Opinião

A MP nº 1.152/2022 e novo regramento de preços de transferência no Brasil

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1 de janeiro de 2023, 17h16

Dia 29 de dezembro de 2022, no apagar das luzes do período de governo 2019-2022, foi publicada a Medida Provisória nº 1.152/2022 (MP 1.152), que revogou os artigos 18 a 23 da Lei nº 9.430/1996, os quais dispõem sobre preços de transferência, promovendo também ajustes na legislação correlata. De observar que a nova legislação tem 40 artigos, sem considerar os dispositivos de transição e de adaptação, enquanto a legislação em vigor tem apenas seis artigos. Isto se deve ao fato de que a metodologia que consta da MP 1.152, refletindo os mandamentos do Transfer Pricing Guidelines [1] da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (TPG/OCDE), é muito mais complexa e completa que a metodologia da Lei nº 9.430/1996, a qual pode ser considerada obsoleta sob diversos aspectos. Para se ter uma ideia da complexidade do tema, observe-se que o TPG/OCDE de 2022 têm 655 páginas e o Manual Prático da ONU de Preços de Transferência para Países em Desenvolvimento (Manual da ONU) [2], de 2021, que tem por objetivo tornar mais prática a aplicação da metodologia baseada no princípio arm's lenght (ALP), têm 645 páginas. Como se sabe, o tema dos preços de transferência é o assunto mais complexo da tributação internacional, correspondendo também ao mecanismo mais utilizado por empresas multinacionais para a transferência de lucros de uma jurisdição para outra.

Essa mudança legislativa, de timing extremamente questionável, decorre de um projeto iniciado há mais de quatro anos, sob os auspícios da OCDE em colaboração com a RFB, com suporte financeiro do Reino Unido, que produziu um Relatório detalhado sobre a metodologia brasileira de preços de transferência e sua transição para as regras do TPG/OCDE (Relatório de Convergência) [3]. A MP 1.1.52 é o resultado prático desse processo, que se consolidará, caso seja aprovada, pela edição das instruções normativas a cargo da Receita Federal.

Alguns aspectos da nova legislação são dignos de nota, e sobre eles teceremos comentários adiante, também considerando que o mencionado Relatório de Convergência recomenda algumas medidas de praticidade e simplificação (que é a tônica da metodologia em vigor).

O primeiro ponto a destacar é justamente o timing da proposição, sem maiores discussões com a sociedade sobre forma de fazer a necessária a transição, i.e., o que e como preservar da simplicidade e praticidade do sistema atual. Ainda que as novas normas só entrem em vigor em 2024, embora haja opção para adesão já em 2023, algumas considerações são necessárias. Há muito o que regular, para que a MP 1.152, caso convertida em lei, seja aplicável, pois muitos de seus dispositivos remetem à regulação por parte da Receita Federal. Espera-se que na fase da regulação, sejam feitas consultas públicas e maiores debates, pois como é sempre lembrado, o diabo mora nos detalhes.

Inicialmente deve ser mencionado que algumas atividades têm vantagens com o atual sistema de margens fixas e safe harbours. Neste sentido, as mudanças promovidas pela MP 1.152 podem afetar mais criticamente alguns setores, especialmente os voltados à exportação, sem o devido tempo de adaptação.

Tecnicamente o texto da MP 1.152 é muito bom, traz os elementos necessários ao alinhamento pretendido, usando a terminologia adequada. O texto legal é dividido em cinco capítulos. O primeiro, de forma sucinta, trata do objeto que é a base de cálculo dos dois tributos relacionados: IRPJ e CSLL. O segundo capítulo traz as disposições gerais, dividido em seis seções e segue de forma coerente o que preconiza TPG/OCDE, tratando do princípio arm's lenght e de como aplicá-lo de maneira geral. Neste segundo capítulo, seção um, há um ponto relevante. O artigo 2º da MP 1.152 introduz de forma clara no ordenamento jurídico o princípio arm's lenght. Observe-se que o título da seção correspondente traz o termo em inglês, não tendo o legislador ousado fazer a tradução do termo, que seria complicada; a opção pelo anglicismo nos parece-nos correta. O arm's lenght é um princípio, e como tal tem aplicação complexa, permeada de ponderações, mas o fato de ter sido explicitado no texto é um avanço considerável.

A seção dois cuida do que são as transações controladas (sujeitas às normas de preços de transferência), que sob a nova legislação tem um escopo muito mais amplo que a da legislação em vigor, praticamente restrita a transações com bens tangíveis, alguns serviços e operações de mútuos. Já sob a MP 1.152, em tese, todas as transações entre partes relacionadas estariam sujeitas ajustes caso descumpram o ALP. A legislação atual no que diz respeito a importação de intangíveis remete à limitação de sua dedutibilidade, com base legislação com mais de 60 anos, excluindo a aplicação de normas de preços de transferência [4]. Essa distorção é eliminada pela MP 1.152 que revoga as normas de limitação de dedutibilidade de royalties e serviços técnicos e submete essas transações às regras de preços de transferência, ao mesmo tempo que veda a dedutibilidade nas remessas a jurisdições tributação favorecida ou quando a dedução da remessa implicar em dupla não tributação.

A definição de partes relacionadas, às quais se aplicam as normas de preços de transferência, consta da seção 3 do capítulo 2, e traz dispositivos que se distanciam um pouco da norma em vigor, com maior aderência à prática internacional, eliminando referências a vinculações apenas comerciais (não societárias), mas ainda mantendo a aplicação possível à pessoas físicas, mantendo também aplicação obrigatória para transações com os países com baixa tributação, ou que seja beneficiária de regime fiscal privilegiado — o que neste ponto difere um pouco do TPG/OCDE, mas está alinhado com o que se pode denominar preceitos do projeto BEPS. As outras seções e subseções do capítulo dois remetem ao tema das transações comparáveis e a aplicação do ALP.

A seção que trata da aplicação do ALP, traz diversas subseções. O delineamento da transação controlada e a análise de comparabilidade, temas centrais em preços de transferência, e que é extremamente limitado na legislação em vigor, são tratados nas subseções 2 e 3, em linha com o TPG/OCDE.

A subseção 4 dispõe sobre a seleção do método mais apropriado (tema novo no nosso ambiente, já que legislação em vigor abre ao contribuinte a livre escolha do método), esta subseção, além de dispor sobre o método mais apropriado e quais são eles, traz métodos que antes não eram admitidos pela legislação brasileira, a saber, o método transacional da margem líquida (transactional net margin method — TNMM), denominado pela nova legislação de método da Margem Líquida da Transação (MLT) e o método da divisão de lucros (profit split) denominado pela nova legislação de método da Divisão do Lucro (MDL). Além disso, a legislação passou a admitir "outros métodos" sob a condição de que a "metodologia alternativa adotada produza resultado consistente com aquele que seria alcançado". Os métodos de transação já existentes permanecem (Preço Independente Comparável (PIC), Preço de Revenda menos Lucro (PRL); e Custo mais Lucro (MC), só que com análise de comparabilidade ampliada, sem distinção entre operação de importação e exportação, e sem uso de margens fixas, ou seja, em completo alinhamento ao TPG/OCDE. A Receita Federal deverá disciplinar a aplicação dos métodos previstos no dispositivo. Há também subseções com tratamento especial para commodities (mas que ainda depende de regulamentação mais específica), e temas mais práticos como a definição da parte testada, o intervalo de comparáveis, e como tratar dos ajustes à base de cálculo do IRPJ e da CSLL, contemplando ajustes compensatórios e secundários e sua interrelação com os acordos de dupla tributação, o que antes não estava regulamentado pela legislação interna brasileira.

O capítulo 3 trata de disposições específicas, contém seis seções que disciplinam temas mais especializados, a saber: transações com intangíveis; intangíveis de difícil valoração; serviços intragrupo; contratos de compartilhamento de custos; reestruturação de negócios; operações financeiras. Importante notar que essas seções correspondem a capítulos específicos do TPG/OCDE que foram sendo introduzidos ao longo dos anos, nas suas diversas atualizações. Sobre o tema das operações financeiras, a legislação brasileira é bastante defasada, assim a MP 1.152 veio suprir essa ausência [5].

O capítulo 4 da MP 1.152 dispõe sobre documentação e penalidades. A legislação atual por sua pouca abrangência e praticidade não é muito exigente em termos de documentação, não havendo sistemática específica de penalidades. Doravante, a documentação e sua coerência em termos de dados, fontes e demonstrativos passam a ter um nível maior de exigência — o detalhamento destes aspectos deverá ser efeito adiante pela Receita Federal, conforme previsão da MP 1.152. No caso das penalidades, a MP 1.152 adota uma sistemática mais moderna, que se adequa a cada situação, e que privilegia o contribuinte que colabora com a administração tributária, aproximando-se neste aspecto também da prática internacional, da mesma forma como para a documentação, a Receita Federal disciplinará as condições e requisitos para aplicação dos dispositivos legais.

O capítulo 5, cujo título remete a medidas especiais e segurança jurídica, disciplina três temas importantes, sendo dois deles específicos para preços de transferência e o terceiro uma interface com os acordos de dupla tributação (denominados MAP — procedimento amigável, cujo tratamento legal dado pela MP 1.152 nos parece adequado).

Embora não use o termo expressamente, a primeira seção deste capítulo remete à possível instituição dos chamados safe harbours, ou seja, normas excepcionais que, se cumpridas, desoneram o contribuinte dos ajustes. As normas atuais trazem diversos safe harbours, sendo que alguns podem permitir de alguma forma uma transferência de base tributável a outras jurisdições. Esse é um problema da legislação atual, mas a eliminação dos safe harbours existentes na legislação atual remetendo todas as formas à regulamentação infralegal, não nos parece a melhor solução. Poderia haver uma adequação, preservando a praticidade, como a criação de limites de faturamento, por exemplo. De lembrar que o Relatório de Convergência recomenda o uso de safe harbours como medida de simplificação, desde que bem estruturados. Este ponto parece-nos que poderia ter isso mais bem trabalhado na nova legislação.

Outro aspecto importante é perspectiva de acordo prévios de preços (Advance Pricing Agreement – APA), previsto na seção 2 do capítulo 5. A iniciativa é louvável e se alinha com o que preconiza o Relatório de Convergência. Porém, a formatação na forma de consulta e não um procedimento autônomo, com possibilidade de maior interação do contribuinte com administração tributária, tende a enfraquecer a possibilidade de sucesso do instituto. Ademais, não ficou clara a possibilidade de acordo prévios de preços bilaterais, i.e., com a possibilidade de participação de do Fisco de outro país, que é também uma boa prática internacional.

O capítulo 6 traz as disposições finais com dispositivos adaptativos em relação às outras normas, além da revogação dos artigos 18 a 23 da Lei nº 9.430/1996 e das normas de limitação de dedutibilidade, dá nova redação aos artigos 24 e 24-A, reduzindo o limiar para a caracterização como tributação favorecida de 20% para 17% (o que já era possível para países com acordos com o Brasil), se alinhando com as alíquotas atuais do IRPJ ao redor do mundo. Cabe agora atualizar a lista da Instrução Normativa RRF nº 1.037/ 2010.

A MP 1.152 também não faz referência à inter-relação entre a aplicação dos métodos de preços de transferência e a valoração aduaneira, que podem produzir resultados conflitantes em determinadas circunstâncias. A MP 1.152 poderia ter adentrado ao tema, de forma a elucidar e harmonizar as duas situações.

Cada um desses tópicos merece uma análise mais detalhada, mas o objetivo deste artigo é apenas uma introdução às mudanças, e uma visão das perspectivas que se avizinham.

Há ainda há um aspecto que pode ensejar polêmicas infindáveis que decorrem da possibilidade de opção pela empresa, que será em caráter irretratável, pela adoção da nova metodologia da MP 1.152, já em 2023. Obviamente só fará a opção o contribuinte que estiver sendo prejudicado pela atual sistemática (muitos não o são), sendo obrigado ao uso de margens legais fora da sua realidade de mercado, em situações em que não é possível usar o método dos preços comparados [6]. Para esses contribuintes há sérias preocupações em relação à adoção precoce da MP 1.152. Primeiramente, há diversos dispositivos da MP 1.152 que dependem de publicação de normativos pela Receita Federal, cujo conteúdo o contribuinte não tem conhecimento. Observe-se que a própria opção depende de regulamentação (§ 2º do artigo 46, que prevê a opção), ou seja, há um mar de incertezas regulatórias.

Outro aspecto é que na hipótese de que os contribuintes façam a adesão para aplicação em 2023, com todos os normativos da Receita Federal devidamente publicados, caso a MP 1.152 não seja aprovada (o que deve ocorrer no máximo em 120 dias após a publicação, na hipótese de prorrogação), os efeitos dela decorrente serão mantidos, salvo se o Congresso legislar de forma diferente (o que geralmente não ocorre), o que levará a uma situação de duas legislações aplicáveis no mesmo ano-calendário. Assim, essa opção para aplicação em 2023 da MP 1.152, parece estar com um entorno considerável de potenciais controvérsias.

Para finalizar, cabe ressaltar que os atuais problemas de dupla tributação decorrentes da imposição de margens fixas, da limitação de ajustes de comparabilidade e da ausência de métodos transacionais, atualmente existentes, restarão resolvidos com a adoção da metodologia da TPG/OCED. Porém, terão como contrapartida a perda da simplicidade e praticidade do modelo atual, que prima pela objetividade, por outro modelo que é dotado de uma alta carga de subjetividade [7]. Com adoção das novas normas surgirão algumas dúvidas além daquelas que decorrem simplesmente da aplicação da nova metodologia e que só serão resolvidas com o passar do tempo. Por exemplo, qual o peso interpretativo das orientações normativas do TPG/OCDE e do Manual da ONU na solução dos conflitos normativos que inevitavelmente surgirão? Como serão tratadas nos contenciosos administrativo e judicial as questões tipicamente técnicas como a definição, com base em análises econômicas e estatísticas, de margens e de preços? Espera-se que adotemos caminhos e alternativas práticos para que esse sob o arcabouço legal resulte em boas soluções.

 


[1] OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2022. Disponível em https://www.oecd.org/tax/transfer-pricing/oecd-transfer-pricing-guidelines-for-multinational-enterprises-and-tax-administrations-20769717.htm

[2] United Nations Practical Manual on Transfer Pricing for Developing Countries (2017)) disponível em https://www.un.org/esa/ffd/wp-content/uploads/2017/04/Manual-TP-2017.pdf

[3] OECD/RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Transfer Pricing in Brazil: Towards Convergence with the OECD Standard, OECD, Paris, 2019. Disponível em www.oecd.org/tax/transfer-pricing/transfer-pricing-in-brazil-towards-convergence-with-the-oecd-standard.htm.

[4] Conf. VALADÃO, Marcos Aurélio Pereira. Preços de Transferência e Royalties no Imposto de Renda Brasileiro. In: PEIXOTO, M. M.; PINTO, E. V. (Orgs.). 100 Anos do Imposto Sobre a Renda No Brasil (1922-2022). 1ª ed., p. 957-978. São Paulo: MP Editora, 2022.

[5] Conf. VALADÃO, Marcos Aurélio Pereira. Preços de transferência e operações financeiras na ONU, na OCDE e no Brasil. Consultor Jurídico (São Paulo. Online), 2021. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-abr-19/valadao-precos-transferencia-operacoes-financeiras

[6] Observe-se que não se aplica ao caso o § 2º do art. 62 da CF/88, que impediria a aplicação MP 1.152 em 2023, por tratar-se de regime opcional. A vigência geral e compulsória ergas omnes só se dará em 2024.

[7] Cabe lembrar o que diz o TPG/OCDE: "It should also be recalled at this point that transfer pricing is not an exact science but does require the exercise of judgment on the part of both the tax administration and taxpayer". OECD Transfer Pricing Guidelines…op. cit., p. 33.

Autores

  • é doutor em Direito pela SMU (EUA), mestre em Direito pela UnB, professor da FGV, membro do Subcomitê de Preços de Transferência da ONU, ex-presidente da 1ª Seção e da 2ª Turma da 3ª Seção do Carf, sócio fundador do VCR Advogados e consultor tributário.

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