Atos antidemocráticos e utilização de HC contra decisão de ministro do STF
25 de fevereiro de 2023, 6h05
Os atos criminosos de invasão dos prédios e depredação do patrimônio público do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal resultaram na conversão, em preventivas, das prisões em flagrante de 942 investigados por envolvimento nas práticas ocorridas no 8 de Janeiro.
A posição do Supremo acerca da inadequação do Habeas Corpus originário para o Tribunal Pleno de decisão de Turma, ou do Plenário, proferida em HC ou no respectivo recurso, está consolidada na Súmula 606, editada em 17 de outubro de 1984. O entendimento está fundado na justificativa de que a competência para o processo e julgamento do Habeas Corpus obedece ao "princípio da hierarquia", segundo o qual "não se pode reputar competente o mesmo juiz que autorizou a coação, ou que a ordenou, nem o seu igual, nem, 'a fortiori', o juiz inferior a ele" [4].
Tradicionalmente, o Plenário do STF admitia o ajuizamento do writ em face de decisões monocráticas proferidas por relator, apesar de não conhecer quando impetrados contra provimentos colegiados em geral [5], uma vez que, nas palavras do ministro Marco Aurélio, "enquanto houver, acima do Órgão que praticou o ato, outro que possa examinar a impetração, é cabível a medida", e do ministro Gilmar Mendes, acerca de que "a chave da abóboda do sistema de proteção judicial é a proteção judicial efetiva, é aquela cláusula que diz que nenhum direito ou ameaça a direito poderá estar imune à proteção judicial efetiva".
No entanto, a partir da análise do HC 86.548/SP, passou-se a aplicar analogicamente a Súmula 606 para não conhecer de habeas contra decisões de ministros da corte [6]. O tribunal tem como adequada a interposição de agravo interno para impugnar os pronunciamentos individuais dos ministros, mesmo quando se tratar de terceiro prejudicado, que poderá se valer do regramento do Código de Processo Civil presente o artigo 3º do diploma processual penal [7], reiterando a jurisprudência em ambos os sentidos: não cabe pedido de Habeas Corpus originário para o Tribunal Pleno contra ato de ministro ou outro órgão fracionário da corte [8].
Nada obstante, a matéria é sempre rediscutida pelo STF, a exemplo do que ocorreu no julgamento do HC 127.483, cujo empate na votação ensejou o conhecimento da impetração (decisão mais favorável ao paciente — artigo 146, parágrafo único, do RISTF), vencendo, na oportunidade, os ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski [9]. Mais recentemente, o Plenário decidiu, inclusive, que o ministro tido como autoridade coatora pode participar da votação que discute o cabimento do writ nessa hipótese [10].
Apesar disso, o entendimento de que não cabe Habeas Corpus contra ato de ministro do Supremo não foi modificado no âmbito da corte. No exame do HC 130.620 pelo Plenário Virtual [11], ao contrário do que suposto, o tribunal não assentou o cabimento de HC nessa hipótese, conquanto os ministros tenham acompanhado o voto do relator, que admitia a impetração, o fizeram somente quanto ao indeferimento da ordem, com ressalva acerca do seu cabimento.
A superação do óbice ao conhecimento do Habeas Corpus impetrado contra decisão de ministro da corte, com o consequente implemento da ordem de ofício, está relacionada à constatação de flagrante ilegalidade. Em obediência ao princípio da proteção judicial efetiva (artigo 5º, inciso XXXV, CF), a aplicação analógica da Súmula 606 pode ser afastada nas situações em que a decisão impugnada for teratológica, manifestamente ilegal ou abusiva. Portanto, ainda que a análise em sede de Habeas Corpus tenha cognição limitada, se, a partir dos elementos já produzidos e juntados aos autos, restar evidente a ilegalidade, deve se resguardar os direitos violados com a concessão da ordem.
Aliás, no HC 91.551/RJ, o Tribunal Pleno concedeu um HC de ofício voltado contra ato de integrante do Supremo, ministro Cezar Peluso, proferido no bojo do Inquérito nº 2.424/DF, em que determinada a instauração de inquérito policial para apurar o vazamento de dados sigilosos da investigação por parte de profissionais da advocacia [12]. Na ocasião, a maioria dos ministros atestou a impropriedade de os advogados figurarem como investigados considerada a ausência de indícios de participação em prática delituosa.
Assim, ainda que exista um entendimento consolidado acerca do entrave processual ao cabimento de HC contra ato de ministro, o contexto revelado pelas numerosas prisões decorrentes dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro impõe, em preservação ao direito fundamental à liberdade de locomoção, o reexame do tema pelos ministros da atual composição, por meio da afetação de um ou mais processos de Habeas Corpus para apreciação do Plenário do STF (artigo 21, IX, e 22 do RISTF).
Além disso, e antes mesmo da revisão dos precedentes acerca da inadequação do HC contra pronunciamento de ministro da corte, deve-se proceder à análise verticalizada da presença de manifesta ilegalidade ou teratologia no ato coator, vez que o fato de ter sido proferido por integrante do STF não tem o condão de afastar a incidência do artigo 654, § 2º, do CPP e do artigo 193 do próprio Regimento Interno.
Em suma, ainda que as decisões que resultaram no encarceramento preventivo dos 942 envolvidos nos atos antidemocráticos do dia 8 de janeiro possam ser submetidas ao crivo de legalidade e constitucionalidade do Plenário do STF por meio do agravo regimental (artigo 317 do RISTF), presente a competência do colegiado para o exercício da supervisão judicial da investigação criminal originária, a impetração de Habeas Corpus salvaguarda a liberdade de locomoção de maneira mais efetiva e célere.
O Habeas Corpus, instrumento jurídico processual mais eficiente em todos os tempos, sobrepõe-se a qualquer outra medida. Nesse cenário de decretação de numerosas prisões, ainda que decorrentes de fatos gravíssimos e repugnantes, torna-se ainda mais relevante ressaltar o seu papel na construção de um processo penal efetivamente acusatório e democrático.
[1] STF, HC 224.483/DF, rel. min. Carmen Lúcia, j. 3/2/2023.
[2] Art. 21, § 1º, RISTF: Poderá o(a) Relator(a) negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente inadmissível, improcedente ou contrário à jurisprudência dominante ou à súmula do Tribunal, deles não conhecer em caso de incompetência manifesta, encaminhando os autos ao órgão que repute competente, bem como cassar ou reformar, liminarmente, acórdão contrário à orientação firmada nos termos do art. 543-B do Código de Processo Civil.
[3] STF, HC 224.483/DF, rel. min. Carmen Lúcia, j. 3/2/2023; HC 224.125/DF, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 13/1/2023; HC 224.085/DF, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 13/1/2023.
[4] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. História e prática do habeas corpus. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1979. t. II. p. 194.
[5] STF, HC 85.099/CE, rel. min. Marco Aurélio, Pleno, j. 14/6/2006; HCAgr 84.444/CE, rel. min. Celso de Mello, Pleno, j. 9/8/2007.
[6] STF, HC 86.458/SP, rel. min. Cezar Peluso, j. 16/10/2008.
[7] STF, HC 129.802/CE, rel. Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. 18/12/2015.
[8] STF, HC 105.959/DF, rel. min. Marco Aurélio, redator p/ acórdão min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. 17/2/2016.
[9] STF, HC 127.483/PR, rel. min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 27/8/2015.
[10] STF, HC 152.707/DF, Rel. Min. dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 18.04.2018. Com a superveniente perda do objeto, o Plenário assentou o prejuízo da impetração, não tendo havido discussão acerca do cabimento e da matéria de fundo.
[11] STF, HC 130.620/RR, rel. min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j. 4/5/2020.
[12] STF, HC 91.551/RJ, rel. min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j. 4/12/2008.
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