Opinião

O teto de gastos foi pensado para limitar pagamento de precatórios?

Autor

  • Caio Gama Mascarenhas

    é doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP) mestre em Direitos Humanos (UFMS) procurador do Estado do Mato Grosso do Sul chefe da procuradoria judicial e membro do corpo editorial da Revista da PGE-MS.

27 de fevereiro de 2023, 6h42

O pagamento de condenações judiciais (precatórios) desequilibra o orçamento público a ponto de necessitar de uma norma de teto de gastos? Em outras palavras: se um ente federativo tiver capacidade financeira para quitar sua dívida de precatórios ou de antecipar grande parte da dívida, poderá fazê-lo em desabono ao teto de gastos?

Essa provocação reflete uma análise crítica das Emendas Constitucionais 113/2021 e 114/2021 feita em um artigo chamado Pagar condenações judiciais desequilibra o orçamento público? A sustentabilidade fiscal do teto de gastos para precatórios (ECs 113/2021 E 114/2021) [1]  (download aqui) recentemente publicado na revista eletrônica da PGE-RJ (link da página aqui).

O dilema do teto de gastos aos precatórios iniciou-se em julho de 2021. Naquela ocasião, o então ministro da Economia, Paulo Guedes, dizia que um "meteoro" viria de "outros Poderes", afetando a dívida federal de precatórios. Na mesma entrevista, o ministro da Economia defendeu que o governo precisava "disparar um míssil para impedir que o 'meteoro' acerte a Terra — neste caso, as finanças da União". O pagamento dos precatórios ficaria, em sua visão, "sob o guarda-chuva do teto de gastos", limitando o avanço das despesas à inflação.

Sem o teto de gastos, o pagamento de condenações judiciais desequilibra o orçamento? Se pegarmos somente a justificativa do governo federal, poder-se-ia dizer que sim. Segundo a justificativa da PEC 23/2021, que originou a EC 113/2021, o governo estaria tentando evitar um rombo nas contas públicas, a violação ao teto de gastos e a perda da capacidade de investimento. Segundo tal documento, houve um crescimento expressivo de R$ 33,7 bilhões na dívida federal de precatórios em 2021 em comparação ao ano anterior, gerando um risco à gestão orçamentária [2].

Aprovadas as emendas constitucionais nº 113 e 114 em dezembro de 2021, definiu-se, dentre outras questões, um teto de gastos para o pagamento de precatórios (cerca de R$ 39,2 bilhões), que terá duração até 2026 (Artigo 107-A do ADCT — EC 114) [3]. Em estudo, foi estimado que as novas regras abririam espaço fiscal de R$ 117.9 bilhões no orçamento de 2022 para o aumento das despesas primárias [4].

O que foi feito então com o espaço fiscal aberto? Estabeleceu-se que deve "o espaço fiscal decorrente da diferença entre o valor dos precatórios expedidos e o respectivo limite ser destinado ao programa previsto no parágrafo único do art. 6º e à seguridade social, nos termos do art. 194, ambos da Constituição Federal" (artigo 107-A, caput, da CF). No caso, destacam-se as políticas redistributivas previstas na Emenda Constitucional 123 (resultado da "PEC Kamikaze") que chegaram ao montante de aproximadamente R$ 50 bilhões em 2022 [5].

Qual era a intenção inicial do teto de gastos do "Novo Regime Fiscal"?

Dentro do "Novo Regime Fiscal" (ADCT, artigos 106 a 114), o chamado "teto de gastos" consta do artigo 107 do ADCT, mediante o qual são estabelecidos, para cada exercício financeiro, limites individualizados para as despesas primárias da União com base nos valores dos exercícios anteriores acrescidos da correção monetária. Denota-se que o regime fiscal da EC 95/2016 estabeleceu hipóteses de exceção ao limite de despesas primárias. Adicionado pela Emenda Constitucional nº 95/2016, esse instrumento financeiro instituiu, pelo prazo de vinte exercícios financeiros.

Segundo a justificativa da PEC posteriormente convertida na EC 95/2016, a proposta do teto de gastos tinha a finalidade de mitigar aquilo que o Poder Executivo federal diagnosticava como um "quadro de agudo desequilíbrio fiscal", reestabelecendo a "confiança na sustentabilidade dos gastos e da dívida pública", aumentando a "previsibilidade da política macroeconômica" e fortalecendo a "confiança dos agentes" [6].

Isso nos leva à pergunta: pagar condenações judiciais desequilibra o orçamento?

Embora a Emenda Constitucional 123/2022 tenha a sua constitucionalidade passível de discussão [7], não se aborda aqui esta questão. Não se aborda, igualmente, a necessidade das políticas de distribuição de renda possibilitadas após o espaço fiscal liberado pelas emendas constitucionais que submeteram o pagamento dos precatórios ao teto de gastos. Discute-se única e exclusivamente o argumento de que o equilíbrio fiscal seria obtido ao se limitar o "Novo Regime Fiscal" às condenações judiciais.

Resta apresentar uma pergunta um pouco mais pragmática: Pagar condenações judiciais desequilibra o orçamento? Em outras palavras, contingenciar o pagamento de precatórios judicias é fiscalmente sustentável?

Inicia-se pela noção de equilíbrio orçamentário. Na visão de Estevão Horvath, o equilíbrio orçamentário também pode ser utilizado como sinônimo de equilíbrio entre despesas e receitas públicas, sendo um ideal a ser atingido pela administração pública. Em suas palavras: "o equilíbrio é, segundo pensamos, um ideal a ser atingido; é dizer: mais que um princípio, o equilíbrio entre receitas e despesas é um desejo que se imagina todos os entes públicos — e, bem assim, os cidadãos — persigam" [8]. Weder de Oliveira, por sua vez, defende que: "o equilíbrio entre receitas e despesas pode também ser referenciado como equilíbrio orçamentário, equilíbrio fiscal ou controle fiscal" [9].

É razoável a noção de que o equilíbrio orçamentário foi reforçado com as Emendas Constitucionais que estipulam tetos de gastos, tentando frear o crescimento das despesas primárias. No caso da União, a Emenda Constitucional 95/2016. Daí porque foram criados limites para o crescimento da dívida acima da inflação. Percebe-se que os limites foram feitos de acordo com a anualidade do gasto público, ou seja, limites específicos por exercício financeiro.

A utilização da anualidade é sempre a mais adequada para equilíbrio fiscal e estabilidade das contas públicas?

Segundo Estevão Horvath, algumas ponderações devem ser feitas a respeito disso, devendo-se admitir o "desequilíbrio" em um certo ano fiscal, retornando-se ao equilíbrio no seguinte. Segundo o autor, essa constatação leva a que o equilíbrio orçamentário tenha que ser avaliado em períodos de tempo maiores do que um simples exercício financeiro. Isso porquanto esse exercício pode ter se iniciado com um orçamento equilibrado e, no seu curso, tenha tido que ser alterado, "desequilibrando-se", ainda que circunstancialmente, por razões supervenientes. O desequilíbrio circunstancial do orçamento não afeta necessariamente a estabilidade orçamentária [10].

A noção de desequilíbrios circunstanciais que seriam melhores a longo prazo é uma noção mais adequada para a presente análise. Essa questão diz respeito ao princípio da sustentabilidade da dívida brasileira, que se encontra na Constituição, notadamente no artigo 164-A que obriga o poder público a "conduzir suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis sustentáveis". Resta pendente, contudo, a sua regulamentação por lei complementar referida no inciso VIII do caput do artigo 163 da Constituição.

Marcos Mendes explica que a intenção da Emenda, ao incluir o artigo 164-A, é "fixar um nível de dívida considerado desejável e, a partir daí, determinar qual a trajetória da despesa e da receita que seriam compatíveis com o atingimento dessas metas". O teto de gastos estaria submetido à trajetória esperada de receita e da meta almejada para a dívida [11].

A melhor definição de sustentabilidade financeira ou sustentabilidade orçamentária a longo prazo foi proposta por Allen Schick [12]. Segundo o autor, a mudança da orientação de equilíbrio para um horizonte de longo prazo expandiu a forma como os governos e as organizações internacionais pensam sobre sustentabilidade.

Conforme Allen Schick, a análise de sustentabilidade contemporânea concentra-se nas condições fiscais que podem retardar o crescimento econômico, aumentar a carga tributária ou transferir custos significativos para os futuros contribuintes. Segundo o estudioso em finanças públicas, o termo tem quatro dimensões de sustentabilidade podem ser delineadas e que tendem a aparecer em conjunto: Solvência — capacidade do governo de pagar suas obrigações financeiras; Crescimento — política fiscal que sustenta o crescimento econômico; Estabilidade — a capacidade do governo de cumprir obrigações futuras com cargas tributárias existentes; Justiça — a capacidade do governo de pagar as obrigações atuais sem transferir o custo para as gerações futuras.

Limitar pagamento de precatórios por meio de teto de gastos é fiscalmente sustentável, como defendiam os motivos constantes da PEC originária?

Imagina-se um ente público com alto grau de solvência financeira. Em sentido contrário ao contingenciamento perene do pagamento dos precatórios, os quatro elementos estariam previstos na busca pela quitação da dívida de precatórios. Um Estado que possui hoje a capacidade para pagar sua dívida de precatórios (solvência) abre em futuro próximo maior espaço para investimentos em outras áreas (crescimento), desvinculando parte de sua receita corrente líquida feita de acordo com a EC 62/2009 para cumprir outras obrigações futuras (estabilidade) e demonstrando a capacidade do governo de pagar as condenações judiciais com a arrecadação atual sem transferir o custo para as gerações futuras, ainda que não bata momentaneamente a meta fiscal (justiça). O mesmo raciocínio poderia ser aplicado à União após as ECs 113/2021 e 114/2021.

Ressaltam-se as razões da PEC 241/2016, que fundamentaram o teto de gastos no âmbito federal. Segundo a exposição de motivos, os limites de gastos teriam os seguintes benefícios: (1) aumento da previsibilidade da política macroeconômica; (2) fortalecimento da confiança dos agentes; (3) eliminação da tendência de crescimento real do gasto público; (4) redução do risco-país e, assim, abrirá espaço para redução estrutural das taxas de juros; (5) aumento da capacidade da economia de gerar empregos e renda; (6) estímulo à aplicação mais eficiente dos recursos públicos; e (7) contribuição para melhorar da qualidade de vida dos cidadãos e cidadãs brasileiros.

O teto de gastos aplicado aos precatórios teria esses mesmos benefícios? No tocante aos argumentos de aumento da confiança dos agentes (2) e melhora da qualidade de vida (7), destaca-se que o próprio julgado do STF declarou inconstitucional o regime especial de precatórios justamente pelo fato de a Emenda diminuir a confiança legítima no poder público e por facilitar a violação de direitos dos cidadãos ao descumprir ordens judiciais de pagamento [13].

Também há dúvidas em relação dos argumentos econômicos do teto de gastos contra a quitação de precatórios como: aumento da previsibilidade macroeconômica (1), eliminação da tendência de crescimento de gastos (3), redução do risco-Brasil (4) e aumento da capacidade de gerar empregos e renda e eficiência do gasto público (5).

Ao conter os efeitos da alta inflação sobre os valores dos precatórios judiciais, o ente público estaria conferindo maior previsibilidade à sua dívida pública. Segundo estudo de Clara Paredes Martins, que analisou a evolução dos precatórios estaduais e a consequente repercussão de tais ativos nas respectivas finanças públicas estaduais, a gestão de precatórios judiciais por vários estados brasileiros não tende a ser sustentável. Em sua visão, o efeito do acelerado crescimento de precatórios frente a um baixo valor destinado ao pagamento não pode ser desprezado [14].

Não se pode perder de vista a questão da correção monetária e dos juros de mora. As elevadas taxas de correção e juros fazem com que o endividamento estatal cresça.

O argumento do teto de gastos para o pagamento de precatórios, portanto, não é inteiramente fiel à noção de sustentabilidade fiscal. As Emendas Constitucionais 113/2021 e 114/2021 devem ser interpretadas conforme a constituição para o fim de: 1) adequar a sua aplicação à decisão do Supremo Tribunal Federal nas ADIs 4.357/DF, 4.425/DF, 4.400/DF e 4.372/DF, que julgou inconstitucional o regime especial de precatórios do artigo 97 do ADCT da Constituição Federal; 2) interpretar o teto de gastos conforme a noção de sustentabilidade da dívida do artigo 164-A; e 3) fixar que a quitação e antecipação do pagamento da dívida de precatórios não fere o regime de equilíbrio orçamentário pretendido pelo teto de gastos da Emenda Constitucional 96/2016.

 


[1] MASCARENHAS, Caio Gama. Pagar condenações judiciais desequilibra o orçamento público? A sustentabilidade fiscal do teto de gastos para precatórios (ECs 113/2021 E 114/2021). Revista Eletrônica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro – PGE-RJ, Rio de Janeiro, v. 5 n. 3, set./dez. 2022 (download aqui).

[2] BRASIL. Ministério da Economia. EM nº 00206/2021 ME. Brasília: ME, 2021.

[3] MARTINS, Clara Paredes. Análise da evolução do histórico dos precatórios na dívida consolidada dos estados brasileiros e a relação com o risco de crédito. 2022. Tese de Doutorado. Fundação Getúlio Vargas: São Paulo, 2022, p. 14-15.

[4] Instituição Fiscal Independente. Relatório de Acompanhamento Fiscal de 16 de dezembro de 2021. Relatório número 59. Brasília, 2021.

[5] Tal Emenda criou inúmeros auxílios com elevados impactos fiscais (41 bilhões): a) despesas de R$ 26 bilhões para ampliar o Programa Auxílio Brasil; b) despesas de R$ 1 bilhão para Auxílio Gás; c) despesas de R$ 5,4 bilhões para Auxílio Caminhoneiro; d) despesas de R$ 2,5 bilhões para Auxílio Transporte Idoso; e) despesas de R$ 3,8 bilhões para Auxílio aos produtores de etanol; f) despesas de R$ 2 bilhões para Auxílio aos taxistas; e g) despesas de R$ 500 milhões para Auxílio Alimentação.

[6] Brasil. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. EMI 00083/2016 MF. Brasília: MPDG, 2016, p. 2.

[7] No caso, as ADIs 7.212/DF e 7.213/DF.

[8] HORVATH, Estevão. O orçamento no século XXI: tendências e expectativas. 2014. 2014. Tese de Doutorado. Tese de Concurso de Professor Titular de Direito Financeiro na USP: São Paulo, 2014, p. 168-206..

[9] OLIVEIRA, Weder de. Curso de responsabilidade fiscal: direito, orçamento e finanças públicas, p. 385.

[10] HORVATH, Estevão, Op. cit.

[11] MENDES, Marcos. Emenda Constitucional 109 (PEC Emergencial): a fragilidade e a incerteza fiscal permanecem. Insper: São Paulo, 2021, p. 17.

[13] ADIs 4.357, 4.372, 4.400 e 4.425 de relatoria do ministro Ayres Britto.

[14] MARTINS, Clara Paredes. Análise da evolução do histórico dos precatórios na dívida consolidada dos estados brasileiros e a relação com o risco de crédito. 2022. Tese de Doutorado. Fundação Getúlio Vargas: São Paulo, 2022, p. 41-42.

Autores

  • é doutorando em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo(USP), mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), procurador do Estado do Mato Grosso do Sul e membro do Corpo Editorial da Revista da PGE-MS.

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