Opinião

Necessária defesa da autonomia do Estado

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17 de fevereiro de 2023, 19h18

É fundamental que o novo governo inclua entre suas prioridades a defesa da autonomia do Estado brasileiro e, por consequência, a garantia da soberania nacional. Um Estado autônomo tem a prerrogativa de decidir sobre sua própria organização política, social, militar e econômica. Esse é o conceito de soberania nacional, fundamento da República Federativa do Brasil e que se sustenta graças a uma série de conquistas da nação ao longo de sua existência. Uma delas é a constituição da Base Industrial de Defesa (BID), grupo formado por mais de 1.000 empresas que têm como objetivo a constante atualização tecnológica da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Entre elas, merece especial destaque o segmento aeroespacial, representado pela Associação das Indústrias Aeroespaciais do Brasil (Aiab).

Elas resguardam a autonomia das Forças Armadas e, portanto, do Estado brasileiro, sem a qual nunca será possível ter certeza de que equipamentos que funcionam adequadamente quando testados em tempo de paz, funcionarão também em tempos de guerra. No conflito das Ilhas Malvinas, por exemplo, na década de 1980, mísseis importados pela Argentina não funcionaram durante o conflito. De lá para cá, as ameaças aumentaram substancialmente no contexto da guerra cibernética, que representa um dos domínios do teatro de operações de conflitos modernos.

Desde o segundo semestre de 2022, esse ecossistema vem sofrendo grave deterioração, sem precedentes na história da BID. Profissionais de empresas que a compõem estão sendo capturados para assumir cargos na Boeing. Altamente qualificados, formados em instituições públicas brasileiras de excelência, custeadas pelo contribuinte brasileiro, eles foram subtraídos principalmente do segmento aeroespacial. Participavam de projetos estratégicos nas áreas de Defesa e Segurança e detinham conhecimento essencial à soberania nacional devido ao acesso a informações qualificadas e dados classificados. É urgente estancar esse processo.

A Aiab defende a livre iniciativa, mas ela não é um princípio absoluto. Está subordinado a imperativos definidos no artigo 170 da constituição, como a soberania nacional e o tratamento favorecido para empresas brasileiras de pequeno porte, as maiores prejudicadas pela Boeing. A livre concorrência e a busca pelo pleno emprego, dois outros imperativos constitucionais, não podem sobrepujar os demais. Eles devem coexistir em harmonia e equilíbrio, mas as ações da Boeing abalam tal estabilidade. O que está em jogo é algo superior a qualquer interesse individual ou coletivo.

Assim, a Aiab uniu-se à Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde) para ingressar em juízo contra a Boeing por meio de uma Ação Civil Pública (ACP). Nosso objetivo é interromper as contratações até que sejam estabelecidas condições que preservem a soberania nacional. Caso nada fosse feito, cerca de 285 mil empregos diretos e 850 mil empregos indiretos, gerados pelas empresas da BID, estariam ameaçados no médio prazo.

O próprio Estados Unidos, berço do liberalismo econômico, protege de maneira zelosa seu patrimônio industrial, essencial para sua soberania. Uma ordem executiva da Casa Branca de 2021 [1] ampliou, em pleno século 21, instrumentos do Buy American Act de 1933, originariamente criado para enfrentar os desafios do período da grande depressão americana. Aquisições de produtos de ferro e aço tiveram a exigência de conteúdo nacional majorado de 50% para 95%. Tal ato permite, ainda, sobrepreços de 50% em favor do produto nacional nas aquisições do seu Departamento de Defesa.

Foram décadas de esforço coletivo nacional e vultosos investimentos públicos e privados para construir a indústria sólida de hoje. O Brasil é um dos poucos países fora do eixo Estados Unidos-Europa que detém a competência para projetar, produzir e certificar aeronaves competitivas globalmente. As exportações são expressivas, mas as instituições brasileiras são as principais clientes da BID, e o atendimento de suas necessidades depende da saúde dessas empresas.

Para se ter uma ideia da importância desses profissionais, é preciso traçar um panorama histórico sobre a formação deles. O ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), instituição pública de excelência no setor, formou 1.644 engenheiros aeronáuticos em 72 turmas desde a sua criação, na década de 1950. Considerando o número de aposentados (800) e de profissionais que deixaram a profissão por outros motivos (422), restariam apenas 422 engenheiros ativos hoje. Porém, como são necessários, no mínimo, dez anos de especialização e atuação para sua formação, teríamos apenas 308 profissionais [2] disponíveis no mercado.

É importante deixar claro ainda que, mesmo a captura de uma pequena quantidade desses engenheiros, pode produzir grandes prejuízos. Em um time de engenharia, como no futebol, nem todos fazem de tudo. Assim como um goleiro não joga na lateral ou no ataque, um engenheiro especializado em propulsão também não atua em aerodinâmica ou aviônica. Mas sem goleiro o time está perdido.

Com a ACP, buscamos promover um debate de alto nível com as instituições de Estado e com a sociedade para criação de mecanismos para retenção de profissionais brasileiros altamente especializados no país. A Advocacia-Geral da União (AGU) e o Ministério da Defesa, as legítimas instituições para a tutela da soberania nacional, já foram acionadas pelo juiz para se manifestarem sobre o tema, o que deve ser feito até meados de fevereiro. A expectativa é que o assunto seja tratado pela União com o devido zelo que um tema dessa natureza requer.

[2] A quantidade é seguramente menor, em virtude de uma parcela não desprezível exercer atividade em ecossistema aeronáutico no exterior.

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