Opinião

Direitos Fundamentais: um exemplo de ponderação

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16 de fevereiro de 2023, 6h37

O passado recente evidencia decisões divergentes, tanto no âmbito do STJ (Superior Tribunal de Justiça), quanto no STF (Supremo Tribunal Federal), quanto à constitucionalidade e/ou legalidade de apreensão de CNH, de passaporte, suspensão do direito de dirigir e da proibição de participação em concurso público dos devedores, com o objetivo de garantir o pagamento de sua dívida junto ao credor.

Independentemente do teor da atual decisão do STF em validar medidas atípicas (de caráter amplo e aberto) previstas no Inciso IV do artigo 139 do CPC para garantir o pagamento de dívida é oportuna a constatação de que o Poder Judiciário, especialmente, o STJ e o STF têm caminhado para uma flagrante tendência de valorização crescente das normas processuais, relativamente às normas materiais, conforme decisões recentes envolvendo traficante de drogas, cujo domicílio foi invadido por policiais (sem autorização judicial), com base em denúncia anônima, além de outros casos graves similares, cujas provas foram consideradas ilícitas, relativamente à gravidade do cometimento de atos ilícitos.

Na mesma direção há que se lembrar das decisões de caráter processual que invalidaram a maioria dos processos no âmbito da "lava jato", motivada pela constatação superveniente de incompetência do juízo de Curitiba, além de outras já ocorridas recentemente e que remetem às causas meramente processuais.

Por outro lado, a relevância dos precedentes jurisprudenciais também tem sido crescentemente invocada em processos do STF, levando a uma igual tendência de aplicação simultânea dos dois sistemas no Brasil: o civil law e o common law, como foi o caso atual que relativizou a coisa julgada no direito tributário (em dois recursos extraordinários que tratavam da exigência de pagamento de CSLL das empresas), com base em uma decisão daquela Corte, em 2007.

Afora aquelas observações de caráter geral e preliminar, a questão é controvertida e enfrenta o sopesamento de alguns direitos fundamentais envolvidos em cada caso concreto, o que permite afirmar que um daqueles direitos deverá prevalecer em cada situação a ser decidida pelo Poder Judiciário, desde que não afete o chamado "núcleo essencial" das cláusulas pétreas previstas no Inciso IV do §4º do artigo 60 da Carta Magna (direitos e garantias individuais).

Trata-se, pois, de uma reflexão que remete, principalmente, ao direito fundamental de liberdade de locomoção pelo território nacional e internacional previsto no Inciso XV do artigo 5º da Carta Magna, relativamente aos dispositivos de caráter processual, dispostos no CPC e em harmonia com os princípios do devido processo legal (Inciso LIV), direito à defesa e ao contraditório (LV) igualmente previstos no artigo 5º da Constituição Federal de 1988.

Nessa direção há que se remeter ao Poder de Cautela do Magistrado que, ao aplicar as medidas atípicas previstas no Inciso IV do artigo 139 do CPC para obrigar os devedores a quitarem a sua dívida em face do credor deverá usar dos Princípios implícitos na Carta Magna, da Proporcionalidade e Razoabilidade, além de emprestar efetividade e eficiência ao sistema pari passu com o acesso à justiça, na solução das demandas jurisdicionais.

Ao julgar uma ação ou recurso que envolve, de um lado, o devedor e, de outro o credor há que se examinar detida e cautelosamente, os elementos que compõem cada caso, no sentido de aplicar as sanções civis previstas no Inciso IV do artigo 139 da CPC em consonância com o artigo 805 do mesmo código e com os dispositivos constitucionais.

Com relação ao artigo 805 do CPC, o magistrado deverá ter o cuidado de determinar a execução do modo menos gravoso ao executado.

Portanto, a decisão do ministro relator, Luiz Fux e dos demais ministros, no sentido de ratificar a constitucionalidade do Inciso IV do artigo 139 do CPC vai também, ao encontro de outros dispositivos daquele código, como:

 o artigo 1º, cuja redação prevê que o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e normas fundamentais estabelecidos na Constituição, além de observar as disposições do CPC e;

 o artigo 8º que determina a obrigação de o magistrado, ao aplicar o ordenamento jurídico, atender aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência (todos previstos, explícita ou implicitamente na Constituição Federal de 1988, especialmente, os três últimos que estão elencados no caput do artigo 37).

Acrescente-se o artigo 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro que ratifica a previsão do artigo 8º do CPC, ao determinar que "nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão".

Para além do cumprimento daqueles dispositivos legais, a decisão atrai, inevitavelmente, o atendimento dos direitos fundamentais esculpidos no artigo 5º da Carta Magna, tendo como pano de fundo o respeito incondicional ao chamado Sobreprincípio da Dignidade Humana previsto no Inciso III do artigo 1º da Carta Magna, do  que se deduz que a leitura e interpretação das normas legais e constitucionais deverá ser sistemática e nunca literal ou isolada.

Assim, o Código de Processo Civil constitui fonte primária do direito e se submete obrigatoriamente, assim como as demais legislações da mesma hierarquia, aos dispositivos constitucionais.

Tais determinações foram suficientemente claras na decisão daquela Corte e na tese aprovada em Plenário.

Explicando:

Medidas atípicas (previstas no Inciso IV do artigo 139 do CPC e que se configuram como normas abertas, gerais e amplas) garantem a efetividade de todos os julgados e são, portanto, constitucionais, desde que respeitem os artigos 1º, 8º e 805 daquele código e os direitos fundamentais dos jurisdicionados (tanto o devedor, quanto o credor, a depender de cada caso concreto).

Em outras palavras: caso o magistrado venha a decidir de forma abusiva em cada situação, extrapolando do seu Poder Geral de Cautela em face da garantia de atendimento aos direitos fundamentais das partes, o prejudicado deverá contestar junto à instância imediatamente superior do Poder Judiciário e/ou à instância competente para o seu julgamento alegando, inclusive, a afronta ao Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição que garante o acesso à Justiça, quando o jurisdicionado vir a sofrer lesão ou ameaça a direitos, cuja previsão se encontra no Inciso XXXV do artigo 5º da Carta Magna.

Partindo do pressuposto de que o STF decidiu que o inciso IV do artigo 139 do Código de Processo Civil é constitucional, aquela decisão adquire efeito vinculante para todas as instâncias do Poder Judiciário e para a administração pública direta e indireta, nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal), uma vez que o julgamento se deu em ação de controle abstrato de constitucionalidade (ADI), conforme determina o §2º do artigo 102 da Constituição de 1988.

Portanto, não há que se argumentar que aquela decisão irá restringir ou suprimir um direito fundamental, até porque, aqueles direitos não são absolutos e podem sofrer algum tipo de limitação, desde que a decisão judicial seja devidamente motivada e respeite os princípios constitucionais envolvidos em cada caso concreto.

Conforme muito bem explicado no voto do ministro relator, não existe bom senso em apreender a carteira de habilitação de um taxista (que aufere a sua renda com o seu meio de transporte) em razão de uma dívida. Existem outros mecanismos processuais disponíveis no ordenamento jurídico para a aplicação de uma sanção civil proporcional a cada situação.

Da mesma forma, a apreensão de passaporte do devedor que ostenta uma vida de luxo constitui medida razoável para a exigência de quitação de sua dívida, quando já foram esgotados todos os demais fundamentos.

Em síntese (de acordo com o voto do relator):

 toda a norma jurídica reclama uma filtragem constitucional, ou seja, uma interpretação conforme a Constituição;

 a mera indeterminação de uma norma não enseja a sua inconstitucionalidade (referindo-se ao caráter aberto do Inciso IV do artigo 139 do CPC); e

 a aplicação concreta das medidas atípicas (constantes no Inciso IV do artigo 139 do CPC) pelo magistrado encontra limites no sistema em que ela se se insere, o que remete ao requisito inafastável da motivação e fundamentação que deverá estar presente numa decisão judicial, sem olvidar da sua proporcionalidade e razoabilidade, evitando, assim, arbitrariedade.

Diante do exposto é preciso reconhecer que a decisão tomada pelo STF traduz a preocupação simultânea de garantir o atendimento dos direitos fundamentais de ambas as partes e a eficiência e efetividade do sistema jurisdicional, no sentido de satisfazer as demandas que ali desembocam e que necessitam de uma solução ponderada, equilibrada, como a que foi decidida pela Corte.

Por último e igualmente importante é a constatação de que aquela decisão favorece, mesmo que indiretamente, a garantia de contratos firmados entre os agentes econômicos, com a proteção jurisdicional que lhes cabem por direito e contribuindo para o seu bom termo e a consequente segurança jurídica que constitui variável fundamental para o investimento e o crescimento econômico.

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