Opinião

O coletor do dízimo em Brueghel (ou o advogado do vilarejo)

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26 de fevereiro de 2023, 7h08

Trajando um pileus quadratus sobre a cabeça, moda chapeleira que se alastrou entre as igrejas, a academia e o judiciário na Europa seiscentista [1], a autoridade se apoltrona desafeiçoado diante dos ansiosos olhares camponeses, cuja atenção, voltada ao homem letrado, aguarda o exame de um de tantos documentos legais que entulham o ambiente. Seu escrivão, desencantado como um Bartleby, dissimula zelo sentado junto à porta de entrada da sala.

Reprodução
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Essa cena cotidiana do século 17 contém duas leituras. A uma, trata-se de um coletor de tributos, seja um oficial público, seja um agente privado a quem se contratou a arrecadação fiscal (tax farming, Fermes générales) [2], alternativa que seria duramente criticada desde Montesquieu [3] a Tomás Antônio Gonzaga [4], embora ostente defensores ainda nos dias atuais [5]. Transportada do antigo regime para nossa tradição administrativa colonial, a prática de arrendar a contratadores (rendeiros) os tributos permaneceu viva por séculos [6], desde a supervisão exercida pelo provedor-mor sobre as rendas [7] até a instituição da meia siza sobre o comércio de escravos ladinos pelo Erário Régio joanino[8].

Sob a interpretação mais provável [9], contudo, deparamo-nos na pintura com um advogado caricato, satirizado pela justaposição entre seu semblante presunçoso e o ambiente desordenado. A peça, crítica, alveja a profissão legal e foi recorrentemente reproduzida à época, tanto no próprio ateliê de Pieter Brueghel, o Jovem, autor da tela em questão, quanto em panfletos políticos [10], remetendo-nos à aversão bem sintetizada em outra pintura seiscentista de temática semelhante cuja composição encontra-se estampada pelo provérbio "He who sues for a cow will lose another one" [11].

Qualquer que seja a leitura, os ovos, as aves e os cachos de uvas ofertadas pelos camponeses não conviriam nos dias atuais ao pagamento ali representado, seja do tributo, seja ao advogado. A prestação in natura, embora admitida historicamente na tributação brasileira (vintena do pau-brasil, quinto do ouro, quinto dos couros e dízimo do pescado), sobretudo no contexto de um regime colonial marcado pela escassez de moeda, terminou relegada diante da opção [12] pela pecuniarização dos tributos e das receitas orçamentárias, consolidada normativamente pelo teor doutrinário do Código Tributário Nacional [13]. Há quem sustente, contudo, sua sobrevivência travestida como intervenção estatal na propriedade privada [14].

Quanto aos honorários, a restrição à cláusula quota litis desponta já nos marcos legais históricos ultramarinos, essencialmente como medida de proteção a herdeiros chamados a compor determinada sucessão nas terras do reino. Assim, a vedação quanto a haver "certa cousa", direcionada peremptoriamente aos procuradores pelas Ordenações Filipinas [15] terminou aditada em 1774 de modo a também coibir os advogados, sob pena de degredo a Angola [16]. A própria Coroa já havia inclusive tabelado a remuneração dos patronos na colônia brasileira [17], indexação conservada já sob os reinados emancipados [18]. Este desencanto normativo com a participação do defensor nos bens particulares do defendido permanece vivo hoje por obra do Código de Ética da OAB que a tornou meio atípico de remuneração [19].

A história da arte é rica em iconografias legais; suas obras carregam representações de estruturas sociais e relações jurídicas que, presumivelmente obsoletas, são, todavia, transportadas como vestígios e lampejos de uma realidade ainda tangível no tempo presente. Antonio Candido compreendia que "cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles" [20]. São justamente tais manifestações, imbuídas numa poética visual necessariamente política e jurídica, que precisamos começar a investigar.

 


[1] HARGRAVE, Seamus Addison. The Church and the Trencher: An Examination into How England's Changing Theology and Church Have Influenced the Evolution and Design of the Square Cap Causing its Use as Academic Attire. Transactions of the Burgon Society, Vol. 14, 2014.

[2] "In a rental contract for a tax farm, the tax collectors would pay a fixed rent to the government for the right to collect a tax and keep the remaining revenue; in a share contract, the government would lease the right to collect a tax to a collector for a share of the revenue; and in a wage contract, the government would pay a fixed wage to its tax collectors in return for delivery of all revenue." (WHITE, Eugene. From privatized to government-administered tax collection: tax farming in eighteenth-century France. Economic History Review, vol. LVII, nº 4, 2004)

[3] "Com a arrecadação direta, o príncipe poupa ao povo uma infinidade de leis ruins que a avareza importuna dos arrecadadores sempre exigem dele, pois os arrecadadores oferecem uma vantagem presente em regulamentos funestos para o futuro." (MONTESQUIEU, Charles. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 233)

[4] "Que o nosso Fanfarrão estima e preza / Os rendeiros que devem, por sistema: / Só para ver se os ricos desta terra, / À força de favores animados, / Se esforçam a lançar nas régias rendas" (GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional)

[5] STELLA, Peter. Tax Farming: A Radical Solution for Developing Country Tax Problems? Washington: IMF, 1992 ( IMF Working Paper No. 92/70).

[6] "Até o final do século xviii, a cobrança dos tributos no Brasil, à exceção dos quintos reais, raramente foi feita por agentes do Estado. A coroa portuguesa considerava mais conveniente colocar em leilão a cobrança de um determinado tributo por meio de contratos em que se acordavam o tempo de duração e o valor que o contratador deveria pagar ao Estado. […] Para a Real Fazenda, a vantagem consistia na garantia de pagamento pelo contratador, que assumia a responsabilidade pelo valor total arrematado, além das despesas referentes à administração." (ALVES CARRARA, Angelo. A administração dos contratos da capitania de Minas: o contratador João Rodrigues de Macedo, 1775-1807. Am. Lat. Hist. Econ, México, n. 35, p. 29-52, jun. 2011)

[7] "[…] os ditos provedores mandarão dar aos rendeiros seus arrendamentos, feitos por seus escrivães, e assinados por eles, em que se declare como andarão em pregão e as condições com que foram arrematadas e liberdades que hão de haver para conforme ao dito arrendamento correm e arrecadarem as ditas rendas." (Regimento dos Provedores da Fazenda Real de 17 de Dezembro de 1548)

[8] "VI. A meia siza, que se deve pagar na venda dos escravos ladinos, se arrendará a quem mais der, fazendo-se as arrematações na forma dos mais Contratos nesta Corte e Provincia, no Conselho da minha Real Fazenda e nas referidas Capitanias nas Juntas da Administração e Arrecadação della." (Alvará de 3 de Junho de 1809)

[9] Natalie Zemon Davies argumenta que o chapéu, o ambiente, os documentos e os alimentos ofertados (o pagamento de um tributo normalmente ocorreria em cereais) apontam todos para uma dinâmica própria de um advogado com seus clientes. (The Gift in Sixteenth-Century France. Madison: University of Wisconsin Press, 2000, p. 158)

[10] CURRIE, Christina; ALLART, Dominique. The Brueg[H]el Phenomenon. Volume II. Brussels: Royal Institute for Cultural Heritage, 2012, p. 694.

[12] "No plano da lógica jurídica nada impede a criação de um tributo em natureza ou em serviço. O objeto da prestação tributária, neste caso, não seria de natureza pecuniária. Seria um bem diverso do dinheiro, ou um serviço. E nem precisaria ser dimensionado pecuniariamente. Aliás, já houve quem sustentasse a vantagem da instituição de um dízimo real sobre todos os frutos da terra, sem exceção alguma, o qual produziria melhor resultado líquido, sendo percebido em espécie, em natureza, de execução simples, sem a necessidade de cálculos. No Direito positivo brasileiro, porém, tal é inadmissível." (MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: Atlas, 2003, p. 89-90)

[13] "Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada." (Código Tributário Nacional)

[14] "[…] os deveres de prestação in natura e in labore, à medida que vão surgindo, vão recebendo as mais díspares classificações e são jogados, regra geral, dentro do Direito Administrativo. Ali, ficam girando como asteróides enigmáticos sem órbita definida e pondo em perigo, com suas incongruências, a estrutura jurídica do Direito Administrativo e a constitucionalidade de suas próprias e respectivas estruturas, pois as regras jurídicas fundamentais que os devem reger e disciplinar, conferindo-lhes segurança e certeza às suas órbitas jurídicas, estão no Direito Tributário." (BECKER, Alfredo. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2007, p. 656)

[15] "11. E defendemos a todos os Procuradores, que não façam avença com a partes, para haverem certa cousa, vencendo-lhes as demandas. E o que a fizer, seja suspenso de procurar hum anno, e pague dous mil réis para as despesas da Relação; mas somente levarão os salários, que se lhes direitamente montar, e per nossas Ordenações lhes são taxados. E se lhes as partes mais derem em pão, vinho, carne, ou outras cousas, e lhes requererem, que lho descontem no salário, serão obrigados a lho descontar, ao tempo que se contar o feito. E os ditos Procuradores não farão entre si companhia sobre o salario, sob pena de serem privados dos Officios, e degradados para sempre para o Brasil." (Ordenações Filipinas. Livro I. Título XLVIII)

[16] "Item: Porque tem mostrado a experiencia não ser bastante nem a providencia da Ord. liv. 1 tit. 48 § 11; nem a pena nella imposta para fazerem cessar as convenções, e pactos chamados de quota litis, em que se estipulão quaesquer porções, ou quantias para o caso do vencimento das causa:

Prohibo todos os sobreditos pactos, e convenções, ou elles se celebrem com Advogados, Procuradores, ou com outras quaesquer pessoas: debaixo das penas de nulidade dos ditos pactos e convenções: De trez annos de degredo para Angola, e de perpetua suspensão, e inhabilidade contra os Advogados: E de cinco annos de degredo para Angola contra os mais Procuradores, ou outras quaesquer pessoas, que forem estipulantes nas ditas convenções, por qualquer fôrma que sejão celebradas." (Alvará de 1 de Agosto de 1774)

[17] "De cada requerimento na audiencia, cento e cincoenta reis: de pôr huma acçaõ, o mefmo: de huma petiçaõ de aggravo, mil e duzentos reis: de huma excepçaõ, o mefmo : de Razaõ offerecida por embargos, trezentos reis: de caufa ordinaria com replica, e treplica, nove mil e feiscentos reis: de caufas fummarias, quatro mil e oitocentos reis: o que ferá, paffando a caufa de cem mil reis; e naõ chegando, levaráõ a metade." (Alvará de 10 de Outubro de 1754)

[18] "Art. 63. Aos Advogados contar-se-ha pelas petições de conciliação, qualquer que seja a Causa 2$000

Ditas para principio de acção em que se não dá Libello 4$000

Ditas para embargo ou arresto, mandado de detenção, sequestro, embargo de obra nova 4$000

Dita offerecida por embargos 4$000 […]" (Decreto 1.569, de 3 de Março de 1855)

[19] "Art. 38. Na hipótese da adoção de cláusula quota litis, os honorários devem ser necessariamente representados por pecúnia e, quando acrescidos dos de honorários da sucumbência, não podem ser superiores às vantagens advindas em favor do constituinte ou do cliente. Parágrafo único. A participação do advogado em bens particulares de cliente, comprovadamente sem condições pecuniárias, só é tolerada em caráter excepcional, e desde que contratada por escrito." (Código de Ética e Disciplina da OAB)

[20] CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 177

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