Opinião

Preços de transferência e operações financeiras na ONU, na OCDE e no Brasil

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19 de abril de 2021, 7h13

Este artigo sucinto tem por objeto o tema de preços de transferência com foco nas operações financeiras. O tema das operações financeiras foi objeto de atualização recente tanto no Transfer Pricing Guidelines da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (TPG da OECD), em 2020, como no Manual Prático da ONU de Preços de Transferência para Países em Desenvolvimento (Manual da ONU), em 2021, cujo lançamento se dará na terceira semana de abril durante a 22ª Seção do Comitê de Peritos em Tributação da Organização das Nações Unidas (Comitê de Tributação da ONU).

Preços de transferência é o tema mais complexo na seara da tributação internacional, sendo o principal mecanismo que possibilita às empresas multinacionais, que operam em diversos países, a transferência de lucros de uma jurisdição para outra. Explica-se: como os chamados "preços de transferência" decorrem de transações entre empresas do mesmo grupo econômico, elas podem estabelecer livremente os valores das transações, que podem ou não coincidir com os valores praticados em transações similares, por empresas independentes.

Assim, a legislação de preços de transferência é uma norma antielisiva específica que visa a coibir essas práticas capazes de solapar as bases tributárias dos diversos países envolvidos na transação, se ausentes as normas de controle dos preços de transferência ou quando essas normas são mal aplicadas, possibilitando a concentração de lucros em jurisdições com baixa ou nenhuma tributação. As operações financeiras intragrupo também se submetem às normas de preços de transferência e constituem-se em tema específico em virtude de suas particularidades, que trazem uma complexidade adicional à matéria já em si complexa.

É sabido que o modelo de preços de transferência brasileiro é uma adaptação simplificadora do princípio arm's length e se diferencia em diversos aspectos do modelo adotado pelos países desenvolvidos, consubstanciado no TPG da OECD, denominado por muitos especialistas da área como "The Bible". O mesmo princípio arm's length, que está materializado no artigo 9º da Convenção Modelo da ONU (de igual teor na Convenção Modelo da OCDE, exceto por esta não conter o §3º), é adotado no Manual da ONU como decorrência do mandato do Comitê de Tributação da ONU, ao qual o Subcomitê de Preços de Transferência está subordinado [1].

A metodologia tradicional de preços de transferência com base princípio no arm's length busca verificar qual seria o preço/valor da transação realizada entre multinacionais de um mesmo grupo econômico caso fosse celebrada, em condições semelhantes, entre empresas independentes. O valor considerado na transação pode ser o preço do produto, a margem utilizada, a taxa de juros cobrada etc., a depender da transação analisada e dos métodos utilizados na análise do caso. Uma vez identificado esse preço/valor arm's length, são feitos ajustes para menos (no caso de despesas) ou para mais (no caso de receitas), caso sejam diferentes do preço/valor arm's length de forma a atribuir corretamente o lucro à empresa naquela jurisdição.

A fim de atingir o objetivo de determinação do valor de uma transação independente, é necessário conhecer vários aspectos da transação, como os riscos suportados pelas partes envolvidas, os ativos empregados, os termos contratuais, a racionalidade da operação e, no caso de operações financeiras, o objetivo daquela operação no contexto dos negócios da empresa multinacional, dentre outros fatores, de forma a permitir o correto delineamento da transação, para se proceder à análise de  comparabilidade e, então, se identificar o melhor método de preços de transferência aplicável para se chegar ao valor ou preço arms length.

Para tanto, os métodos utilizados são preço independente comparado (comparable uncontrolled price method — CUP), custo de produção mais lucro (cost plus method), preço de revenda menos lucro (resale price method), divisão de lucros (profit split) e o método transacional da margem líquida (transactional net margin method — TNMM). No caso do CUP, evoluiu-se para uma metodologia específica para commodities, baseado nos preços praticados nos mercados internacionais organizados, também denominado sexto método.

Apesar de não ser objeto deste artigo detalhar como são estruturados esses métodos, mesmo por tratar-se de longa discussão, cabe ressaltar que a metodologia brasileira atual não utiliza o método da repartição de lucros e o TNMM — também chamados de métodos transacionais —, e não faz análise de comparabilidade para os métodos do custo de produção e preço de revenda, se limitando a adotar margens de lucro fixadas na lei para a aplicação desses métodos. Trata-se de medida simplificadora, com grande praticabilidade, porém com potencial de gerar dupla tributação, ou mesmo baixa tributação, dependendo das circunstâncias.

O ponto central deste artigo reside na nova seção sobre operações financeiras contida na recente atualização do manual da ONU, que virá a público, como já mencionado, em sua terceira edição atualizada, ainda neste primeiro semestre de 2021, na 22ª Seção do Comitê de Tributação da ONU [2]. O manual da ONU, em sua nova edição, passa a tratar das operações financeiras com mais detalhes, trazendo também exemplos e abordagens que podem simplificar a aplicação da metodologia de preços de transferência, como, por exemplo, uso de rankings das agências especializadas (S & P, Moodys etc.). Por outro lado, a nova seção do manual não cuida das operações financeiras intragrupo quando isso corre no âmbito de conglomerados financeiros típicos (sujeitos às regras dos acordos de Basileia), por conta de suas particularidades.

Nesse ponto, cabe lembrar que muitas das atividades das empresas multinacionais requerem financiamento (empréstimos), sejam operações com objetivo de manter ou suprir o capital de giro, para financiar aquisições de outras empresas, para comprar ativos operacionais, dentre outras. Os empréstimos intragrupo, os quais implicam uma alteração do balanço de financiamento dos recursos da entidade (passivo versus patrimônio líquido), também disparam outras normas de contenção tributária como as chamadas thin cap rules ou normas de subcapitalização (presentes também no ordenamento brasileiro). Ademais, as operações financeiras possuem um escopo de transações mais amplo, a exemplo das garantias firmadas mediante contrato, que também têm custo, as operações de centralização de caixa (cash pooling), bem como outras operações envolvendo derivativos financeiros, que podem configurar uma transação financeira intragrupo, serviços de tesouraria, e outras atividades correlatas, inclusive operações de seguro intragrupo.

Como já observado, a legislação brasileira de preços de transferência é uma simplificação do princípio arm's length e, no que diz respeito às transações financeiras intragrupo, se restringe aos empréstimos feitos entre empresas do mesmo grupo econômico, regulando apenas a taxa de juros considerada arm's lengh a partir das taxas de determinados títulos públicos, ou da taxa Libor de seis meses, conforme o caso, acrescida de spread fixado pelo ministro da Fazenda, proporcionalmente ao prazo da operação considerada. Trata-se de uma espécie de sexto método para transações financeiras (só que no lugar das bolsas de commodities se utiliza o preço base de juros para algumas operações no mercado internacional).

A Lei nº 9.430/1996 (alterada por diversas leis, especialmente a Lei nº 12.766/2012) trata de preços de transferência e é regulamentada pela Instrução Normativa RFB nº 1.312, de 28 de dezembro de 2012, a qual disciplina o tema em seu artigo 38-A, e que vale, por clareza e auxílio ao leitor, ser transcrito, como segue, em sua redação atual:

"Artigo 38-A  A partir de 1º de janeiro de 2013, os juros pagos ou creditados a pessoa vinculada somente serão dedutíveis para fins de determinação do lucro real até o montante que não exceda ao valor calculado com base em taxa determinada conforme este artigo acrescida de margem percentual a título de spread, a ser definida por ato do ministro de Estado da Fazenda com base na média de mercado, proporcionalizados em função do período a que se referirem os juros.
§1º. No caso de mútuo com pessoa vinculada, a pessoa jurídica mutuante, domiciliada no Brasil, deverá reconhecer, como receita financeira correspondente à operação, no mínimo o valor apurado segundo o disposto neste artigo.
§ 2º. Para efeito do limite a que se refere este artigo, os juros serão calculados com base no valor da obrigação ou do direito, expresso na moeda objeto do contrato, e convertidos em reais pela taxa de câmbio, divulgada pelo Banco Central do Brasil, para a data do termo final do cálculo dos juros.
§ 3º. O valor dos encargos que exceder o limite referido no caput será adicionado ao lucro real e à base de cálculo da CSLL.
§ 4º. A diferença de receita apurada na forma do § 2º será adicionada ao lucro real, presumido ou arbitrado e à base de cálculo da CSLL.
§ 5º. Nos pagamentos de juros em que a pessoa física ou jurídica remetente assuma o ônus do imposto, o valor deste não será considerado para efeito do limite de dedutibilidade.
§ 6º. O cálculo dos juros a que se refere o caput poderá ser efetuado por contrato ou conjunto de operações financeiras com datas, taxas e prazos idênticos.
§ 7º. Para efeito do disposto neste artigo, são consideradas operações financeiras aquelas decorrentes de contratos, inclusive os de aplicação de recursos e os de capitalização de linha de crédito, celebrados com pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no exterior, cuja remessa ou ingresso de principal tenha sido conduzido em moeda estrangeira ou por meio de transferência internacional em moeda nacional.
§ 8º. A taxa de que trata o caput será a taxa:
I – de mercado dos títulos soberanos da República Federativa do Brasil emitidos no mercado externo em dólares dos Estados Unidos da América, na hipótese de operações em dólares dos Estados Unidos da América com taxa prefixada;
II – de mercado dos títulos soberanos da República Federativa do Brasil emitidos no mercado externo em reais, na hipótese de operações em reais no exterior com taxa prefixada; e
III – Libor pelo prazo de 6 (seis) meses, nos demais casos.
§ 9º. Na hipótese do inciso III do § 8º, para as operações efetuadas em outras moedas nas quais não seja divulgada taxa Libor própria, deverá ser utilizado o valor da taxa Libor para depósitos em dólares dos Estados Unidos da América".

O spread a que se refere o caput do artigo 38-A, disciplinado na Portaria MF nº 247/2013, é de 3,5% para juros pagos (limita a dedução de despesa com juros) e 2,5% para juros recebidos (funciona como um mínimo de receita de juros a ser reconhecida). Destaque-se que essas normas se aplicam não só a transações com empresas vinculadas, mas também a todas as transações com jurisdições de baixa tributação ou não cooperativas e, também, às operações realizadas em regime fiscal privilegiado, listadas na Instrução Normativa nº RFB 1.037/2010, independentemente de serem efetivadas entre empresas do mesmo grupo econômico (artigos 24 e 24-A da Lei nº 9.340/1966).

Assim, as normas brasileiras de preços de transferências tratam apenas de juros, e não trazem previsões específicas para lidar com outras formas ou aspectos de transações financeiras além do empréstimo, como, por exemplo, precificar uma garantia, isto é, um pagamento de garantia (à semelhança de uma fiança bancária), ou o valor cobrado pela centralização de serviços de tesouraria (que podem envolver diversas atividades).

Na metodologia brasileira, para se analisar essas outras operações financeiras, há que se aplicar os métodos de preços comparados (CUP), o que é possível em alguns casos, mas, considerando que as transações financeiras têm margens peculiares, o uso dos outros métodos com margens fixadas na lei traria uma distorção razoável. Ademais, o modelo brasileiro não usa os métodos denominados profit split e TNMM, sendo que este último pode ter aplicação mais frequente em transações financeiras.

Embora as normas brasileiras de juros sejam obrigatórias para as operações de empréstimo internacionais intragrupo, muitos estudiosos entendem que se trata de normas tipo safe harbor, pois uma vez cumpridas não dão margem a contestação (o que só acontece com a metodologia da TPG da OCDE) [3].

O Brasil é candidato a membro pleno da OCDE e, assim, terá de alinhar também suas práticas tributárias às daquela organização. Nesse ponto, não deixa de ser curioso que, embora tenhamos diversos problemas no nosso sistema tributário, nos primeiros exercícios de alinhamento do sistema tributário brasileiro, a OCDE se dirigiu unicamente às regras brasileiras de preços de transferência, sem muita preocupação aos outros aspectos do nosso sistema tributário.

Após meticuloso estudo, foi elaborado pela OCDE em colaboração com a RFB um relatório detalhado sobre a metodologia brasileira de preços de transferência e sua transição para as regras do TPG da OCDE (relatório de convergência) [4]. Na oportunidade, não foram equacionados aspectos como a nossa complexa e ineficiente tributação do consumo, a regressividade do sistema ou outras questões da tributação da renda e do patrimônio. O foco foi apenas nos preços de transferência, muito provavelmente por conta da extrema importância do tema.

O mencionado relatório de convergência trata especificamente das transações financeiras em seu Capítulo 10, lembrando que, em 2020, o TPG da OCDE foi alterado a partir de estudos do Projeto Beps (Base Erosion and Profit Shifting), incorporando um capítulo mais detalhado sobre transações financeiras.

Como já mencionado, a metodologia brasileira de preços de transferência, no que diz respeito às operações financeiras, só disciplina especificamente operações que sejam empréstimos típicos (envolvendo apenas pagamento ou recebimento de juros, além do principal negociado). Assim, para as outras diversas operações que se enquadram no conceito de transações financeiras tem-se um vazio legislativo cuja colmatação demanda esforços redobrados do intérprete e pode gerar diversas perplexidades, seja pela ausência de método adequado para tratar essas operações, seja pela dificuldade de adequar as margens fixas da legislação brasileira às margens praticadas nesse setor quando não é possível utilizar o método de preços comparados.

Neste sentido, pode-se afirmar que, independentemente da entrada do Brasil na OCDE, faz-se necessária uma evolução legislativa para preços de transferência relativamente às operações financeiras, buscando-se desenvolver uma nova e abrangente arquitetura normativa. Nesse ponto, o manual da ONU, em virtude de sua abordagem mais simplificada, mas sem desconsiderar a complexidade do tema, talvez seja mais útil que o TPG da OCDE. Ademais, o mencionado relatório de convergência reitera a necessidade de se utilizar medidas de simplificação e praticabilidade na implementação das normas de preços de transferência, sem desconsiderar, especialmente, a possiblidade de normas de safe harbor e de acordo avançados de preços (APAs e Bapas).

 


[1] Ver SOLUND, Stig; VALADÃO, Marcos Aurélio Pereira . The Commentary on Article 9: The Changes and Their Significance (Transfer Pricing) and the Ongoing Work on the UN Transfer Pricing Manual. Bulletin for International Taxation, v. 66, p. 608-612, 2012.

[2] A versão atual do Manual da ONU (United Nations Practical Manual on Transfer Pricing for Developing Countries (2017)) pode ser encontrada em https://www.un.org/esa/ffd/wp-content/uploads/2017/04/Manual-TP-2017.pdf.

[3] Na verdade, até 2013 havia um "safe harbor" para transações financeiras (empréstimos), pois bastava que fossem registradas no BACEN para que não se sujeitassem a justes de preços de transferência. Caso não o fossem, aplicava-se uma regra semelhante à atual, baseada na taxa Libor.

[4] OECD/RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Transfer Pricing in Brazil: Towards Convergence with the OECD Standard, OECD, Paris, 2019. Disponível em www.oecd.org/tax/transfer-pricing/transfer-pricing-in-brazil-towards-convergence-with-the-oecd-standard.htm.

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