Segunda Leitura

Estado-nação: modelo que sofre para acompanhar as tendências do século XXI

Autor

  • Charles Giacomini

    é juiz federal em Itajaí (SC) mestre em Ciência Jurídica (Univali) especialista em Direito Público professor de Direito Econômico Direito Internacional e formação humanística na Escola da Magistratura Federal de Santa Catarina (Esmafesc) — onde também é membro do Conselho de Ensino — e professor de Direito Tributário em cursos preparatórios e pós-graduações.

1 de janeiro de 2023, 8h00

Compreendido como a unidade política resultante das revoluções dos séculos XVIII e XIX, o Estado-nação tem como principais características "a soberania assentada sobre um território, a tripartição dos poderes e a paulatina implantação da democracia representativa" [1]. Sob tal modelo institucional, o Estado não se submete senão ao Direito constituído internamente ou ao Direito externo com o qual tenha consentido.

Desde o final do século XX, no entanto, vem ganhando espaço a concepção teórica que identifica a insuficiência do Estado-nação frente às profundas transformações sociais resultantes da globalização e da evolução tecnológica. Desenvolve-se o conceito de transnacionalidade.

No mundo transnacional, o conceito de soberania é relativizado sob a influência de uma sociedade interdependente. O mosaico de fontes normativas ultrapassa as fronteiras estatais e perde o rígido senso hierárquico. O conceito de Estado passa por uma transformação, determinada pelos movimentos de reconfiguração da realidade social.

À época da concepção do Estado-nação, a ciência jurídica era compreendida como um fruto cultural tipicamente nacional, resultante dos dogmas estabelecidos pelas normas vigentes em cada Estado. A este respeito, resgatando a obra de Rudolf von Jhering, Leontin-Jean Constantinesco destacou que "a ciência jurídica foi degradada a ciência nacional; nela os confins científicos coincidem com aqueles políticos.” Os escritos revelam o juízo crítico de Jhering: “esta é uma coisa humilhante, indigna para uma ciência" [2].

Leontin-Jean Constantinesco foi professor na Faculdade de Direito e Economia da Universidade do Sarre, na Alemanha, conhecida também pelo seu Instituto de Estudos Europeus. Constantinesco foi diretor deste Instituto e estudou a identificação entre Estado e ordem jurídica, observando: "ordem jurídica e Estado constituem, pelo menos na evolução histórica europeia ou no desenvolvimento ao qual eles deram vida, fatores intimamente relacionados e que não se podem dissociar" [3].

Sob semelhante perspectiva, Marc Ancel fez referência às tendências de "unificação espontânea" do Direito [4]. Magistrado e teórico francês, Ancel foi presidente do Centro Francês de Direito Comparado e autor da obra Utilidade e métodos do direito comparado, de 1971.

Ancel parece endossar a crítica de Jhering no sentido de que o direito nacional é um referencial insuficiente para a construção de uma ciência jurídica universal. Citando o pensamento de Stammler e Del Vecchio, Ancel observou a relatividade do direito nacional, que aparece como "expressão particular e, portanto, limitada, da ideia fundamental de Direito" [5].

Ganha evidência, então, o surgimento de uma sociedade globalizada. Aliás, já se disse que a modernidade é "inerentemente globalizante". Com esta afirmação, o britânico Anthony Giddens [6] estabeleceu uma relação clara entre a globalização e a transformação social.

Giddens foi professor da Universidade de Cambridge e Diretor da London School of Economics and Politicas Science. Em 1990, publicou a edição original de seu livro As consequências da modernidade, no qual ofereceu uma proposta de interpretação para as transformações da modernidade. Estabeleceu relações entre modernidade, globalização, capitalismo e Estado-nação.

Analisando o conjunto institucional da modernidade, Giddens identificou os dois motores centrais da expansão da sociedade moderna: o desenvolvimento do sistema capitalista e a ascensão do Estado-nação enquanto modelo de unidade política de relacionamento global. São acontecimentos que coincidem na cronologia dos fatos e acabam por se entrelaçar ao longo da história.

Giddens observou que, na origem, os Estados-nação demonstraram boa capacidade para o exercício do poder administrativo centralizado em comparação aos modelos estatais anteriores, o que se traduziu em maior eficiência na mobilização de recursos sociais e econômicos.

O avanço da globalização, no entanto, interferiu neste ambiente institucional. Segundo Giddens, os Estados estariam se tornando "progressivamente menos soberanos do que costumavam ser em termos de controle sobre os seus próprios negócios". Em síntese, "o Estado-nação se tornou muito pequeno para os grandes problemas da vida, e muito grande para os pequenos problemas da vida" [7].

Semelhante abordagem é encontrada na obra de André-Jean Arnaud. Em seu livro Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos, o autor é categórico ao afirmar que, na conjuntura globalizante, o Estado é "um ator cada vez mais problemático" [8].

Arnaud observa que, a partir das características da sociedade globalizada, as fronteiras dos Estados mostram-se impotentes para reter fluxos transnacionais de informação, o que resulta no desenvolvimento de princípios, estratégias, normas e políticas de alcance mundial.

Entre os sociólogos brasileiros do século XX, dedicou-se ao tema Octávio Ianni, professor em universidades do estado de São Paulo. Em seus últimos anos de produção intelectual, Ianni foi premiado pela publicação de A sociedade global.

De acordo com o Ianni, a problemática surgida com o fenômeno da globalização traz um desafio para as ciências sociais, pois confere novos significados para conceitos consagrados. Na sua visão, não se trata de um fato acabado, mas de um processo em marcha, identificado como tendência, "relativo a tudo que é internacional, multinacional, transnacional, mundial e planetário" [9].

Ianni registrou que as noções de sociedade nacional ou de Estado nacional "parecem insuficientes, ou mesmo obsoletas" e observou o distanciamento histórico entre o conceito de Estado-nação e a sociedade contemporânea globalizada: "os conceitos envelheceram, ficaram descolados do real, já que o real continua a mover-se, transformar-se" [10].

Em sua visão, os Estados nacionais entraram em declínio diante do surgimento de centros decisórios dispersos em empresas e conglomerados. Aos poucos, emergem estruturas mais nítidas de poder econômico e político em nível mundial, "formas descoladas da sociedade nacional, do Estado-Nação, aos quais frequentemente se sobrepõem". Impactado pela grandeza do fenômeno da globalização, Ianni afirma: "parece não haver qualquer possibilidade de desenvolvimento econômico-social, político e cultural autônomo, nacional, independente e soberano" [11].

Numa síntese: a sociedade global é uma realidade incontestável, em termos econômicos, políticos, sociais e culturais. O modelo teórico do Estado-nação, por sua vez, foi concebido em "um mundo pré-Marx, pré-Darwin, pré-Freud, pré-Einstein", como adverte Paulo Márcio Cruz [12]. Neste contexto, caberá aos cientistas jurídicos e políticos a compatibilização do legado institucional da modernidade com as características da sociedade pós-moderna, tecnológica, transnacional e globalizada, pondo sob questionamento a definição tradicional de Estado.

 


[2] CONSTANTINESCO, Leontin-Jean. Tratado de direito comparado: introdução ao direito comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 26.

[3] CONSTANTINESCO, Leontin-Jean. Op. cit., p. 30.

[4] ANCEL, Marc. Utilidade e métodos do direito comparado. Tradução Sérgio José Porto. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1980, p. 94-5.

[5] ANCEL, Marc. Op. cit., p. 141.

[6] GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução: Raul Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 1991, p. 75.

[7] GIDDENS, Anthony. Op. cit., p. 77-8.

[8] ARNAUD, André-Jean; DULCE, María José Fariñas. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos, p. 354-5.

[9] IANNI, Octavio. A sociedade global. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, pp. 9 e 24.

[10] IANNI, Octavio. Op. cit., p. 35-40.

[11] IANNI, Octavio. Op. cit., p. 47.

[12] CRUZ, Paulo Márcio. Op. cit., p. 25.

Autores

  • é juiz federal substituto na 3º Vara Federal de Itajaí (SC), professor da Escola da Magistratura Federal de Santa Catarina (Esmafesc), mestre em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali), coordenador do Centro de Solução de Conflitos (Cejuscon) na Justiça Federal de Itajaí e ex-defensor público do estado de SC.

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