Direito Digital

Autodeterminação informacional 4.0 e o tratamento de dados pelo Estado

Autor

  • Ricardo Campos

    é docente nas áreas de Proteção de Dados Regulação de Serviços Digitais e Direito Público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main doutor e mestre pela Goethe Universität coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional diretor do Instituto Legal Grounds e sócio do Warde Advogados.

28 de fevereiro de 2023, 8h00

O Tribunal Constitucional alemão se posicionou, no último dia 16 de fevereiro, pela inconstitucionalidade do novo software de análise de dados utilizado pela polícia de Hessen e de Hamburgo. O objetivo do uso do software em questão volta-se a uma maior racionalização e otimização do combate ao crime e  identificação de potenciais criminosos de forma preventiva pela policia alemã. A plataforma digital de análise de dados chamada "HessenDATA" [1] utilizada especialmente para combater o terrorismo, o crime organizado e a pornografia infantil, percorre bancos de dados estabelecendo relações e referências advindas do cruzamento de grandes quantidades de dados, com resultados que dificilmente poderiam ser atingidos por investigadores dentro dos quadros fáticos das investigações criminais. Indiretamente, a decisão também tem um impacto em outros estados federais como a Baviera e Renânia do Norte-Vestfália, que já se valem do software ou estavam em estagio de preparação [2].

Spacca
Em audiência oral perante o Tribunal Constitucional alemão em dezembro de 2022, um funcionário do ministério de Hessen descreveu um exemplo de sucesso da utilização rotineira do software: após uma série de assaltos à caixas eletrônicos, um suspeito fora pego pela polícia. Os dados do dispositivo de navegação do  veículo utilizado para a fuga foram levantados e analisados com base no software HessenDATA. A partir dos resultados gerados, foi possível construir provas contundentes de que o carro havia estado em cada um dos locais onde ocorreu a série de explosões e roubos, o que levou à condenação do suspeito.

Do ponto de vista jurídico, a decisão ataca autorizações legais presentes nas leis estaduais de Hessen [3] e de Hamburgo para análise e avaliação de dados pela polícia por meio de uma aplicação automatizada (software). O parágrafo 25 da lei estadual de Hessen criou pela primeira vez na Alemanha uma base legal para esse tipo de análise automatizada de dados dentro de investigações criminais, tendo sido utilizada em aproximadamente 14.000 casos por ano, dos quais 12.000 casos de acordo com o parágrafo 25 1 alt. 1 HSOG, ou seja, na forma da prevenção de certos delitos [4]. Dentro deste contexto, a correlação de dados permite análises em vários níveis que gerariam até mesmo novas suspeitas, bem como outras etapas de análise no processo ou medidas operacionais subsequentes, ao estabelecer conexões entre pessoas, grupos de pessoas, instituições, organizações, objetos e coisas, a exclusão de informações e de descobertas insignificantes. E aqui é que surge o problema central ligado ao direito à autodeterminação informativa.

Tradicionalmente, a autodeterminação informacional é compreendida a partir dos contornos conferidos pela decisão do Censo Alemão de 1983 [5]. No caso julgado no ano do meu nascimento, a construção do novo direto da autodeterminação informativa girava em torno da violação decorrente da possibilidade de comparação de dados (advindos do censo) para preenchimento de lacunas (parágrafo 9 inciso 1 da Lei do Censo) em órgãos de registro civil das municipalidades ("Meldewesen"), ou seja, criava uma zona de indiferença entre finalidades para execução administrativo-municipais e estatísticas decorrentes do compartilhamento [6]. Ao final, isso violaria requisitos clássicos da burocracia estatal num sentido weberiano de "Ohne Ansehen der Person" [7] (necessidade de indiferença a requisitos personalisticos no tratamento pela burocracia estatal), envolvendo novos contornos propiciados por novas técnicas burocráticas de criação de perfis individuais pelo Estado [8], violando especialmente o livre desenvolvimento da personalidade, direito fundamental presente na constituição alemã [9].

Já no atual caso, os contornos informacionais e jurídicos ganham distintos requisitos e consequências devido ao avanço tecnológico. No caso da plataforma de cruzamento de dados HessenDATA, o Tribunal focou novamente no perigo da formação de perfis decorrente do potencial do software acima pelos contornos conferidos pela base legal na modalidade de prevenir infrações penais graves [10]. Também a realização de cruzamentos de dados em abstrato sem vinculação a um perigo justificadamente concreto ("hinreichender konkretisierende Gefahr") de um caso individual  justificante  necessitaria de uma base legal mais concreta, descritiva e protetiva, sendo assim inconstitucional na forma atual da lei de Hessen [11]. O elemento preventivo desatrelado de um caso concreto na forma de geração de novo conhecimento por mecanismos automatizados elevaria [12] exponencialmente o risco de formação de perfis a serviço de um "predictive policing" [13], no qual sistemas algorítmicos de machine learning e inteligência artificial gerariam novo conhecimento sobre indivíduos. Um elemento levantado também pelo Tribunal seria a crescente assimetria de conhecimento entre Estado e empresas que prestam o serviço de softwares, com riscos para o exercício de direitos fundamentais dos indivíduos [14].

Diferentemente do caso do Censo de 1983 [15], a proporcionalidade esteve no centro do julgamento atual. Entretanto não a proporcionalidade à la brasileira. Não se trata da "farra dos princípios“ que concederia ao julgador um falso acesso à "verdade", nem de se aplicar uma fórmula matemática (mágica) para resolver um ou todos os casos [16]. Ao determinar um prazo concreto ao legislador de Hessen para reconfigurar a base legal em questão, ao longo da decisão o Tribunal Constitucional alemão constrói diversos critérios balizadores da intervenção em direitos fundamentais decorrentes do tratamento automatizado de dados a serem levados em consideração pelo legislador na atribuição de redigir o dispositivo.

Com a decisão, o Tribunal Constitucional Alemão procura balizar uma atualização da autodeterminação informacional para o ambiente das novas tecnologias de sistemas automatizados alimentados por diferentes bases de dados. O julgado traz importantes lições dentre elas acerca da necessidade de base legal concreta e clara em forma de lei para casos nos quais ocorrem mudança de finalidade no tratamento de dados pelo Estado. Mas, acima de tudo, traz uma importante lição sobre um saudável dialogo institucional entre parlamento e Tribunal constitucional ao afastar-se da prática de modulação de efeitos pelo próprio Tribunal, atribuindo critérios balizadores para que o próprio parlamento crie e aplique os parâmetros constitucionais da questão [17].

 


[1] Em 2017, o Estado de Hesse adquiriu o programa "Gotham" da empresa de software Palantir e  passou a utilizar o software sob o nome "hessenDATA".

[2] No momento a Baviera fechou um contrato guarda-chuva com a empresa americana Palantir para que suas forças policiais possam utilizar o software da empresa americana sem procedimentos adicionais ou restrições para aquisição e utilização.

[3] Artigo 25a da Lei de Hesse sobre Segurança e Ordem Pública (HSOG) na sua reforma de 25 de junho de 2018. Texto do Artigo 25a "As autoridades policiais podem, em casos individuais justificados, continuar a processar dados pessoais armazenados por meio de um pedido automatizado de análise de dados para o combate preventivo de infrações penais referidas no artigo 100a (2) do Código de Processo Penal ou para a prevenção de um perigo para a existência ou segurança da Federação ou de um Estado Federado ou para a vida, membro ou liberdade de uma pessoa ou propriedade de valor significativo, cuja preservação é exigível pelo interesse público, ou se for de se esperar um dano equivalente ao meio ambiente". (Tradução livre)

[4] Tribunal Constitucional Alemão, Sentença do Primeiro Senado de 16 de fevereiro de 2023 -1 BvR 1547/19, 1 BvR 2634/20, notas marginais 12.

[5] Sobre a decisão do censo alemão relacionando com o caso brasileiro do IBGE ver: Ricardo Campos, Juliano Maranhão, e Juliana Abrusio, A proteção de dados pessoais no STF e o papel do IBGE, 29 de maio de 2020, https://www.conjur.com.br/2020-mai-29/maranhao-campos-abrusio-protecao-dados-stf-ibge

[6] "Contudo, o compartilhamento de dados colhidos para fins estatísticos e não anonimizados ou tratados estatisticamente para fins de execução administrativa pode interferir de forma inadmissível com o direito à autodeterminação informativa". BVerfG, Urteil des Ersten Senats vom 15. Dezember 1983 — 1 BvR 209/83 —, notas marginais de (1-215), aqui nota marginal 164. (Traducao RC)

[7] Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, 1976, p. 825 e ss.

[8] Relacionado com o julgamento da ADPF 695 do Cadastro Base do Cidadão, ver minha sustentação oral no STF tocando justamente o ponto da relação entre formação de perfis e autodeterminação informacional. Pleno (AD) – Compartilhamento de dados (1/2) — 1/9/22 https://www.youtube.com/watch?v=_W4groz-AFI. Aqui o principal trecho da decisão do censo de 1983 que toca o ponto da formação de perfis: "(…) porque um registo abrangente e catalogação da personalidade através da combinação de dados da vida individual para criar perfis de personalidade dos cidadãos é também inadmissível no anonimato das pesquisas estatísticas". BVerfG, Urteil des Ersten Senats vom 15. Dezember 1983 — 1 BvR 209/83 —, notas marginais de (1-215), aqui nota marginal 169.

[9] Gabriele Britz, Freie Entfaltung durch Selbstdarstellung, 2007. p. 6 e ss.

[10] Tribunal Constitucional Alemão, Sentença do Primeiro Senado de 16 de fevereiro de 2023 -1 BvR 1547/19, 1 BvR 2634/20, notas marginais 49.

[11] "Ao permitir a análise ou avaliação automatizada de dados em geral para a prevenção de crimes graves, os regulamentos carecem de uma especificação suficientemente restritiva do motivo da intervenção e a exigência de pelo menos um perigo concreto não é cumprida". Tribunal Constitucional Alemão, Sentença do Primeiro Senado de 16 de fevereiro de 2023 —1 BvR 1547/19, 1 BvR 2634/20, notas marginais 154.

[12] "O peso da intervenção também é maior se a polícia obtiver informações sobre pessoas através da análise ou avaliação de dados e fizer dela o ponto de partida para outras medidas operacionais, que objetivamente não têm relação com uma má conduta concreta e não causaram a intervenção policial através de seu comportamento, ou seja, se a tecnologia de esclarecimento  automatizada aumentar o risco de pessoas objetivamente não envolvidas se tornarem o alvo de outras medidas policiais de esclarecimento". Notas marginais 77.

[13] Tribunal Constitucional Alemão, Sentença do Primeiro Senado de 16 de fevereiro de 2023 -1 BvR 1547/19, 1 BvR 2634/20, notas marginais 98,100, 121, 147.

[14] "Então, ao mesmo tempo, o controle estatal sobre esta aplicação ameaça ser perdido. Se for utilizado software de atores privados ou de outros estados, há também o perigo de manipulação desapercebida ou de acesso desapercebido aos dados por terceiros". Tribunal Constitucional Alemão, Sentença do Primeiro Senado de 16 de fevereiro de 2023 — 1 BvR 1547/19, 1 BvR 2634/20, notas marginais nº 100.

[15] Classico sobre o tema Introdução de Spiros Simitis em: Spiros Simitis, Gerrit Hornung, Indra Spiecker (Orgs.), Datenschutzrecht, primeira edição 2019, notas marginais 28-48., ver também Marion Albers, Informationelle Selbstbestimmung, Baden-Baden 2005, p. 234 e ss.

[16] Sobre a critica a ponderação, ver meu livro Ricardo Campos (Org.) Crítica da Ponderação. Método Constitucional entre a Dogmática jurídica e a Teoria Social, São Paulo 2016.

Autores

  • é docente na Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha), coordenador nacional de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional, diretor do Instituto Legal Grounds, sócio do Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados e ganhador do prêmio Werner Pünder sobre regulação de serviços digitais (Alemanha, 2021) e do European Award for Legal Theory da European Academy of Legal Theory (2022).

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