Velha infância

Sistema judiciário tem gargalos para priorização de crianças, diz especialista

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1 de janeiro de 2023, 12h23

O Artigo 227 da Constituição Federal inaugurou uma nova era para os direitos da criança no Brasil. Todavia, suas vozes, opiniões, expressões e seus direitos fundamentais ainda não são levados a sério pelo "universo adultocêntrico", inclusive dentro do Sistema de Justiça.

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Dollar Photo ClubElementos essenciais para eficácia de prerrogativas vêm sendo ignorados

A falta de um entendimento compartilhado e sistematizado sobre o status da criança e seus direitos fundamentais no direito público permite que elementos centrais para a eficácia dessas prerrogativas sejam ignorados ou desconhecidos na atividade decisória, jurisprudencial e na prática cotidiana dos profissionais do Direito. A opinião é do advogado Pedro Hartung, pesquisador visitante no Child Advocacy Program pela Harvard Law School e no Max Planck Institute de Heidelberg/Alemanha.

Ele detalha o entendimento desses direitos às crianças e todo o problema enfrentado na esfera judicial brasileira dentro de seu trabalho de doutorado na Faculdade de Direito da USP denominado Levando os Direitos da Criança a Sério: a absoluta prioridade dos direitos fundamentais e melhor interesse da criança, com orientação do professor Emérito Dalmo de Abreu Dallari. A tese se transformou em livro, o primeiro dedicado exclusivamente ao artigo 227 da CF e à prioridade absoluta dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil.

"A obra busca compreender o status da criança e do adolescente no Direito Público, em especial sua titularidade de direito fundamental e à absoluta prioridade de seus direitos e melhor interesse na tomada de decisões. Ela apresenta fundamentos da lei que estabelecem a obrigação de todos, inclusive os governantes e parlamentares recém-eleitos, de colocar as crianças em primeiro lugar na criação de políticas públicas e orçamentárias", afirma Hartung.

Sua tese defende como resposta aos problemas indicados a adoção de um modelo e racionalidade decisória baseados em uma comunidade plural e diversa de intérpretes, ou seja, "a inclusão de diversas vozes e visões em casos que envolvam crianças, para compor o repertório mais amplo, da decisão judicial".

Muitos casos concretos que envolvem crianças e seus direitos — especialmente relativos a conflitos no âmbito familiar, como disputa de guarda, suspensão ou destituição do poder familiar — são demarcados por incertezas múltiplas sobre qual é a melhor resolução e encaminhamento, tanto pela complexidade e sensibilidade das realidades fáticas como pela impossibilidade de se aferir com grande grau de certeza qual o melhor interesse da criança no caso concreto.

Tomadores de decisão no âmbito do Sistema de Justiça — como conselheiros tutelares, promotores, defensores, advogados, magistrados e suas equipes técnicas — são premidos pela necessidade de cumprir o dever constitucional de assegurar com a absoluta prioridade os direitos fundamentais e melhor interesse de crianças, colocando-as a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Contudo, explica Pedro Hartung, nessa árdua tarefa, eles são frequentemente angustiados pela incerteza e pela responsabilidade diante da gravidade de suas decisões, muitas vezes orientadas menos por normas jurídicas e mais pela "intuição, medo ou precaução".

A realidade e a diversidade da vida possuem dificuldade de serem condensadas e prevista totalmente por normas gerais e abstratas. Assim, é muito comum, no âmbito das Varas da Infância e Juventude e também das Varas de Família, a prevalência da incerteza e insegurança dos tomadores de decisão sobre qual o melhor interesse da criança, defende a tese.

Muitos desses casos podem ser encontrados no âmbito de processos de suspensão ou destituição do poder familiar, os quais são permeados por disputadas, tanto de interpretação e extensão da legislação e conceitos jurídicos existentes como do entendimento de qual o melhor encaminhamento material — permanência na família, família acolhedora, acolhimento institucional ou adoção — a ser dado no caso concreto para a criança e todos aqueles envolvidos no caso.

Estrutura e recursos
Uma dimensão fundamental que impacta a prestação jurisdicional e avaliação do melhor interesse da criança em casos de suspensão ou destituição do poder familiar, mas não só, diz respeito tanto à formação dos profissionais atuantes no Sistema de Justiça — como conselheiros tutelares, advogados, defensores, promotores, magistrados, psicólogos e assistentes sociais forenses, entre outros — mas também quanto à estrutura e recursos materiais e pessoas disponíveis no Sistema de Justiça, especialmente para as Varas de Infância e Juventude ou órgãos internos de apoio operacional das instituições — como núcleos, centros de apoio ou coordenadorias relativas aos temas de infância e adolescência.

Levantamento realizado pelo Programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana, mostra a existência do conteúdo de Direito da Criança na grade curricular dos 20 cursos de Direito primeiro colocados em três ranqueamentos em 2016: Aprovação na Ordem dos Advogados do Brasil, Exame Nacional de Desempenho de Estudantes e Ranking das Universidades da Folha.

Pelo ranqueamento da OAB, de 20 faculdades, metade possui matéria relativa ao Direito da Criança. De forma semelhante, pela lista do Enade, de 20 faculdades, apenas nove possuem matéria nesse tema. Por fim, pelo ranqueamento do RUF, tem-se o melhor cenário: de 20 faculdades, 12 possuem matéria relativa ao Direito da Criança. Relevantes também os dados de que a maioria dos cursos de Direito oferece o conteúdo de Direito da Criança como matéria meramente optativa, e que a inclusão desse conteúdo nas grades curriculares é recente.

Por outro lado, prossegue a análise de Pedro Hartung, constata-se que a falta de informação e estudo das leis, processos e dinâmicas concernentes aos casos que envolvem crianças e seus direitos — inclusive não somente por meio de discussões jurídicas, mas também por um diálogo interdisciplinar com outros campos do conhecimento, como Psicologia, Pedagogia e assistência social — impacta o desconhecimento da matéria por parte dos profissionais no Sistema de Justiça.

Diante da falta de familiaridade com a complexa rede normativa dos direitos da criança e sua sistematização para aplicação prática, ainda que alguns concursos públicos contemplem poucas questões sobre o tema, os agentes aplicadores das leis ignoram muitas vezes caminhos já previstos na legislação.

Inclusive, após assumirem cargos públicos que atuam diretamente com casos envolvendo crianças no Sistema de Justiça, muitas carreiras não apresentam processos de formação continuada. Pesquisa do CNJ constatou que nesse âmbito, os conselheiros tutelares são recebem as críticas mais duras pela percepção de falta de capacitação, treinamento, preparo e desconhecimento de suas competências e funções.

Cabe ser destacado também, relata Hartung, a conduta pessoal dos profissionais no acesso à justiça de crianças, que varia desde a vestimenta de juízes e advogados até o estabelecimento de ambientes livre de “intimidação, hostilidade, insensibilidade”.

Nesse âmbito, pesquisa etnográfica feita em Varas Especiais da Infância e da Juventude em São Paulo destacou elementos como a "dureza" dos promotores e os comportamentos dos magistrados, como falar alto, gritar, se levantar da mesa, ter uma postura "seca", incluindo algumas "condutas informais", que incluem "atender ao celular no meio da audiência, falar alto com a mãe do adolescente, tecer comentários com o escrivão, a breve duração (normalmente, as audiências duram cerca de 20 minutos), mas também a pouca preocupação com as garantias processuais", além do fato de que o objetivo central "dar uma lição" às crianças e suas famílias.

As estruturas e funcionamentos das VIJs, de acordo com o CNJ, registra que todos os entrevistados "afirmaram que o quadro atual das respectivas varas onde trabalham carecem de profissionais".

Alertam ainda a necessidade de contratar de duas a 15 pessoas para o atendimento satisfatório das demandas, especialmente para equipes técnicas, como psicólogos e assistentes sociais, responsáveis pela elaboração dos pareceres psicossociais. A má percepção em relação à estrutura de trabalho também é expressada com relação ao espaço físico, com críticas à má qualidade das instalações e, inclusive, à higiene do local.

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FreepikHá carência de varas exclusivas aos temas de Infância e Juventude no país

Apesar do artigo 145 do ECA, a Resolução nº 113 do Conanda, e o Provimento 36 do CNJ determinarem à criança de Varas especializadas a presença de equipes técnicas interprofissionais, das 2.740 comarcas da Justiça Estadual paulista, apenas 159 possuem varas exclusivas de Infância e Juventude, representando 12,2% do universo de varas com competência sobre o tema (1.303).

A falta de estrutura nos órgãos do Sistema de Justiça responsáveis, especialmente para avaliação psicossocial dos casos e seu acompanhamento, impacta seriamente no tempo de tramitação dos processos e, consequentemente, no tempo de permanência das crianças em instituições e, assim, sem cuidado parental, apesar das expressas determinações legais de absoluta prioridade de tramitação processual de casos que envolvam crianças, conforme o art. 152 do ECA, art. 1.048 do novo CPC e do Provimento nº 36 do CNJ.

A falta de informações relevantes para as decisões judicias – como a real condição dos ambientes e agentes de cuidado da criança, suas dificuldades e potências no relacionamento com a criança — pode ocasionar tomadas de decisão sem fundamento na realidade e orientadas apenas pela "intuição" do magistrado, possibilitando uma ampla discricionariedade e subjetividade nas decisões.

Barreiras
Entre as barreiras ao acesso à justiça de criança, segundo o estudo, está a complexidade dos sistemas para o entendimento da criança, o seu caráter intimidador, a falta de orientação por adultos capacitados e a presença de práticas discriminatórias, seletivas e estigmatizantes.

"Cabe a todos os agentes do Sistema de Justiça, o fomento de um ambiente consensual e amigável, afastando as dinâmicas típicas da lógica adversarial de resolução de conflitos, para que os casos e suas variáveis possam ser revisados e os pesos abstratos utilizados no sopesamento possam ser atribuídos coletivamente", afirma.

"O Artigo 227 da Constituição é uma verdadeira revolução no âmbito do Direito público constitucional e na irradiação de seus conteúdos em outros ramos do direito. Como ápice de um importante desenvolvimento histórico do reconhecimento de todas as crianças como sujeitos de direitos e titulares de direitos fundamentais — todas sem qualquer distinção, inclusive as indígenas, as negras, as outrora consideradas 'delinquentes' ou 'abandonadas' —, é a pedra fundamental de uma nova era jurídica para as crianças brasileiras e, também, para todos nós como sociedade” destaca Pedro Hartung ao apontar que o artigo 227 permite o entendimento de uma nova função para os direitos fundamentais: a solidariedade.

Conclui o advogado que "o Artigo 227 é um projeto de sociedade e de país que precisa ser, igualmente, levado a sério; um projeto em que também os filhos dos outros e os filhos de ninguém sejam nossa responsabilidade moral e constitucional. É um farol guia, especialmente em momentos intranquilos e apreensivos, como as atuais águas turbulentas dos mares brasileiros, quando narrativas e sistemas normativos clássicos e universais, como os próprios direitos humanos, são desafiados por sentimentos de medo, insegurança e incerteza pela liquefação do que antes era compreendido como certo ou inequívoco".

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