Opinião

Atos antidemocráticos e utilização de HC contra decisão de ministro do STF

Autor

  • Mariana Madera Nunes

    é advogada ex-assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e é professora de Processo Penal da Universidade Católica de Brasília (UCB).

25 de fevereiro de 2023, 6h05

Os atos criminosos de invasão dos prédios e depredação do patrimônio público do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal resultaram na conversão, em preventivas, das prisões em flagrante de 942 investigados por envolvimento nas práticas ocorridas no 8 de Janeiro.

Spacca
Os decretos preventivos proferidos pelo ministro relator, Alexandre de Moraes, no âmbito do Inquérito nº 4.879/DF, têm sido objeto da impetração de diversos Habeas Corpus no próprio STF, sob o fundamento, por exemplo, de que a decisão estaria lastreada em "fundamentos abstratos e genéricos" [1], ante a ausência de individualização da conduta do imputado. Tendo em vista esbarrarem as impetrações no entendimento do tribunal acerca da impossibilidade de utilização do HC contra ato jurisdicional de órgão colegiado ou de ministro da corte, os processos tiveram o seguimento negado monocraticamente com respaldo no artigo 21, § 1º, do Regimento Interno do STF [2] [3].

A posição do Supremo acerca da inadequação do Habeas Corpus originário para o Tribunal Pleno de decisão de Turma, ou do Plenário, proferida em HC ou no respectivo recurso, está consolidada na Súmula 606, editada em 17 de outubro de 1984. O entendimento está fundado na justificativa de que a competência para o processo e julgamento do Habeas Corpus obedece ao "princípio da hierarquia", segundo o qual "não se pode reputar competente o mesmo juiz que autorizou a coação, ou que a ordenou, nem o seu igual, nem, 'a fortiori', o juiz inferior a ele" [4].

Tradicionalmente, o Plenário do STF admitia o ajuizamento do writ em face de decisões monocráticas proferidas por relator, apesar de não conhecer quando impetrados contra provimentos colegiados em geral [5], uma vez que, nas palavras do ministro Marco Aurélio, "enquanto houver, acima do Órgão que praticou o ato, outro que possa examinar a impetração, é cabível a medida", e do ministro Gilmar Mendes, acerca de que "a chave da abóboda do sistema de proteção judicial é a proteção judicial efetiva, é aquela cláusula que diz que nenhum direito ou ameaça a direito poderá estar imune à proteção judicial efetiva".

No entanto, a partir da análise do HC 86.548/SP, passou-se a aplicar analogicamente a Súmula 606 para não conhecer de habeas contra decisões de ministros da corte [6]. O tribunal tem como adequada a interposição de agravo interno para impugnar os pronunciamentos individuais dos ministros, mesmo quando se tratar de terceiro prejudicado, que poderá se valer do regramento do Código de Processo Civil presente o artigo 3º do diploma processual penal [7], reiterando a jurisprudência em ambos os sentidos: não cabe pedido de Habeas Corpus originário para o Tribunal Pleno contra ato de ministro ou outro órgão fracionário da corte [8].

Nada obstante, a matéria é sempre rediscutida pelo STF, a exemplo do que ocorreu no julgamento do HC 127.483, cujo empate na votação ensejou o conhecimento da impetração (decisão mais favorável ao paciente — artigo 146, parágrafo único, do RISTF), vencendo, na oportunidade, os ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski [9]. Mais recentemente, o Plenário decidiu, inclusive, que o ministro tido como autoridade coatora pode participar da votação que discute o cabimento do writ nessa hipótese [10].

Apesar disso, o entendimento de que não cabe Habeas Corpus contra ato de ministro do Supremo não foi modificado no âmbito da corte. No exame do HC 130.620 pelo Plenário Virtual [11], ao contrário do que suposto, o tribunal não assentou o cabimento de HC nessa hipótese, conquanto os ministros tenham acompanhado o voto do relator, que admitia a impetração, o fizeram somente quanto ao indeferimento da ordem, com ressalva acerca do seu cabimento.

A superação do óbice ao conhecimento do Habeas Corpus impetrado contra decisão de ministro da corte, com o consequente implemento da ordem de ofício, está relacionada à constatação de flagrante ilegalidade. Em obediência ao princípio da proteção judicial efetiva (artigo 5º, inciso XXXV, CF), a aplicação analógica da Súmula 606 pode ser afastada nas situações em que a decisão impugnada for teratológica, manifestamente ilegal ou abusiva. Portanto, ainda que a análise em sede de Habeas Corpus tenha cognição limitada, se, a partir dos elementos já produzidos e juntados aos autos, restar evidente a ilegalidade, deve­ se resguardar os direitos violados com a concessão da ordem.

Aliás, no HC 91.551/RJ, o Tribunal Pleno concedeu um HC de ofício voltado contra ato de integrante do Supremo, ministro Cezar Peluso, proferido no bojo do Inquérito nº 2.424/DF, em que determinada a instauração de inquérito policial para apurar o vazamento de dados sigilosos da investigação por parte de profissionais da advocacia [12]. Na ocasião, a maioria dos ministros atestou a impropriedade de os advogados figurarem como investigados considerada a ausência de indícios de participação em prática delituosa.

Assim, ainda que exista um entendimento consolidado acerca do entrave processual ao cabimento de HC contra ato de ministro, o contexto revelado pelas numerosas prisões decorrentes dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro impõe, em preservação ao direito fundamental à liberdade de locomoção, o reexame do tema pelos ministros da atual composição, por meio da afetação de um ou mais processos de Habeas Corpus para apreciação do Plenário do STF (artigo 21, IX, e 22 do RISTF).

Além disso, e antes mesmo da revisão dos precedentes acerca da inadequação do HC contra pronunciamento de ministro da corte, deve-se proceder à análise verticalizada da presença de manifesta ilegalidade ou teratologia no ato coator, vez que o fato de ter sido proferido por integrante do STF não tem o condão de afastar a incidência do artigo 654, § 2º, do CPP e do artigo 193 do próprio Regimento Interno.

Em suma, ainda que as decisões que resultaram no encarceramento preventivo dos 942 envolvidos nos atos antidemocráticos do dia 8 de janeiro possam ser submetidas ao crivo de legalidade e constitucionalidade do Plenário do STF por meio do agravo regimental (artigo 317 do RISTF), presente a competência do colegiado para o exercício da supervisão judicial da investigação criminal originária, a impetração de Habeas Corpus salvaguarda a liberdade de locomoção de maneira mais efetiva e célere.

O Habeas Corpus, instrumento jurídico processual mais eficiente em todos os tempos, sobrepõe-se a qualquer outra medida. Nesse cenário de decretação de numerosas prisões, ainda que decorrentes de fatos gravíssimos e repugnantes, torna-se ainda mais relevante ressaltar o seu papel na construção de um processo penal efetivamente acusatório e democrático.


[1] STF, HC 224.483/DF, rel. min. Carmen Lúcia, j. 3/2/2023.

[2] Art. 21, § 1º, RISTF: Poderá o(a) Relator(a) negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente inadmissível, improcedente ou contrário à jurisprudência dominante ou à súmula do Tribunal, deles não conhecer em caso de incompetência manifesta, encaminhando os autos ao órgão que repute competente, bem como cassar ou reformar, liminarmente, acórdão contrário à orientação firmada nos termos do art. 543-B do Código de Processo Civil.

[3] STF, HC 224.483/DF, rel. min. Carmen Lúcia, j. 3/2/2023; HC 224.125/DF, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 13/1/2023; HC 224.085/DF, rel. min. Ricardo Lewandowski, j. 13/1/2023.

[4] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. História e prática do habeas corpus. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1979. t. II. p. 194.

[5] STF, HC 85.099/CE, rel. min. Marco Aurélio, Pleno, j. 14/6/2006; HC­Agr 84.444/CE, rel. min. Celso de Mello, Pleno, j. 9/8/2007.

[6] STF, HC 86.458/SP, rel. min. Cezar Peluso, j. 16/10/2008.

[7] STF, HC 129.802/CE, rel. Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. 18/12/2015.

[8] STF, HC 105.959/DF, rel. min. Marco Aurélio, redator p/ acórdão min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. 17/2/2016.

[9] STF, HC 127.483/PR, rel. min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 27/8/2015.

[10] STF, HC 152.707/DF, Rel. Min. dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 18.04.2018. Com a superveniente perda do objeto, o Plenário assentou o prejuízo da impetração, não tendo havido discussão acerca do cabimento e da matéria de fundo.

[11] STF, HC 130.620/RR, rel. min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j. 4/5/2020.

[12] STF, HC 91.551/RJ, rel. min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j. 4/12/2008.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!