Opinião

Liberdade econômica e livre iniciativa devem pautar liberação de jogos de azar

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22 de fevereiro de 2023, 13h12

O RE 966.177/RS põe à mesa do Supremo Tribunal Federal questão eminentemente político-constitucional relativa à atipicidade material da exploração ou do estabelecimento de jogos de azar, conduta tipificada no artigo 50 da Lei de Contravenções Penais (LCP).

O Plenário da Suprema Corte julgará em repercussão geral (Tema 924) se o dispositivo do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941, de Getulio Vargas, foi ou não recepcionado pela Constituição de 1988, se ofende a dignidade humana, a livre iniciativa, as liberdades fundamentais e o princípio da proporcionalidade, preceitos estampados basicamente no artigo 1º, inciso IV, artigo 5º, inciso XLI, e artigo 170 da Constituição.

O recurso foi interposto pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul contra acórdão da Turma Recursal Criminal dos Juizados Especiais Criminais local, que em controle difuso de constitucionalidade, reconheceu a ofensa à livre iniciativa, às liberdades fundamentais e ao princípio da proporcionalidade.

A verdade é que a questão transcende o direito positivo e os princípios penais constitucionais limitadores, pois remete à própria razão de ser do Direito e a aspectos psicológicos, históricos, políticos, sociais, culturais e econômicos. Remete fundamentalmente ao modelo de nação.

O Direito ostenta múltiplas faces no campo filosófico, dogmático e científico, indo desde o direito natural incorporado ao homem desde a sua concepção e nascimento  como o direito à vida, à liberdade de locomoção e à propriedade  ao direito como ordenamento normativo, mais estritamente ligado à Teoria do Estado.

Seja como for, conforme Dante Alighieri, inspirado em Tomás de Aquino, o Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem [1], onde a relação há de ser proporcional e cuja medida é o homem mesmo, pois é a dignidade da pessoa humana, conforme Luciano Feldens, o fundamento da ordem política e social [2], ou como decidiu o Tribunal Constitucional da Espanha, o ponto de arranque, o "prius" lógico e ontológico para a existência e especificação dos demais direitos [3].

O professor Miguel Reale expôs o Direito como uma estrutura social axiológico-normativa constituída de três elementos que não existem separados um dos outros, mas que coexistem em uma unidade concreta, implicando-se reciprocamente como elos do processo histórico-cultural, numa interação dinâmica e dialética. São eles o fato, o valor e a norma [4].

Quer dizer, o fenômeno jurídico é tridimensional, fruto de 1) um fato subjacente (político, econômico, geográfico, de ordem técnica etc.), 2) um valor, ligado à significação do fato, que inclina ou determina a ação da sociedade em determinado sentido; e 3) uma regra ou norma, que integra o fato ao valor.

Em matéria de Direito Penal, segundo Heleno Cláudio Fragoso, a indagação sobre as fontes primárias do direito, no sentido de fontes originárias do fenômeno jurídico (consciência do povo, vontade social preponderante, moral, costumes, natureza humana, mornas de cultura etc.), é metafísica, e deve ser transferida para o campo da Filosofia do Direito, querendo dizer que à Dogmática Jurídica somente interessam as chamadas fontes formais ou de cognição, que expressam o direito vigente, como vontade do Estado [5].

O fato é que a vontade do Estado, materializada através do Poder Legislativo, definirá de forma seletiva e privativa (CF, artigo 22, inciso I) a tutela penal apenas dos bens jurídicos mais sagrados e necessários à sobrevivência e manutenção da sociedade.

É consenso que a proibição de excesso é princípio geral de direito, de modo que, conforme José Sérgio da Silva Cristóvam, a satisfação do interesse público deve ser perseguida pelos meios idôneos, proporcionais, adequados, exigindo-se a existência de harmonia entre os meios empregados e os fins previstos na norma [6].

Assim, a formulação de leis deve observar os critérios de necessidade e de adequação na produção da norma, especialmente da norma incriminadora, pois todo excesso compromete a finalidade do exercício do poder, que, longe da ostentação dos suplícios no ritual penal, deve ter como bússola os primados da razoabilidade e da proporcionalidade.

Um tipo penal, como expressão da ultima ratio, somente terá validade se honrar os limites constitucionais, em especial a dignidade humana. Afinal, a criminalização de condutas impõe ônus à sociedade, já que, conforme Cesare Beccaria, quanto mais se estender a esfera dos crimes, tanto mais se fará que sejam cometidos, porque se verão os delitos multiplicar-se à medida que os motivos de delitos especificados pelas leis forem mais numerosos [7], restringe demasiadamente as liberdades do indivíduo e lhes oferece a ameaça contínua da reprimenda corpórea e material.

Em entrevista histórica ao ConJur, Eugenio Raúl Zaffaroni afirmou que a função do Direito Penal, hoje e sempre, é conter o poder punitivo, sendo que o poder punitivo não é seletivo do poder jurídico, e sim um fato político, exercido pelas agências do poder punitivo.

Nesse contexto, como ensina o professor Fernando Capez, a criação de tipos incriminadores deve ser uma atividade compensadora para os membros da coletividade [8], sobretudo se é sabido que uma sociedade persecutória é uma sociedade invasiva, panóptica, nocivamente vigilante e insolente diante das liberdades primárias do ser humano.

O rótulo meramente formal de ilicitude penal não torna materialmente criminosa uma ação humana, pois crime não é apenas aquilo que o legislador diz sê-lo (conceito formal), uma vez que nenhuma conduta pode, materialmente, ser considerada criminosa se, de algum modo, não colocar em perigo valores fundamentais da sociedade [9].

No caso da exploração de jogos de azar, é certo que a conduta em si não possui nenhuma lesividade social a fundamentar a intervenção penal, de modo que a sua proibição e sancionamento no artigo 50 da LCP afronta os preceitos constitucionais da dignidade humana, da livre iniciativa, do valor social do trabalho e das liberdades fundamentais.

Vale observar que, no restante do mundo, inúmeros grupos empresariais exploram a atividade sem os óbices de leis artificiais e atos administrativos inclinados ou à formação de reservas de mercado ou a outros interesses não republicanos e indefensáveis.

A título de exemplo, a BET365 GROUP LTD é uma empresa de apostas com sede no Reino Unido, fundada no ano 2000, possui mais de 19 milhões de clientes em quase 200 países, emprega mais de 3.000 pessoas, é o maior empregador privado na cidade de Stoke-on-Trent, cidade do condado de Staffordshire, na região de West Midlands, na Inglaterra, e recebe cerca de 230 milhões de visitantes do mundo inteiro a cada mês, onde cerca de 40% são brasileiros, o que por si só indica se tratar de conduta socialmente inofensiva e aceita no Brasil e no mundo.

A liberdade econômica e a livre iniciativa são a tônica nas nações desenvolvidas e prósperas, onde atua a verdadeira e salutar livre concorrência, que, diferentemente daqui, não se intromete na livre circulação da riqueza através da exploração de jogos de azar.

Segundo Ludwig von Mises, renomado economista liberal, a nação mais próspera será aquela que não tiver colocado obstáculos ao espírito da livre empresa e da iniciativa privada[10], fato amplamente demonstrado em 2018 pelo Índice da Heritage Foundation após mais de duas décadas de estudos sobre o nível de liberdade econômica das nações e dos seus resultados de longo prazo.

Não em vão que a nação mais rica do mundo, os Estados Unidos da América, acolhe a mundialmente conhecida Las Vegas, paraíso do gambling e das apostas em cassinos.

Ainda que tardia e timidamente, felizmente o Brasil começou a girar o leme para outra direção, pois 1) a Lei n. 13.756/2022 legalizou as apostas de quota fixa [11], e 2) o Senado Federal aprovou o PL nº 442/1991, que se encontra na iminência de se tornar lei permissiva da exploração de jogos de azar no Brasil nas demais modalidades, incluindo cassinos, bingos, jogo do bicho e apostas esportivas.

Tais fatos têm a sua importância: primeiro porque a atividade legislativa já é a etapa final da transformação da consciência coletiva e da percepção popular acerca das liberdades individuais, segundo porque confirmam institucionalmente a ausência de potencial ofensivo na exploração de jogos de azar.

Como se vê, não é a lesividade social da conduta que fundamenta a norma incriminadora do artigo 50 da LCP, não recepcionada pela Carta Magna, mas sim o preconceito contra o trabalho, contra a livre iniciativa, o desejo por oportunidades garantidas, por reservas de mercado e por concentração de poder e riqueza no estamento burocrático.

Instituído por um Decreto-Lei do governo ditatorial de Getulio no ano de 1941, cujo espírito autoritário não foi recepcionado pela Constituição de 1988, o artigo 50 da LCP apenas foi talhado na mania de burocracia limitante das liberdades naturais do homem, impondo sacrifícios desproporcionais aos indivíduos e à coletividade, afrontando os princípios e valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, as liberdades fundamentais e os princípios constitucionais penais limitadores, hauridos do artigo 1º, inciso IV, artigo 5º, incisos XXXIV, XLI, e do artigo 170 da Constituição Federal.

Como dizia Tocqueville, acho que em qualquer época eu teria amado a liberdade; mas na época em que vivemos, sinto-me propenso a idolatrá-la [12].


[1] ALIGHIERI, Dante. Monarquía. Traducción por Laureano Robles Carcedo y Luis Frayle Delgado. Madrid: Tecnos, 1992. p. 36-37.

[2] FELDENS, Luciano. A constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2005. p. 145.

[3] ESPANHA. Tribunal Constitucional de España. STC nº 53 de 11 de abril de 1985 (BOE n. 119, de 18 de maio de 1985).

[4] ALIGHIERI, Dante. Monarquía. Traducción por Laureano Robles Carcedo y Luis Frayle Delgado. Madrid: Tecnos, 1992. p. 36-37.

[5] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 64-65.

[6]  CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Colisões entre princípios constitucionais. Curitiba: Juruá, 2006. p. 215.

[7] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Tradução: Ridendo, Castigat Mores. São Paulo: Hemus, 1994. p. 191.

[8] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral. Sâo Paulo: Saraiva, 2010. p. 39.

[9] Op. Cit. p. 45.

[10] MISES, Ludwig von. A Mentalidade Anticapitalista. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. p. 12.

[11] Artigo 29. Fica criada a modalidade lotérica, sob a forma de serviço público exclusivo da União, denominada apostas de quota fixa, cuja exploração comercial ocorrerá em todo o território nacional (…) §2º A loteria de apostas de quota fixa será autorizada ou concedida pelo Ministério da Fazenda e será explorada, exclusivamente, em ambiente concorrencial, com possibilidade de ser comercializada em quaisquer canais de distribuição comercial, físicos e em meios virtuais.

[12] TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracy in America. v. 2. Cambridge: Sever and Francis, 1864. p. 397.

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