente no Estado constitucional de direto, um postulado jurídico de envergadura mais abrangente, que atende por tutela jurisdicional efetiva, afirmando mecanismos mais adequados para a prevenção e resolução de conflitos, abertos à efetiva participação dos contribuintes e qualificados por equivalente dignidade jurídico-constitucional.

Com o advento da Lei Federal nº 13.988, de 2020, fruto de conversão da Medida Provisória nº 899, de 2019, finalmente resultou regulamentado o artigo 171 do Código Tributário Nacional, revelador de uma disposição normativa geral, alvo de menoscabo longevo, já existente no ordenamento jurídico brasileiro desde o ano de 1966.

O sucesso quase imediato da transação tributária na esfera federal, catapultado seguramente pela pandemia da Covid-19, impulsionou a concretização de milhares de negociações entabuladas entre os contribuintes e a Fazenda pública, abarcando os mais diferentes setores da economia nacional.

Nada obstante, a consagração da transação tributária mais corriqueira, forjada a partir de mera adesão às regras propostas pela administração tributária, mediante condições editalícias rígidas, acabou elevando diversos debates sobre a natureza do instituto negocial. Isso porque, em seu anunciado fundamento teleológico, o modelo transacional elevou-se como um triunfo da consensualidade e da autonomia de vontades, objetivando uma ruptura com a sistemática indiscriminada dos parcelamentos.

Malgrado o inegável avanço promovido pelo modelo transacional, ainda que distante de uma negociação em essência mais efetiva (o que ficou limitado às "propostas individuais"), remanesceram críticas razoáveis quando a negociação viceja reduzida à mera anuência das condições editalícias.

Nessa linha, retomando a previsão em norma geral a respeito da transação tributária, que qualifica o instituto como modalidade de "extinção do crédito tributário", decorre indisputável controvérsia em cotejo com os tradicionais entendimentos manifestados pela doutrina e pelas enunciações recentes em formulações parlamentares.

Daí porque é necessário resgatar a gênese dos institutos de ascendência privada que têm sido incorporados ao Direito Tributário, sob pena de indesejável sobreposição conceitual de proposições normativas com realidades e propósitos distintos.

Como instituto de origem privada, a transação já revela controvérsia no próprio seio da disciplina civil. O Código Civil de 1916, hoje revogado, tratou da transação como causa/efeito extintivo das obrigações, não como modalidade de contrato. Já no atual Código Civil de 2002, a transação subsistiu como espécie contratual (artigo 840). O Código Tributário Nacional, por certo, sob a influência da legislação privada, enquadrou a transação tributária como modalidade de extinção do crédito tributário (artigo 156, III).

A doutrina abalizada, já há tempos, vem tentando definir os contornos da transação internalizada pelo direito tributário e buscando responder as inúmeras controvérsias que circundam a hermenêutica do instituto [1].

Luís Eduardo Schoueri propôs que a transação tributária, uma vez concluída, "extingue o crédito tributário, por força do artigo 171 do Código Tributário Nacional. O que surge em seu lugar é um novo crédito, resultado da transação. Claro que esse crédito tem natureza pública, mas seu 'fato gerador' é a própria transação" [2].

Paulo de Barros Carvalho, por sua vez, afirma que "é curioso verificar que a extinção da obrigação não se dá propriamente por força das concessões recíprocas, e sim do pagamento. O processo de transação tão somente prepara o caminho para que o sujeito passivo quite sua dívida, promovendo o desaparecimento do vínculo" [3].

Em paralelo, Hugo de Bruto Machado destaca que "não se pode, entretanto, excluir a transação como causa da extinção do crédito tributário, na medida em que, havendo concessão por parte da Fazenda, como no caso em que ocorre dispensa, total ou parcial, de multa e juros, ou mesmo de parte do valor do tributo, é a transação que causa a extinção do vínculo, nessa parte consubstanciada pela concessão da Fazenda" [4].

A realidade que se impõe, no entanto, evidencia que os modelos de transação tributária edificados pela legislação ordinária (notadamente a Lei Federal nº 13.988, de 2020), quando confrontados com a norma geral, têm sido objeto de uma hermenêutica bem mais elastecida (que combina pagamento, parcelamento, moratória, remissão, garantias etc.), em alinhamento com o paradigma de consensualidade típico dos nossos tempos.

Na verdade, a previsão da transação tributária sempre existiu por detrás de um véu de incertezas, restando implementada, só recentemente, como evidente medida de política fiscal para enfrentamento da litigiosidade endêmica. E a profusão de modalidades diversas de transação tributária, com configurações criativas e até mesmo desatreladas do conceito maternal (contemplado em norma geral), desnudou a potencialização do conceito vacilante.

Nenhuma leitura das disposições codificadas sobre a transação tributária poderia ser mais autêntica, talvez, que a realizada por Rubens Gomes de Sousa, autor do Anteprojeto do Código Tributário Nacional, partindo declaradamente de uma análise do direito privado: "Transação, regulada pelo art. 1.025 do Código Civil, é o ajuste pelo qual as partes terminam um litígio ou evitam que ele se verifique, mediante concessões mútuas. Isto não seria possível no direito tributário, porque, como já vimos, a atividade administrativa do lançamento é vinculada e obrigatório (§ 25), o que significa que a autoridade fiscal não pode deixar de efetuar o lançamento exatamente como manda a lei, não podendo fazer concessões".

Rubens Gomes de Sousa acrescenta, ademais, que uma única situação permitiria a transação no Direito Tributário: "Entretanto, existe uma exceção, quanto aos tributos federais, porém somente quando a questão já esteja sendo discutida em juízo: a Lei n. 1.341, de 31.1.51, que regula a atuação dos Procuradores da República, permite, mediante autorização expressa do Procurador Geral em cada caso, que os Procuradores Regionais façam acordos com o contribuinte para terminar o processo: é uma medida necessária quando se verifique que a Fazenda poderá perder parcialmente o processo, a fim de evitar demora, pagamento de custas, etc. (13)" [5].

Resgatando novamente o conceito geral do Código Tributário Nacional, que deve servir como ponto de partida para uma análise mais coerente do instituto (artigo 146, III, da CF/88), tem-se um resultado aparentemente tranquilo quanto à natureza jurídica da transação tributária, o que sugere compreender o instituto como uma modalidade de negociação entabulada com o propósito de extinguir o crédito tributário, mediante a realização de "pagamento imediato" — justamente por isso "extingue".

Note-se que a norma geral é bastante clara, prevendo que é a própria transação que figura como causa de extinção do crédito tributário, sem qualquer espécie de ressalva ou de condicionamento. Nesse sentido, basta verificar, como ocorre noutras modalidades de extinção do crédito tributário, que a legislação complementar estabeleceu condicionantes. Significa dizer que o mero "pagamento antecipado", exclusivamente, naquelas hipóteses de tributos sujeitos a lançamento por homologação, não é suficientemente capaz de extinguir o crédito tributário, mas, sim, a efetiva homologação do pagamento, de maneira expressa ou tácita (artigo 156, VII). Também não é a "consignação em pagamento", per si, que extingue o crédito tributário, mas o julgamento de "procedência da ação proposta", quando, só então, o pagamento do crédito tributário se reputa efetuado (artigo 156, VIII).

Resulta claro, portanto, que o elemento decisivo para o idealizador do Código Tributário Nacional, no tocante à extinção do crédito tributário pela transação, é a ideia de negociação tributária acompanhada do pagamento imediato.

Sem embargo, a miscelânea de institutos incorporados aos modelos consensuais de transação tributária vem desnaturando (e ressignificando) a ideia forjada na década de 1960, quando editado o Código Tributário Nacional, sendo inegável que as moratórias e os parcelamentos, por exemplo, quando admitidos acessoriamente à negociação da dívida tributária, acabam trazendo intrincados problemas teóricos.

Em suma, sob o recorte temporal da época, a transação tributária apontava para um mecanismo de natureza muito mais simples, até porque defender redutos de consensualidade no Direito Tributário há cinquenta anos soava como uma retumbante heresia.

 


[1] A ideia de transação como "novação" nas cercanias do Direito Tributário foi peremptoriamente refutada pelo art. 12, § 3º, da Lei nº 13.988, de 2020: "A proposta de transação aceita não implica novação dos créditos por ela abrangidos".

[2] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 10. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2021. p. 379.

[3] CARVALHO, P. B. Curso de direito tributário. 31. ed. São Paulo: Noeses, 2021. p. 496.

[4] MACHADO, Hugo de Brito. Transação e arbitragem no âmbito tributário. Revista Fórum de Direito Tributário (RFDT), Belo Horizonte: Fórum, ano 5, nº 28, p. 57, jul./ago. 2007. p. 57.

[5] SOUSA, R. G. (Coord. IBET). Compêndio de legislação tributária. p. 116.

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