Opinião

Quem contratou a insegurança jurídica? A ofensiva contra a jurisprudência do STF

Autor

  • Gilmar Mendes

    é professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha) e ministro do STF.

27 de fevereiro de 2023, 20h39

Poucos temas sob o Sol geram mais demandas judiciais que a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). De vários modos tem sido postulada a pretensão de escapar do pagamento desse tributo. Em face dessa multiplicidade de tentativas, o Supremo Tribunal Federal (STF) ofereceu resposta uníssona em diversas oportunidades. A primeira, em 1989, quando indeferiu medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 15. Em 1992, a questão novamente se colocou para o plenário do STF e conheceu o mesmo desfecho: é constitucional a CSLL (RE 146.733). Em 2007, a referida ADI 15 foi julgada no mérito. O resultado? O mesmo: é constitucional a CSLL, e seu pagamento por pessoas jurídicas que já recolhem Imposto de Renda não traduz situação alguma de bitributação.

Spacca
É seguro dizer, portanto, que nunca houve controvérsia acerca do dever fundamental das empresas de pagar a CSLL. Há jurisprudência constante sobre o tema. Atentatória à segurança, diferentemente, foi a controvertida estratégia utilizada. Diante da decisão do STF, em 2007, que afirmou com notas definitivas a constitucionalidade da CSLL, ajuizaram-se novas ações, em que se pediu o privilégio de não pagar a CSLL, ao argumento de que tal tributo seria inconstitucional. Sim, tudo isso a despeito do acórdão do STF na ADI 15, em 2007.

O que explicaria o embarque de gigantes do mercado brasileiro numa aventura tão temerária? "Um amor exagerado ao risco, afinal, essa é a marca do grande empresário" — assim vaticinaria um observador desatento do cenário nacional. Veja-se que mesmo um olhar tão cândido seria suficiente para desmontar a narrativa de que o STF teria ferido de morte a segurança jurídica ao novamente determinar, agora, em fevereiro de 2023, que a CSLL é constitucional e que, portanto, deve ser paga. Se há insegurança, ela foi gestada por quem se colocou em risco, ao ajuizar ação cujo efeito prático pretendido era tornar-se imune ao julgado de 2007, que possui eficácia geral (erga omnes) e que, por isso, requer observância de todas as empresas brasileiras.

Nem um desmedido apetite pelo risco, nem uma advocacia leviana: o que motivou essa aventura judicial parece ter sido puro cálculo. É conhecido o trecho de biografia de célebre campeão do varejo brasileiro, em que afirma que uma de suas mais difíceis decisões empresariais foi deixar de pagar CSLL: a aposta deu certo e, de posse de uma sentença, o litigante obteve um aumento de 9% no lucro líquido de sua companhia. Num contexto de economia de escala, conseguir o privilégio de não pagar CSLL, mesmo que por poucos anos, pode ser o suficiente para aniquilar a concorrência. Os bobos ficaram fora da corte. Ao que parece, esse cálculo embalou bem articulada ofensiva contra uma jurisprudência do STF que, desde 2007, declara de forma ampla, geral e irrestrita a constitucionalidade da CSLL. 

Foi de olhos postos nessa realidade que o STF notou que, por trás de um culto à "coisa julgada", se escondia o objetivo de alguns atores econômicos de eternizar privilégios tributários inexplicavelmente concedidos por magistrados recalcitrantes. Os interessados diziam-se preocupados em firmar "tese" sobre os efeitos que uma modificação jurisprudencial opera no âmbito tributário; a possibilidade de seu não acolhimento seria uma "quebra da coisa julgada" — mantra de pronto replicado por uma potente estrutura midiática.

Nada disso, entretanto, afastou o STF da reafirmação da constitucionalidade da CSLL, que também reafirmou sua jurisprudência: numa relação de trato sucessivo, como a de um tributo cujo recolhimento deve ser efetuado todo mês, a eficácia da decisão do STF não diz nada sobre o passado, apenas sobre o futuro. Assim, os que buscaram manter um privilégio foram aqueles que contrataram a insegurança. Nem com isso, todavia, se chegou ao extremo. Os que, antes de 2007, detinham o privilégio de não recolher a CSLL nada terão a pagar retroativamente: nem ao Fisco, nem aos pequenos, médios e grandes empresários que fecharam as portas em decorrência de uma verdadeira concorrência desleal.

*publicado originalmente pelo jornal O Globo

Autores

  • é doutor em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha. Professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

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