Opinião

Laços entre as jurisdições constitucionais da África do Sul e do Brasil (parte 1)

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17 de fevereiro de 2023, 11h01

Introdução
A jurisdição constitucional brasileira, sua teorização e prática, bem sabe a ontem. Ainda pouco sabe a amanhã. O futuro já se mostra pleno de interrogações. É possível que o Poder Judiciário promova, a um só tempo, a implementação de direitos fundamentais sociais e o protagonismo das pessoas ou de grupos que serão destinatárias e construtoras de prestações dos poderes públicos? Isso pode ser feito por processos de deliberação pública e com a participação direta das partes?        

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O presente texto apresenta-se resposta afirmativa às questões formuladas. Para tanto, será apresentada a experiência de alguns casos paradigmáticos julgados pela Corte Constitucional da África do Sul, na qual ela desenvolveu o instituto do compromisso significativo (meaningful engagement). Expõe-se que não é qualquer compromisso que poderá ser considerado um compromisso significativo[1]. Destaca-se, também, o fomento à democracia deliberativa pela técnica, porquanto se exige o engajamento efetivo do Poder Público e dos cidadãos para a resolução do problema e na melhoria da política pública. Trata-se da combinação do comprometimento de cidadãos e do Estado na implementação de direitos sociais de forma democrática, tornando o princípio democrático inscrito na Constituição sul-africana, forma e conteúdo da atividade pública.

A escolha de tais decisões não se deu por acaso. Ela ocorreu por duas razões. Trata-se de um exercício de direito constitucional comparado, a partir do qual serão apresentadas decisões proferidas em casos que envolvem o direito à moradia e a discussão sobre despejos numa sociedade ainda marcada pelas múltiplas violências do regime brutal de segregação racial e espacial conhecido como apartheid. Em que pese o racismo no Brasil não ter tido esse grau de institucionalização em anos recentes, o país ainda é marcado pelas chagas da escravidão, cujas consequências estão presentes no dia a dia, no racismo estrutural aqui presente[2]. Dos dois lados do Atlântico a segregação racial-espacial soma-se a outras formas de desigualdades e preconceitos, marcando e restringindo a liberdade e a dignidade de pessoas e de grupos.

Além dessas — desditosas — proximidades, e para além da curiosidade, há outras político-jurídicas que estão a autorizar a apresentação da experiência sul-africana para estimular futuras reflexões sobre o Brasil.

A Constituição sul-africana de 1996 é uma Constituição democrática, centrada na dignidade, na liberdade e na igualdade das pessoas, que prescreve direitos fundamentais sociais, inclusive o direito à moradia[3]. Foi esse documento normativo que alçou a Corte Constitucional condição relevantíssima na vida institucional[4].

Conjugada a dimensão histórico-contextual com a dimensão normativa, há de se reconhecer que a África do Sul enfrenta, como o Brasil, a dificuldade de implementar direitos sociais em situação de enormes desigualdades sociais, marcada pela escassez de recursos e a concentração de renda. Tais razões justificam a escolha do tema.

Constituição do compromisso significativo: cinco precedentes
Serão apresentados cinco casos nos quais a Corte Constitucional sul-africana afirmou a necessidade de proteção do direito fundamental à moradia e elaborou, paulatinamente, critérios para que sua implementação fosse mais democrática, de modo a estabelecer requisitos tanto para a realização de despejos de grupos vulneráveis, como para a elaboração e a implementação de políticas públicas. Ao assim decidir, contribuiu para a reforma incremental de políticas públicas e de estruturas sociais.

 O instituto analisado em seus limites e possibilidades será o meaningful engagement, o qual designaremos por compromisso significativo[5], que possui potencialidades para fomentar a realização dos direitos fundamentais e da democracia. Serão apresentados os cinco casos: Grootboom, Port Elizabeth, Olivia Road, Mamba e Joe Slovo I e II, que constituem a elaboração, com avanços e recuos, desse instituto.

O caso Grootboom
Segundo Rosalind Dixon[6], o caso Grootboom é um dos casos mais debatidos no âmbito do direito constitucional comparado. Essa repercussão se deu, pois, a decisão da Corte Constitucional sul-africana teria equilibrado a implementação de direitos fundamentais sociais, sem desrespeitar a separação dos poderes e levando em consideração a escassez de recursos. Tais razões de decidir contribuiriam para que autores inicialmente críticos da positivação de direitos fundamentais sociais, tais como Cass Sunstein[7], revisassem seus posicionamentos, por compreender que a criativa solução da Corte Constitucional respondia de forma adequada as objeções anteriormente feitas.

Irene Grootboom era uma integrante de um grupo de 900 pessoas, sendo 510 crianças e 390 adultos, que viviam num assentamento informal em Wallacedene. Muitas delas estavam há mais de sete anos na fila para moradias de baixo custo. Com o aumento das chuvas e a chegada do inverno, o grupo ocupou um terreno privado, próximo ao local, que seria usado para a construção de casas populares[8]. O proprietário do terreno obteve uma ordem de despejo, o qual foi realizado de modo violento, sendo que as posses e os materiais de construção do grupo foram destruídos. Desesperado, o grupo retornou a Wallacedene, onde assentaram-se em um campo esportivo que não possuía condições de recebê-los de forma adequada, pois ocorriam diversos problemas, tais como inundações, que colocavam em risco a saúde dos adultos e sobretudo das crianças[9].

Os moradores enviaram comunicações ao município da Cidade do Cabo requerendo providências, com base nos artigos 26. 2 e 28, 1, c da Constituição sul-africana, os quais prescrevem o direito à moradia (artigo 26), o dever de adotar medidas razoáveis, com seus recursos, para atingir a progressiva realização do direito à moradia; e a proteção básica das crianças à saúde, nutrição básica e serviços sociais, além de abrigo (artigo 28, 1, c).Diante da inércia do município, o grupo, liderado por Irene Grootboom, pediu ao Tribunal Superior do Cabo da Boa Esperança uma ordem para obrigar o governo local a fornecer abrigo adequado e alojamento provisório até a obtenção de um local permanente. O pleito foi negado em relação à concessão de abrigo temporário. Contudo, foi deferida a medida para que fosse provido abrigo às famílias com crianças, afirmando-se o caráter absoluto da obrigação com as crianças, fundada no artigo 28, I, c.

O governo local recorreu à Corte Constitucional, que apreciou a questão com base no artigo 26 (direito à moradia). Segundo a Corte, a Constituição exige a verificação da adoção, pelo Poder Público, de medidas razoáveis para a efetivar o direito à moradia. No caso, foi reconhecido que a políticas de moradia eram coerentes e coordenadas. Não obstante, elas não eram razoáveis por não adotarem medidas específicas para a população que se encontrava em situações semelhantes — de risco.

Ao decidir, a Corte afirmou a dimensão positiva e negativa do direito à moradia. De um lado, determinou-se a obrigação do Estado de promover progressivamente medidas razoáveis para realizar o direito à moradia e, do outro, o dever de não prejudicar ou dificultar o acesso à moradia. Assim, foi declarada a inconstitucionalidade da política pública adotada sem que fosse estabelecida alguma ordem específica a ser cumprida pelo Poder Executivo[10].

Conforme afirmado, o acórdão do caso ganhou fama, sobretudo em círculos acadêmicos do Atlântico Norte, em razão do equilíbrio entre proteção dos direitos fundamentais sociais, produção de modificação na política pública e respeito às prerrogativas do Poder Executivo[11]. Não obstante, houve críticas porque foram estabelecidas medidas muito vagas e pouco detalhadas, o que teria contribuído para a inefetividade da prestação jurisdicional. Inclusive, parcela da comunidade não conseguiu uma moradia mesmo anos após o julgamento do caso, especialmente Irene Grootboom, que faleceu em 2008 sem ter assegurado o direito, 8 anos após o julgamento.

César Rodríguez-Garavito ressalta que provimentos estruturais possuem, geralmente, duas dimensões: simbólica e concreta[12]. Do ponto de vista simbólico, a decisão afirmou o papel da Corte e estabeleceu critérios — ainda que mínimos — para a implementação progressiva do direito à moradia. Apesar de não ter se realizado o pedido em sua integralidade (efeito concreto), o provimento influenciou a atuação do Executivo, que criou em 2004 um plano nacional do governo sul-africano (BNG — Breaking New Ground) com o objetivo de erradicar as moradias informais no país no menor tempo possível. A partir dele foram desenvolvidas outras políticas de reestruturação urbana para reformar assentamentos informais[13]. Adiante será exposto como algumas das críticas foram incorporadas pela Corte em decisões posteriores na elaboração do compromisso significativo.

Continua na parte 2

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