Opinião

Lei 14.532/2023 e equiparação do delito de injúria racial ao crime de racismo

Autor

  • Rodrigo Gomes dos Santos

    é ex-assessor jurídico do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro advogado criminalista pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes-RJ e professor de Processo Penal.

19 de fevereiro de 2023, 15h18

É cediço que a recente inovação legislativa promovida pela Lei 14.532/2023 teve como desiderato atender a um mandado constitucional de criminalização (artigo 5º, inciso XLII, da CRFB/88) e, por conseguinte, recrudescer o combate à prática do racismo, antiquíssimo e conhecidíssimo flagelo social, redimensionando o seu preceito secundário e etiquetando-o como inafiançável e imprescritível.

Aliás, impende consignar que a imprescritibilidade da "injúria racial" já havia sido assentada em momento pretérito, mais precisamente por ocasião do emblemático julgamento do Habeas Corpus nº 154.248 [1], equiparando-a, na oportunidade, ao crime de racismo, por analogia.

Com o advento da Lei 14.532/23, pode-se assegurar que, agora, a "injúria racial" é uma infração penal inafiançável e, mais do que nunca, imprescritível, afastando-se quaisquer críticas acerca da constitucionalidade do expediente hermenêutico adotado pelo Supremo Tribunal Federal, o qual, na visão da doutrina garantista negativa [2] (proibição do excesso, proteção do indivíduo frente ao poder do Estado), culminou em analogia in malam partem.

Hodiernamente, o comportamento espúrio denominado “injúria racial”, por força do princípio da continuidade normativo-típica, encontra-se insculpido no artigo 2º-A, da Lei 7.716/89, cuja pena passa de um a três anos de reclusão (artigo 140, §3º, do Código Penal) para, doravante, dois a cinco anos de reclusão, e multa, com uma causa de aumento de pena de metade, caso seja perpetrado em concurso de duas ou mais pessoas, consoante se infere do parágrafo único da anunciada norma penal incriminadora.

Contudo, vale esclarecer que o artigo 140, §3º, do Código Penal foi derrogado, pois a "injúria preconceituosa", ou seja, aquela consistente na utilização de elementos atinentes à religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência permanece preservada no mencionado estatuto repressivo.

Outrossim, em relação à "injúria preconceituosa", que, consoante consignado no parágrafo anterior, permaneceu hígida no tipo do artigo 140, §3º, do Código Penal, para que seja possível compreender o que, de fato, aconteceu, é de fundamental importância abeberar-se da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, bem como da teoria geral do direito e atentar que, diferente da ab-rogação, a derrogação representa a revogação parcial do ato normativo (primário ou secundário): parte da norma continua em vigor, enquanto a outra parte é extinta em decorrência da publicação de uma nova lei que expressamente declare revogado determinados dispositivos ou quando ocupa-se da mesma matéria, porém de forma distinta, sendo esta última hipótese o real intuito da Lei 14.532/23.

Trata-se, portanto, de um providencial avanço legislativo na luta contra as mais variadas formas de assepsia social, evitando-se, por intermédio do ainda irrefutável Direito Penal, a subcategorização de seres humanos.

Até aí… tudo bem (????). Nem tanto! Explico:

É que o legislador, malgrado muito bem intencionado e no afã de combater contundentemente a discriminação, em obediência ao artigo 3º, inciso III, da CRFB/88 [3], e objetivando evitar o retrocesso social (Efeito Cliquet) [4], bifurcou o tratamento das injúrias preconceituosa e racial, resultando em uma verdadeira logomaquia, uma ululante contradição, pois, repise-se, a ofensa contra a honra subjetiva consubstanciada na utilização de elementos concernentes à religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência (preconceituosa), na visão parlamentar, é merecedora de pena de reclusão de um a três anos, cuja ação penal é condicionada à representação, enquanto que a ofensa à dignidade ou decoro de alguém, em razão da raça, cor, etnia ou procedência nacional reclama uma pena mais alta (reclusão de dois a cinco anos), além de ter se tornado, daqui em diante, uma infração penal inafiançável e imprescritível, de ação penal pública incondicionada.

Avaliando de forma percuciente e parcimoniosa, ainda que de forma sútil, o legislador estabeleceu, com exceção do "elemento referente à religião" (salvo no caso da famigerada "fé cega"), uma hierarquização entre os próprios hipervulneráveis: senil e a pessoa portadora de deficiência são menos dignos de tutela do que negros, afrodescendentes e indivíduos de outras etnias ou procedência nacional. Ou seja, há, no caso, uma espécie de subcategorização baseada no suposto grau de dignidade dos hipervulneráveis. Sustenta-se, aqui, uma "autofagia da classe dos hipervulneráveis".

Ora, implementou-se, então, a seleção dos preferidos dentre os socialmente preteridos? Dos desfavorecidos dentre os desfavorecidos? Das minorias dentre as minorias? Dos ultravulneráveis dentre os hipervulneráveis? É possível esse afunilamento hermenêutico sob a égide de uma Constituição da República que repudia a discriminação, seja lá qual for a sua dimensão ou profundidade? A resposta só pode ser negativa.

Esclareça-se que hipervulneráveis são aqueles indivíduos que ostentam uma fragilidade acentuada em razão de uma condição peculiar, que pode ser a idade, o grau de instrução, condição social, econômica ou uma deficiência que diminua a aptidão cognitiva. Essa "bifurcação" no tratamento legislativo dispensado às espécies de injúrias cujas vítimas são, na sua maioria, pessoas hipervulneráveis gerou uma discriminação velada e assaz perniciosa.

Para ser mais específico, o que se anseia demonstrar é que a efetiva repercussão anti-isonômica da nova lei, conquanto não almejada pelos parlamentares, insere-se no contexto da teoria do impacto desproporcional, da qual o STF, por exemplo, se valeu, quando do julgamento da ADI 4.424 [5], cuja utilidade é a de se aferir com densidade e, consequentemente, impedir que toda e qualquer medida, inclusive legislativa, produza, do ponto de vista pragmático, efeitos negativos sobre determinados grupos ou indivíduos, ainda que não haja a intenção de discriminar. Vejamos:

"A teoria do impacto desproporcional visa combater essa discriminação indireta e consiste na ideia de que toda e qualquer prática empresarial ou política governamental, de cunho legislativo ou administrativo, ainda que não provida de intenção discriminatória no momento de sua concepção, deve ser condenada por violação do princípio constitucional da igualdade material se, em consequência de sua aplicação, resultarem efeitos nocivos de incidência especialmente desproporcional sobre certas categorias de pessoas", como a propósito mencionado pelo C. STF na ADI 4424 [6].

Aprofundando ainda mais o tema e as suas subespécies, vale assinalar que a discriminação pode ser direta ou indireta, sendo esta última a que melhor se amolda ao imbróglio que ora se enfrenta, dada a sutileza e a latência do discrímen, da discrepância entre o rol dos hipervulneráveis.

A discriminação indireta, também chamada de discriminação invisível, é aquela que nasce de critério aparentemente neutro, entretanto, se aferida in concreto, ocasiona um impacto desproporcional sobre o grupo de hipervulneráveis (que é o caso em tela), consoante se extrai da Convenção nº 111 da OIT [7], e é aqui que reside do ponto nevrálgico. Veja:

Diante da prática contumaz dos crimes deste jaez, os quais são noticiados diuturnamente nas mídias e emissoras mais populares, a expectativa que se criou em torno do órgão legiferante foi a de que se mantivesse, no artigo 140, §3º, do Código Penal, tão-somente da injúria consistente na utilização de elementos referentes à religião, transfundindo os demais comportamentos espúrios (injúria contra pessoas deficientes ou idosas) para o a Lei 7.716/89, por reverberação ou arrastamento, acompanhando a injúria racial. Com isso, a isonomia material e o prestígio ao princípio da vedação da proteção deficiente estariam consagrados, pois muito mais do que eficaz, a aplicabilidade da lei penal deve ser abrangente, factível, democrática e efetiva, precipuamente em um país assolado pela preconceito e discriminação de todos os gêneros.

Não haveria óbice, diga-se de passagem, que se introduzisse a injúria preconceituosa na lei de racismo, uma vez que o conceito de "racismo" é deveras abrangente. Rememore-se que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade Por Omissão nº 26 e do Mandado de Injunção nº  4733 [8], equiparou a homofobia ao crime de racismo.

Ademais, conquanto o legislativo não optasse pela mudança topográfica, poderia o parlamento, preservando o artigo 140, §3º, do Código Penal, qualificar a reprimenda estatal do crime de injúria preconceituosa, exacerbando o seu respectivo preceito secundário, tal qual foi feito com a injúria racial, modificando, ainda, a natureza da ação penal, que passaria de condicionada à representação a incondicionada.

Mas não foi dessa vez… Talvez em um próxima oportunidade, quando o legislativo produzir desnecessariamente outra norma, com o fito de reparar o equívoco ("desigualdade invisível"), em absoluto respeito ao eminente Ruy Barbosa, que, em sua Oração Aos Moços, obtemperou: "A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta igualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real".

Essa "colcha de retalhos legislativa" denomina-se "Inflação Legislativa", caracterizando-se pela "inimaginável, multifacetária e abismal produção de leis realizada pelo parlamento" [9].

Dessarte, conclui-se que o legislador deu um passo para frente e dois para trás, porquanto promoveu, sim, um desequilíbrio aparentemente sutil, mas de impacto desproporcional, na tutela dos hipervulneráveis, na medida em que ignorou os princípios da vedação da proteção deficiente (garantismo positivo) [10], da proibição de discriminação e da vedação ao retrocesso social, arcabouço hermenêutico relevantíssimo para nortear o devido processo legislativo, impactar positivamente na sociedade e, por derradeiro, contribuir para o avanço no processo civilizatório.


[1] Habeas Corpus nº 154.248

[3] Artigo 3 da CRFB/88 Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (…) III- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;  (…)

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  • é ex-assessor jurídico do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, advogado criminalista, pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes-RJ e professor de Processo Penal.

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