Opinião

Luz, câmera, ação: o roteiro criminológico do caso Tyrer Nichols

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25 de fevereiro de 2023, 6h34

A mídia [1] noticiou amplamente as agressões e a morte do cidadão Tyrer Nichols em Memphis, Estados Unidos, após uma simples abordagem de trânsito. Os vídeos impressionam pela agressividade dos atos policiais e pela ausência aparente de qualquer reação do abordado.

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Vale lembrar que as questões aqui elencadas não têm aprofundamento nas provas do caso supracitado, mesmo porque não tivemos acesso aos autos. Na verdade, o que se pretende aqui é fazer uma análise criminológica do evento, bem como discutir se as câmeras como parte dos uniformes dos policiais evita a criminalidade.

Sobre violência policial já tivemos a oportunidade de manifestar no artigo Um diálogo para combater a violência policial no Brasil [2], cuja proposta primordial era mudar a mentalidade e o giro metodológico da segurança pública perpassando da repressão para a prevenção, bem como no investimento de formação policial sem degradação moral.

Enfim, humilhar aspirantes nas academias de polícia não é sinônimo de boa formação e disciplina hierárquica. Pelo contrário, só estimula a vingança social.

De volta ao caso de Tyrer Nichols verifica-se um sem número de teorias criminológicas que poderiam ser lhe aplicadas, todavia, o foco será na Escola de Chicago e na prevenção situacional.

A primeira pelo mapeamento da criminalidade e sua distribuição na cidade (hot spots areas) que geram a formação de polícias especializadas em esquadrões para garantir segurança de vizinhanças, por exemplo.

A segunda pelo fato de que as câmeras nos uniformes de policiais propiciam o que denominamos prevenção situacional às avessas, pois, por incrível que possa parecer, a ideia é diminuir a oportunidade dos protetores da população cometer crimes contra os próprios cidadãos. Que ironia, não? Câmeras que protegem contra os protetores.

Neste diapasão, o caso Tyrer Nichols é paradigmático, já que descortina o mito de que a violência policial tem base estrutural somente em questões raciais (lembre-se que os atos foram praticados por cinco policiais negros), bem como traz a questão da funcionalidade dos chamados esquadrões especializados de combate em “áreas quentes”. As duas premissas esbarram nas teorias criminológicas já mencionadas: a prevenção situacional às avessas e a Escola de Chicago.

A prevenção situacional é também conhecida como teoria da oportunidade, isto é, tem por base três elementos: agente racional (criminoso pensa no custo/benefício da ação), disponibilidade do objeto e ausência de vigilância. Para atuar no primeiro e desmotivar o agente, há o controle sobre os outros dois fatores para diminuir as oportunidades. Por exemplo, a maior disponibilidade do objeto (self-service em lojas comerciais) induz o necessário aumento da vigilância, para incrementar custo da ação para o agente criminoso.

A colocação de câmeras nos uniformes dos policiais parte da mesma premissa, malgrado o discurso oficial seja outro.

 Há um descompasso entre o discurso retórico e a realidade fática. Oficialmente, aduz ser questão de melhoria no serviço prestado pela polícia, principalmente, no que tange à efetividade de produção de provas contra criminosos, além do aumento da segurança na prestação do serviço.

Todavia, a realidade é outra: diminuir a violência policial, isto é, vigiar o vigilante, com o fim especial de diminuir sua oportunidade de cometimento de delitos contra o cidadão no exercício da função pública. Daí a prevenção situacional às avessas: do ladrão para o agente público.  O caso de Tyrer comprova a assertiva e corrobora a importância das câmeras no efetivo policial, uma vez que se não fosse esse mecanismo de prevenção situacional às avessas, a versão oficial da morte seria totalmente diferente. Alguma dúvida? Tyrer teria sido espancado até a morte por uma reação hercúlea, desproporcional e incontrolável contra cinco policiais que foram obrigados a reagir sob pena de serem gravemente feridos.

O problema não é garantir a efetividade da prevenção situacional às avessas por meio da tecnologia implantada. A questão vai muito além! Ter que nos proteger de quem nos protege, ou seja, há uma inversão funcional grave na equação da segurança pública.

Por outro lado, a Escola de Chicago e suas teorias podem explicar outro fenômeno que permeia o caso de Tyrer.

Estatisticamente o crime é distribuído no território de maneira setorial e localizado, o que não deixa de comprovar, ao menos em tese, algumas premissas da Escola como a teoria dos círculos de Park, Burgess e McKenzie [3] que definem o desenvolvimento da cidade por meio de um conjunto de zonas ou anéis, como se fossem a formação de vários círculos concêntricos, sendo que nas zonas de transição destes círculos a criminalidade é mais pujante.

Tal fato leva a um policiamento maior nestas zonas de transição ou bairros específicos hodiernamente chamados de "zonas quentes" ou "hot spots areas". Isso foi levado a sério nos EUA, a ponto da polícia não só reforçar a vigilância e o policiamento ostensivo nessas áreas, como também criar esquadrões especializados neste trabalho ou nessas áreas, como o Scorpions (Street Crimes Operation to Restore Peace in Our Neighborhoods) da cidade de Memphis que consistia em uma operação de crimes de rua para restauração da paz nos bairros de alta criminalidade.

Vale lembrar que os policiais acusados de assassinar Tyrer pertenciam a esse esquadrão. Que coisa não? Restaurar a paz com agressões, gás de pimenta, socos e pontapés.

Mais uma vez o caso se torna emblemático e remete à última discussão travada nesse texto. Até que ponto esses esquadrões contribuem para a violência policial?

Lavagem cerebral dos membros, criação de lemas de guerra (faca na caveira, agora o bicho vai pegar, destemor, guerra contra as drogas, qualquer missão de qualquer maneira, etc.), treinamentos humilhantes e desumanos injetam no imaginário do agente público de que ele encarna o soldado de guerra que pode fazer qualquer coisa para garantir a "paz pública", ainda mais depois que sai da "jaula" (treinamento) com sede voraz de vingança contra o inimigo.

Tudo isso leva a algumas presunções perigosas: direito absoluto da polícia, os fins justificam os meios, todos que circulam nas "hot spot areas" são presumidamente criminosos, competição desenfreada por estatísticas e bandido bom é bandido morto.

Em suma, o caso Tyrer Nichols é mais uma página triste da violência policial mundial, no entanto, pode ser um paradigma para mudarmos algumas premissas consolidadas e justificadas por um discurso oficial míope que afasta os reais problemas da criminalidade.

Enquanto formarmos soldados de guerra e não policiais, infelizmente, o roteiro do caso Tyrer irá se repetir. Para que isso não ocorra, precisamos mudar nosso modelo teórico de polícia para concretizar os dizeres estampados nos carros da polícia de New York City : Courtesy, Professionalism, Respect (cortesia, profissionalismo e respeito).

Do contrário, não haverá luz, não adiantará câmeras e ação será inócua. E a película? Um belo roteiro de terror.

 


[3] PARK, Robert; BURGESS, Ernest. The city. Chicago: Chicago University Press, 1925.

Autores

  • é desembargador do TRF-6 (Tribunal Regional Federal da 6° Região), mestre e doutor em Direito. Professor da PUC-MG. Autor do livro Curso de Direito Penal Informático, pela Editora D’Plácido

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