Opinião

Acordado x legislado: Tema 1.046 do STF e primeiros acórdãos

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22 de fevereiro de 2023, 11h19

Após o julgamento com repercussão geral do Tema 1.046 pelo Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 1.121.633, começam a vir à lume os primeiros acórdãos do Tribunal Superior do Trabalho, tratando de questões relacionadas à sobreposição do que é negociado em acordos e convenções coletivas sobre o que está legislado.

Ao que parece, contudo, os acórdãos do TST não estão seguindo as diretrizes do julgado da Suprema Corte.

Isso porque, ficou decidido no julgamento do STF que são constitucionais os acordos e as convenções coletivas, que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que sejam respeitados os direitos absolutamente indisponíveis.

Para compreensão dessas diretrizes do STF, o voto condutor do ministro relator, Gilmar Mendes, disponível aqui, que foi ratificado, ipsis litteris, na assentada de 2/6/2022, aponta algumas premissas necessárias para sistematização desse tema: o acordado sobre o legislado.

Segundo o relator, a dificuldade seria estabelecer o patamar civilizatório mínimo, que afastaria a negociação coletiva diante dos direitos absolutamente indisponíveis.

Destacou o relator que a Lei 13.467/2017 acrescentou à CLT dois dispositivos que definiram, de forma positiva e negativa, os direitos passíveis de negociação coletiva, sendo o artigo 611-A, que prevê a prevalência da convenção coletiva e do acordo coletivo de trabalho sobre a lei, e o artigo 611-B da CLT, que lista as matérias que não podem ser objeto de transação.

Contudo, como a ação em julgamento pela Suprema Corte não discutiu a constitucionalidade dos artigos 611-A e 611-B da CLT, o ministro relator entendeu que os limites da negociação coletiva estão contidos na própria jurisprudência consolidada do STF e do TST em torno do tema.

Assim, o voto analisado, proferido pelo ministro relator, estabeleceu, não exaustivamente,  com base na jurisprudência do próprio STF e do TST, que é possível dispor, em acordo ou convenção coletiva, ainda que de forma contrária à lei, aspectos relacionados a: 1) remuneração (redutibilidade de salários, prêmios, gratificações, adicionais, férias); e 2) jornada (compensações de jornadas de trabalho, turnos ininterruptos de revezamento, horas in itinere e jornadas superiores ao limite de dez horas diárias, excepcionalmente nos padrões de escala doze por trinta e seis ou semana espanhola).

E, para fins de sistematização, o voto do ministro Gilmar Mendes estabeleceu uma comparação entre os principais julgados do STF e do TST, antes e após a promulgação da Reforma Trabalhista, envolvendo o tema do acordado sobre o legislado, com destaque nesse artigo, as Súmulas 85, VI, e, 423, ambas do TST. 

Conforme se pode observar, o sistema de proteção e prevalência da autonomia privada coletiva encontra os seus limites nos princípios e normas que compõem o ordenamento jurídico como um todo, como, por exemplo, a vedação da compensação de jornada em atividade insalubre, ainda que estipulada em norma coletiva, sem a necessária inspeção prévia e permissão da autoridade competente, como exige artigo 60 da CLT.

Aliás, esse entendimento sustentado pelo STF já havia sido externado antes da decisão proferida no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) nº 1.121.633, como se vê em voto da lavra da ministra Rosa Weber, no julgamento de Reclamação, em que já se considerava que ausência de inspeção prévia e permissão da autoridade competente, na forma do art. 60 da CLT, invalidaria o acordo de compensação de jornada, inclusive, para a adoção da jornada 12×36. Confira-se:

"5. Com efeito, entendo que a controvérsia objeto da decisão reclamada não cuida da supressão ou da restrição de direito trabalhista não assegurado na Constituição Federal. Diversamente, trata-se de condenação estipulando, com base na legislação infraconstitucional conformadora de norma expressa da Constituição ('artigo 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança') a invalidade da adoção da jornada 12×36, tendo em conta o trabalho em condição insalubre, à míngua da autorização prevista no artigo 60 da CLT.
6. Nessa ordem de ideias, trata-se de matéria relacionada com os núcleos fundamentais constitucionalmente assegurados da Segurança e Saúde do Trabalho. Cito, a esse respeito, excerto do voto condutor do ministro Luís Roberto Barroso no RE 590.415-RG, no sentido de que não sujeitos à negociação coletiva os direitos que correspondam a um 'patamar civilizatório mínimo', como as normas de saúde e segurança do trabalho:
(…)
7. Nesse contexto, não diviso a existência de estrita aderência entre os fundamentos da decisão reclamada e o conteúdo do paradigma de controle invocado pelo reclamante, a inviabilizar o cabimento da reclamação."
(STF
 Rcl: 50845 MG 0065688-82.2021.1.00.0000, relator: ROSA WEBER, Data de Julgamento: 03/12/2021, Data de Publicação: 07/12/2021).

Já em relação à limitação a oito horas diárias na jornada de turnos ininterruptos de revezamento, pactuada por meio de negociação coletiva, o ministro Dias Toffoli decidiu, em Reclamação Constitucional, posteriormente ao resultado do julgamento do Tema 1.046 do TST, que a flexibilização expressamente permitida na parte final do inciso XIV do artigo 7º da CF/88 está limitada pela duração de oito horas diárias. Confira-se:

"No que pertine aos turnos ininterruptos de revezamento, a controvérsia que exsurge dos autos em referência na presente reclamação diz respeito à flexibilização de direito expressamente previsto na Constituição acerca do turno ininterrupto de revezamento ('jornada de seis horas'), presente o debate constitucional acerca da interpretação dada ao artigo 7º, XIV, da CF/88 pelo TRT da 8ª Região, à luz do artigo 7º, XIII, da CF/88, tendo em vista a constatação, pelo órgão regional, do descumprimento da jornada prevista.
Em outras palavras, a controvérsia não concerne a saber se o direito previsto em lei trabalhista pode ou não ser flexibilizado por acordo coletivo (Tema 1.046 RG), mas se a flexibilização expressamente permitida na parte final do inciso XIV do artigo 7º da CF/88 está limitada pela duração de oito horas diárias consignada para a jornada de trabalho normal no inciso XIII do artigo 7º da CF/88.
Com efeito, entendo que a controvérsia constitucional que se revela nos autos em referência na reclamatória (habitualidade das horas extras x turnos ininterruptos) não é alcançada pelo Tema 1.046 da RG, razão pela qual reputo não haver estrita aderência entre a controvérsia, objeto do processo originário, e o tema submetido à repercussão geral." (STF  Rcl: 56784 PA  0130327-75.2022.1.00.0000, relator: DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 23/11/2022, 1ª Turma, Data de Publicação: 24/11/2022).

Pois bem. Dadas essas diretrizes, extraídas das decisões do STF, parece açodado o entendimento do v. acórdão proferido pela 4ª Turma do TST, de relatoria da ministra Maria Cristina Peduzzi, proferido em 11/10/2022, que entendeu ser dispensável a autorização da autoridade competente para compensação de jornada em atividade insalubre, com ementa nos seguintes termos:

"RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DA LEI Nº 13.467/2017  REGIME 12X36  ATIVIDADE INSALUBRE  NORMA COLETIVA  AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO MINISTERIAL  DIREITO INFRA-CONSTITUCIONAL DISPONÍVEL  TEMA 1046  AUSENTE A TRANSCENDÊNCIA 1. Antes da decisão do E. Supremo Tribunal Federal no Tema 1046 (RE 1121633) e da vigência da Reforma Trabalhista de 2017, a jurisprudência deste Eg. Tribunal Superior do Trabalho firmou-se no sentido de que os regimes de compensação em condição insalubre, ainda que firmados por norma coletiva, exigiam autorização ministerial, nos termos do artigo 60, caput, da CLT. Um dos pilares da fundamentação do referido entendimento residia na importância de prevalência do legislado sobre o negociado. 2.O E. STF fixou a tese no Tema 1046 de que 'São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis'. 3.É possível reconhecer que a jornada em regime de 12×36, ainda que em ambiente insalubre, não configura direito absolutamente indisponível, podendo ser negociado coletivamente, afastando a necessidade legal de autorização ministerial, sendo, inclusive, prática corriqueira e tradicional nos ambientes hospitalares. Recurso de Revista não conhecido." (TST — RR: 00007894220185230021, relator: Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Data de Julgamento: 11/10/2022, 4ª Turma, Data de Publicação: 14/10/2022).

Em relação à norma coletiva prevendo o trabalho em turnos de revezamento acima da 8ª hora diária, contrariando o entendimento do STF, também parece açodado o entendimento do v. acórdão proferido pela 8ª Turma do TST, de relatoria do ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, publicado em 23/9/2022, que sustentou ser constitucional a jornada de 8h48min diárias considerando a compensação de folgas aos sábados:

"PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI Nº 13.015/2014. ACÓRDÃO DO REGIONAL ANTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI 13.467/2017. I – AGRAVO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. TURNOS ININTERRUPTOS DE REVEZAMENTO. COMPENSAÇÃO DE JORNADA. PREVISÃO EM NORMA COLETIVA. (…). III – RECURSO DE REVISTA. TURNOS ININTERRUPTOS DE REVEZAMENTO. COMPENSAÇÃO DE JORNADA. PREVISÃO EM NORMA COLETIVA. 1. A causa versa sobre a validade de norma coletiva que previu jornada de trabalho superior a oito horas diárias em turnos ininterruptos de revezamento. 2. É entendimento desta c. Corte Superior que o elastecimento da jornada de trabalhador em turno ininterrupto de revezamento, por norma coletiva, não pode ultrapassar o limite de oito horas diárias (Súmula nº 423 do c. TST). 3. Contudo, não há como ser aplicado esse entendimento quando o Tribunal Regional evidencia a existência de norma coletiva prevendo o trabalho, em turnos de revezamento, de 8h48min diários, tendo como compensação a folga no sábado. 4. Isso porque o caso em análise não diz respeito diretamente à restrição ou à redução de direito indisponível, aquele que resulta em afronta a patamar civilizatório mínimo a ser assegurado ao trabalhador, mas apenas à 'compensação das horas extras deferidas com a gratificação de função percebida'. 5. Também merece destaque o fato de que a matéria não se encontra elencada no artigo 611-B da CLT, introduzido pela Lei 13.467/2017, que menciona os direitos que constituem objeto ilícito de negociação coletiva. 6. Impõe-se, assim, o dever de prestigiar a autonomia da vontade coletiva, sob pena de se vulnerar o artigo 7º, XXVI, da CLT e desrespeitar a tese jurídica fixada pela Suprema Corte, nos autos do ARE 1121633 (Tema 1046 da Tabela de Repercussão Geral), de caráter vinculante: 'São constitucionais os acordos e convenções coletiva que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis'. 7. Reforma-se, assim, a decisão regional para afastar da condenação o pagamento como horas extraordinárias daquelas trabalhadas até o limite de 8h48min por dia, nos termos da norma coletiva. Recurso de revista conhecido por violação do artigo 7º, XXVI, da Constituição Federal e provido."
(RR-11879-58.2016.5.03.0026, 8ª Turma, relator ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 23/09/2022).

A rigor, ainda que por via oblíqua, o que v. acordão acima referido ofende o artigo 7º, inciso XIV da Constituição Federal, que limita a jornada de trabalho a 8 horas diárias em turnos ininterruptos de revezamento, o que constitui direito absolutamente indisponível, conforme as referidas decisões do STF.

Assim sendo, a análise desses primeiros acórdãos proferidos pelo TST revela que seus entendimentos destoam das diretrizes extraídas dos julgamentos do STF, notadamente do Agravo (ARE) nº 1121633, cujos conflitos interpretativos poderão ensejar mais discussões, mais recursos, e, consequentemente, insegurança jurídica aos jurisdicionados.

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