Substituir serviço de apps de transporte pelos Correios: uma ideia ruim
17 de fevereiro de 2023, 6h04
Recentemente, no início de fevereiro, durante um debate sobre a regulação trabalhista do trabalho plataformizado, o ministro do Trabalho afirmou que "se a Uber quiser deixar o Brasil devido a proposta de regulamentação do serviço por aplicativos, o governo federal pode chamar os Correios para substituir". A declaração foi dada em entrevista ao jornal Valor Econômico [1].
A ideia não só é ruim e infactível, como veremos mais à frente, como também é ilegal!
Primeiramente porque há um impeditivo constitucional previsto no artigo 173 da Carta de 1988. Segundo esse dispositivo, ressalvados os casos previstos na Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, "conforme definidos em lei". Ou seja, em não se tratando de segurança nacional e não havendo lei definindo que empresa de transporte urbano por plataforma digital é relevante interesse coletivo, a ideia atenta contra o texto constitucional.
Aliás, é um traço comum que marca a empresa pública e as sociedades de economia mista, aplicável a todas as entidades da administração indireta e que se refere ao princípio da especialização e ao próprio princípio da legalidade, ou seja: se a entidade foi criada para um dado fim, destacando-se um patrimônio para a consecução deste objetivo, tal patrimônio não poderá ser utilizado para objetivo diverso.
O Decreto-Lei 509/1969, que criou a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, estabeleceu as competências da ECT em seu artigo 2º. Todas elas — inclusive a logística — exclusivamente vinculadas a serviços postais, os quais, aliás, são executados e controlados em regime de monopólio. Posteriormente foram agregadas outras, como serviços bancários, p. ex., ou serviços de entregas de encomendas (Sedex), desenvolvidas em regime de concorrência, mas não há notícia de serviço de transporte de passageiros por meio de plataformas digitais.
Sigamos abstraindo o fato e abordando outras questões.
O governo tem recebido bem a ideia (incorreta a nosso ver) que defende que o trabalho de transporte por aplicativo reúne todas as condições para ser equiparado àquele da CLT, configurando vínculo. Pois bem, neste cenário, qualquer atuação do poder público nesse mercado, seja diretamente ou via empresas públicas como os Correios, na forma do sugerido pelo ministro, configuraria contratação irregular e violação aos requisitos consubstanciados no artigo 37 da Constituição.
O procedimento de acesso a cargo ou empregos públicos deve se dar mediante aprovação em concurso! Ou seja, ou uma coisa ou outra. O modelo de negócio, portanto, é absolutamente incompatível, a partir dessa perspectiva, com a ideia da exploração por empresa pública. Com direito a responsabilização do próprio gestor público responsável pelo fato.
Isso sem falar no fato de ter que montar toda uma equipe técnica para iniciar um ramo de atividade que nunca foi o seu e não se tem know-how.
Lembremos que grandes empresas de tecnologia como as de mobilidade urbana, hoje, na área técnica, empregam uma mão de obra ultra especializada, bem remunerada, muitas vezes em valores maiores que os limites da administração pública, e disputadíssima no mercado, com fórmulas de remuneração que incluem, inclusive, participações societárias.
Toda essa força de trabalho teria que ser atraída ao concurso público para um emprego estanque, tradicional, altamente controlado, salários defasados e com pouca mobilidade.
Aliás, tudo o que uma empresa de tecnologia não precisaria hoje é justamente do sistema paquidérmico do modelo estatal, lento e contaminado politicamente, seja nos Correios ou qualquer outra estrutura.
Aliás, características típicas de um modelo pré-internet de empresas pesadas, hierarquizadas e com um sistema de pensamento nuclear. Perdem-se em planejamentos longos e detalhados de até 20 anos, usam dados recorrentes das experiências passadas e muito lentas na tomada de decisão e na adoção de novas tecnologias [2].
Lembrando que isso impacta na produtividade, produção de valor, geração de renda e principalmente concorrência por mercados consumidores.
A começar pela necessidade de investimentos constantes. Apenas em 2021, os investimentos de longo prazo da Uber foram de US$ 12 bilhões (R$ 66 bilhões, a valor presente), um aumento de 24,43% em relação a 2020, para se ter uma ideia [3].
Ainda há investimentos externos. De 2018 pra cá, empresas como a PayPal, Bay Pine e SoftBank, colocaram mais de US$ 3 bilhões da empresa. Alguns investimentos, inclusive, vieram das próprias fabricantes de automóveis, que obviamente também se beneficiam com o modelo de negócio (o que aliás, também movimenta a roda da economia). Em outubro de 2018, a Tata, montadora indiana, colocou US$ 2 bilhões na Uber, e, em abril de 2019, a Toyota cerca de mais US$ 1 bilhão [4].
Em Pernambuco, por exemplo, os carros destinados a aplicativos de mobilidade representam cerca de 20% da demanda na locação de veículos [5]. A locação, por sua vez, representa hoje quase 40% dos carros vendidos no Brasil. Lembre-se que, fora desses, cerca de 70% dos motoristas de apps no Brasil [6] ainda trabalham com veículos próprios. Já no caso de entregadores, esse número sobe pra 90% [7].
Os Correios investem atualmente, em média, para o seu core business, R$ 300 milhões por ano (ou US$ 54 milhões ). Um estudo da Accenture recente concluiu que apenas para ser competitivo naquilo que já faz, os investimentos deveriam ser de, no mínimo, R$ 2 bilhões por ano, e isso por pelo menos dez anos seguidos [8].
O mercado de transporte por aplicativo é aberto no Brasil, ainda que gigantes como Uber (de capital americano) e 99 (de capital chinês) tenham como estratégia (bem sucedida) a tomada de gigantescas fatias. Ou seja, um aplicativo estatal teria que concorrer com outros em um mercado que outras empresas importantes e com largo know-how no modelo de negócio como a Cabify, de capital espanhol, sucumbiram à concorrência ou apenas atingem parcelas risíveis do mercado.
A rapidez nas decisões gerenciais é uma habilidade essencial para o sucesso de qualquer empresa.
Isso implica em análises de performance e de maturidade profissional dos trabalhadores de nível gerencial com inevitável troca rápida de profissionais não performáticos, o que, em razão do sistema de estabilidade no emprego, é inviável.
Algumas das maiores empresas de tecnologia do mundo demitiram nos últimos meses mais de 150 mil trabalhadores. Isso se deu por uma variedade de razões, as quais basicamente se resumem, em um mercado cíclico, na necessidade de reduzir custos com a diminuição do crescimento econômico global [9].
Aliás, lembre-se que a maior empresa do ramo, a Uber, desde sua fundação, em 2009, jamais deu lucro!
Isso porque, no mundo das big techs, a lógica é outra. De 100 startups que entraram no mercado aberto, 64 também nunca foram lucrativas. A própria Amazon permaneceu seis anos sem lucrar (anualmente) — entre 1997 e 2003 mais precisamente — reinvestindo capital, capturando o máximo de mercado e construindo um poderoso data center [10].
O objetivo é, portanto, formação de musculatura e a captura de uma larga fatia de mercado com futura monetização. Explique isso em uma empresa pública constituída com dinheiro do pagador de impostos e para os funcionários que se beneficiam de distribuição de lucros ainda mais sujeita a larga influência política e troca constantes de mandatários.
Isso sem falar, ainda, que aos Correios já foi reconhecida imunidade tributária! O STF já decidiu anteriormente (autos do RE nº 601.392/PR, relatoria para o acórdão do ministro Gilmar Mendes) que a imunidade recíproca prevista no artigo 150, VI, a, CF, deve ser reconhecida à ECT, mesmo quando relacionada às atividades em que a empresa não age em regime de monopólio. Ou seja, o transporte de passageiros seria exercido em grave desequilíbrio do mercado por contar com privilégios tributários.
Plataformas digitais só funcionam bem porque têm uma estrutura completamente diferente das chamadas empresas
baseadas na venda de produtos. Qualquer coisa diferente disso inviabiliza o funcionamento do modelo de negócio que só existe por conta disso.
A questão é muito bem elucidada por Parker, Van Alstyne e Choudary no já clássico Plataforma: a Revolução da Estratégia: o que é Plataforma de Negócios, como Surgiu e como Transforma a Economia em Alta Velocidade [11] (cujos conceitos de plataforma subsidiam inclusive relatórios da OIT), que se apresenta aqui em síntese apertada:
Empresas que se apresentam nesse formato e modelo de negócio são movidas pela demanda de economias de escala, conhecidas como "efeitos de rede", em que os usuários criam valor para outros usuários, o que atrai mais usuários, que, por sua vez, criam mais valor, o que atrai mais usuários e assim por diante. Isso levou ao domínio nos mecanismos de pesquisa, redes sociais, sistemas operacionais, comércio eletrônico e tecnologia móvel.
No caso dos apps de transporte, por exemplo, esses oferecem corridas a preço subsidiado, por exemplo. Esse movimento, na verdade, compra market share, que tem como objetivo movimentar um círculo virtuoso de aderência de outros motoristas e passageiros.
Aqui o mais importante são os chamados "elementos de suporte", sendo o mais importante deles a estrutura de governança (que muitas vezes é confundida com "traços de subordinação"): um conjunto de protocolos e padrões que determina quem pode participar, quais os papéis que serão exercidos por cada um, como eles podem interagir e como as disputas serão resolvidas para facilitar a conexão, coordenação e colaboração entre os participantes.
As plataformas, em última ratio, vendem justamente isso, um bom sistema de conexão de oferta e demanda com regras confiáveis, nas quais e segundo as quais cada um já sabe o que vai encontrar.
Efeitos de rede implicam no fato de que o valor da plataforma é medido pelo aumento da sua utilização, enquanto o valor do produto se deprecia com o uso. Um aumento de valor (do serviço prestado ou bem compartilhado), baseado em um sistema de feedbacks (a chamada "curadoria externa"), ultrapassa qualquer valor estático (ou em declínio) das empresas pipeline, aquelas que se caracterizam por vender produtos.
A própria forma de facilidade de integração ao negócio, característica do modelo, no qual o trabalhador de plataforma apenas faz um cadastro rápido à distância, enquanto nas empresas estanques, baseadas no sistema da CLT, fazem-se necessários longos processos de seleção, além de CTPS, ficha de registro, contrato de experiência, declaração de dependentes, inscrição no PIS/Pasep, fichas, documentos admissionais de saúde, vistoria do transporte, etc. etc. etc.
Todos os argumentos acima, de investimentos e modelo de negócio, valem também para a ideia quase utópica e marxista do "cooperativismo de plataforma". A ideia é bonita, mas não à toa não há por aqui ou em qualquer lugar do mundo qualquer exemplo prático com musculatura ou capilaridade necessária para captura de uma faixa significativa de mercado. Além disso, para muito além do conceito de que os trabalhadores seriam donos dos bens de produção, continua sendo uma estrutura empresarial com regras, na qual ainda é necessária uma cadeia de comando onde apenas se desloca a submissão a administração eleita.
Muito mais que demonizar o capitalismo, este, com todas as suas inúmeras imperfeições e na falta de outro melhor, ainda é o sistema econômico prevalente e é o único que realmente permite desenvolvimento tecnológico. Afinal é a busca por lucratividade e a competição que verdadeiramente impulsiona a inovação. Simplesmente dizer tchau à iniciativa privada, como se o Estado fosse capaz de assumir outras responsabilidades que claramente não são suas, sinceramente, é um retrocesso sem tamanho.
Isso não significa, evidentemente, que o Estado não tenha que intervir, criando regras para evitar excessos ou desajustes. No mundo do trabalho plataformizado, eles são muitos, e isso se dá, em grande parte, pelo fla-flu ideológico que se tornou a discussão do vínculo e pela demora do legislador em compreender o fenômeno e sair da inércia. No próximo ano, 2024, fará dez anos que as empresas de transporte plataformizado se instalaram no Brasil. O que se viu até agora foi a sociedade civil se beneficiando dos serviços, enquanto observa apática, junto com seus representantes eleitos, os trabalhadores navegando em uma zona cinzenta da insegurança trabalhista.
É sabido que lei não cria empregos, mas apenas regula as condições em que as atividades são exercidas. Ademais, dos 117 projetos de lei que tramitam ou já tramitaram no Congresso pretendendo regular as plataformas no campo trabalhista, sabemos que o que realmente vai melhorar o cenário é competição e crescimento econômico.
Abra o mercado, estimule a competição e traga novos players a disputar a mão de obra com benefícios. Faça a roda da economia girar, criando melhores postos e oportunidades, a ponto que não sobre espaço para o trabalho desprotegido. Assim se dá no Japão, por exemplo, onde as empresas de gig-economy têm dificuldade em oferecer salários competitivos no mercado, o que torna difícil atrair trabalhadores [12].
Em um modelo de negócio que traz oportunidades de trabalho para além daqueles previstos na CLT, escrita em uma realidade de um Brasil rural e de pouca industrialização, que desconhecia essas novas relações de trabalho e que somente se amolda por meio de um exercício hermenêutico, o fato é, também, que não podemos querer enxergar também "precarização" em toda e qualquer ideia de regulação fora da binaridade nociva autônomo-empregado prevista no estatuto do trabalho, que relega, atualmente e segundo IBGE, cerca de 70% da população economicamente ativa pra fora do guarda-chuva protetivo. Mas isso é assunto para outro e extenso artigo.
A ideia de assumir, via empresa pública criada para exercer o serviço postal, uma atividade privada do ramo de tecnologia de transporte, além de ruim e infactível, é ilegal. O debate deve ser técnico, econômico e humano-centrado, no qual necessárias alternativas inovadoras de regulação devem ser recebidas sem a verborragia vociferante que está a caracterizar o debate sobre o trabalho plataformizado.
O 1,4 milhão de trabalhadores que hoje exercem tarefas nas plataformas agradecem.
[1] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/02/07/correios-podem-substituir-o-uber-no-brasil-entenda.ghtml
[2] PIAZZA, Carlos. Prefácio à edição brasileira in ARKER, Geofrey G. VAN ALSTYNE, Marshall W. CHOUDARY. Sangeet Paul. Plataforma a revolução da estratégia: o que é plataforma de negócios, como surgiu e como transforma a economia em alta velocidade. Trad. Bruno Alexander e Lizandra M. Almeida – Rio de Janeiro: Ala Books, 2018. P. 30
[5] https://jc.ne10.uol.com.br/economia/2021/07/13015720-cancelamento-e-muita-demora-entenda-o-que-tem-acontecido-na-uber-e-demais-aplicativos-de-transporte-no-recife.html
[7] https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/01/15/rappi-aproximadamente-90-dos-entregadores-de-aplicativo-utilizam-veiculos-proprios.ghtml
[8] https://www.poder360.com.br/brasil/para-serem-competitivos-correios-terao-de-investir-r-2-bi-ao-ano/
[10] https://www.computerworld.com/article/2575106/amazon-records-first-profitable-year-in-its-history.html
[11] PARKER, Geofrey G. VAN ALSTYNE, Marshall W. CHOUDARY. Sangeet Paul. Plataforma a revolução da estratégia: o que é plataforma de negócios, como surgiu e como transforma a economia em alta velocidade. Trad. Bruno Alexander e Lizandra M. Almeida – Rio de Janeiro: Ala Books, 2018
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!