Seguros Contemporâneos

Smart legal contracts e os contratos de seguro paramétrico

Autores

  • Marcelo Mansur Haddad

    é sócio do escritório Mattos Filho doutor em Direito pela USP mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universität Heidelberg (Alemanha) — bolsista da Fundação Konrad Adenauer especialista em Direito Comercial Internacional pela Université de Paris X — Nanterre (França) graduado em Direito pela USP e professor da Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

  • Gustavo Marchi de Souza Mello

    é advogado do escritório Mattos Filho graduado em Direito pela USP com dupla diplomação pela Université Jean Moulin — Lyon III (França) e Zertifikatsstudium pela Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha).

16 de fevereiro de 2023, 8h00

As mudanças de paradigmas tecnológicos pressionam, inevitavelmente, por uma atualização também do mundo jurídico, com o objetivo de recepcionar as demandas empresariais às novas realidades interativas. Observa-se, com isso, uma necessidade de evolução dos arranjos contratuais em formatos mais ágeis e responsivos, capazes de prover soluções eficientes ao mesmo tempo em que se mantêm abertos à inovação. Um exemplo interessante para a indústria securitária é a sinergia entre o racional dos seguros paramétricos e o mecanismo de autoexecutabilidade propiciado pelos smart legal contracts, temática desenvolvida a seguir.

Afinidade entre smart legal contracts e contratos de seguro paramétrico
Os smart legal contracts nada mais são do que programas automáticos de software, isto é, códigos programáveis, que comandam o conteúdo de determinada relação jurídica, envolvendo predecessores e subsequentes, combinando protocolos com interfaces de usuário para formalizar e assegurar o encadeamento entre as condições (como cláusulas contratuais) e os resultados previstos, incorporando-os ao programa. São aceitos como forma de pagamento criptoativos ou bens tokenizados e funcionam em redes blockchain (Ethereum, NEO, NEM, EOS e Cardano), sempre sob o signo da imparcialidade, da lisura e da rigorosa observância daquilo que foi estabelecido contratualmente.

Aqui temos o seguinte procedimento: cláusulas contratuais apropriadas são convertidas em um código executável computacionalmente, há o registro delas na rede coletiva e, com a ocorrência da condição preestabelecida ou com a violação das obrigações contratuais, ambas matematicamente determináveis, executam-se automaticamente as ordens que foram prévia e digitalmente pactuadas.

Essa lógica evidencia uma distinção sinônima de possível facilitadora para as práticas contratuais, uma vez que qualquer usuário pode criar um contrato autoexecutável, bastando registrar uma transação em redes blockchain, além da ampliação da eficiência e da performance no âmbito do direito contratual, haja vista a eliminação do terceiro normalmente requerido para resolver desacordos.

Enquanto os contratos cíveis e comerciais padrões descrevem os termos de uma relação obrigacional interpartes, os smart legal contracts impõem e asseguram, por meio de linhas de código, a autoexecutabilidade dessas obrigações. Ou seja, eles não adicionam, ao mundo jurídico, um novo tipo contratual, mas tão somente um novo layout à celebração de contratos feitos integralmente por meio de software computacional em transações eminentemente digitais.

Os seguros paramétricos, por sua vez, se tornaram uma realidade no setor securitário nos últimos anos, ganhando repercussão devido a sua praticidade, em especial face ao binômio segurança alimentar (ou segurança no campo) / mudanças climáticas. Eles estão muito em voga nas atividades de empresários rurais e daqueles que podem, por meio de índices, equipamentos e critérios de mensuração, definir a ocorrência de sinistros ou eventos naturais danosos.

Recentemente, a discussão sobre contratos de seguros paramétricos ganhou novo impulso diante do enfrentamento mundial da pandemia Covid-19, situação que impactou fortemente o âmbito de adequações entre a nova realidade de saúde pública e as obrigações explicitadas nos instrumento jurídicos negociais — o que, inclusive, levou à reflexão entre os juristas sobre as melhores formas de mitigar os riscos financeiros e sobre se seria possível manter assegurada a efetividade das cláusulas econômicas, sejam elas prestações pecuniárias ou obrigações de fazer expressas nos arranjos contratuais.

Os seguros paramétricos têm esse nome devido, justamente, ao "gatilho" ou "parâmetro": uma métrica aferível objetivamente, como índices pluviométricos, índices meteorológicos, topografias geoprocessadas por satélite e variáveis de temperatura, sendo a extensão da indenização firmada em determinados níveis, que terão como base a magnitude do evento a acionar o estipulado por meio do contrato — isto é, o mecanismo de pagamento da indenização por parte da seguradora.

Dessa forma, considerando que os smart legal contracts e os contratos de seguro paramétrico partem de uma estrutura lógica de interpretação e aplicação comum do tipo condicional "se A então B", perfeitamente combináveis, é natural que aplicações conjuntas saltem aos olhos daqueles que visualizam o estabelecimento de negócios jurídicos autoexecutáveis para o acionamento da cobertura securitária e a consequente preservação patrimonial. Oportuno ao mercado, pois, no mínimo, explorar como essa afinidade pode tornar os contratos de seguros instrumentos jurídicos ainda mais efetivos e poderosos [1].

Requisitos objetivos na indenização securitária paramétrica
Seria, então, possível que os smart legal contracts fossem utilizados enquanto forma para o conteúdo de um contrato que tem o risco e a álea como parte de suas premissas e fundamentos, como são os contratos de seguro paramétrico?

Por um lado, quanto à forma, admitindo-se, como nós entendemos, que os contratos de seguro são consensuais em sua formação, sendo a forma escrita prescindível para seu surgimento no mundo jurídico [2], pode-se dizer que a linguagem via script de caracteres computacionais é, sim, um tipo de formalização linguística, de maneira que plenamente viáveis os contratos de seguros paramétricos digitalmente consolidados.

Por outro, quanto ao conteúdo, os smart legal contracts também podem ter como objeto a cobertura de um determinado interesse segurável, fixando uma pretensão indenizatória a quo caso ocorra um sinistro, incluindo eventos de vis maior (se for o caso), desde que a onerosidade para o segurador e o adimplemento da obrigação de pagamento do prêmio por parte do segurado estejam alicerçados de maneira nítida e objetiva na boa-fé entre as partes. Boa-fé aqui compreendida como princípio cuja observância se faz mister para toda a segurança de um contrato, de acordo com o artigo 422 do Código Civil, e agravada, no caso da relação securitária, pelo disposto no artigo 765 do mesmo diploma.

Vale atentar, ainda, para o fato de que, em um contrato de seguro paramétrico sob a modalidade de um smart legal contract, o requisito da máxima boa-fé, típico de uma relação securitária, ganha contornos especiais. Isto porque se confia de parte a parte que os parâmetros acordados refletem e funcionam, tanto na teoria quanto na prática, de forma a efetivamente identificar um sinistro e sua respectiva quantificação, tudo com o auxílio de processos automáticos de regulação e liquidação via tecnologia computacional.

O fato de haver um elemento de álea no contrato de seguro, ou seja, a imposição de que a onerosidade a que um segurador está sujeito somente recaia sobre ele na ocorrência do evento predeterminado (certo ou incerto, mas, no primeiro caso, sem data marcada), não invalida que esta condição não possa ser declarada de maneira mais objetiva e calculável quando da celebração no formato smart.

Como prova disto, destaca-se que os contratos de seguro paramétrico impõem na sua contratação a determinação de quais serão os índices ou critérios objetivamente considerados para acionar os "gatilhos" ou "parâmetros" motivadores da indenização securitária, em vez das usuais comunicações interpessoais de sinistro ou expectativa de sinistro.

Desta maneira, as condições atribuídas ao contrato de seguro paramétrico sempre poderão ser satisfeitas caso um evento natural ou humano, que configure, em cada cenário, um sinistro coberto, prejudique aquela atividade empresarial segurada. Ao concordarem com os meios de mensuração desencadeadores da execução do pagamento da indenização securitária, tanto a operadora de seguro quanto o segurado estarão respaldados em critérios de verificação objetivos previamente selecionados de forma consensual, transparente e legítima.

Não há, portanto, necessidade de o segurado entrar em contato com a seguradora quando o parâmetro escolhido for acionado. Em vez disto, observa-se um constante diálogo entre a dimensão digital (contrato) e a circunstância real (gatilhos), esta última conectada à primeira por meio de oracles (ferramentas indicadas pelas partes para revelarem, ao software, a ocorrência ou não das condições previamente estipuladas [3]). Com este monitoramento das fontes de dados, bem como dos índices externos, é possível capturar informações sobre os parâmetros e imputá-las ao código, fornecendo a aprovação para o pagamento automático quando as exigências do contrato forem atendidas.

Em consequência, há a eliminação dos elementos físicos do processo, como papeladas e provas da ocorrência de sinistros, e do próprio equívoco humano. Logo, aumenta-se consideravelmente a velocidade e reduz-se significativamente os custos de processamento de sinistros, bem como se fornece mais segurança para os pagamentos devidos aos segurados.

Nota-se, porém, que apesar de o processo de regulação e liquidação de sinistros ficar muito mais simplificado depois que a apólice é emitida, os interessados em adotar modelos de seguros paramétricos provavelmente precisarão de maior assistência nos estágios iniciais de planejamento e contratação do seguro, a julgar pela necessidade de os seguradores (e eventuais resseguradores) e os segurados (e eventuais beneficiários) estarem harmonicamente convencidos da existência de dados de terceiros confiáveis e em quantidade suficiente para, efetivamente, refletir a existência e a respectiva quantificação de perdas seguradas.

E, aqui, o risco de imagem decorrente de uma falha humana ao elaborar o contrato pode ser muito prejudicial não só ao produto em si, mas também ao mercado (res)segurador como um todo. Sem uma linguagem precisa, compreensível e bem fundamentada sobre o que constitui um evento desencadeador e quanto exatamente será pago, as operadoras de seguro correm o risco de produzir lacunas nas coberturas das apólices e, assim, deixar seus clientes com risco de perdas devastadoras. Daí a necessidade de uma elaboração contratual técnica e altamente especializada, atenta a ambos os contextos fático e operacional.

Isto posto, o formato smart legal contract, com sua exatidão computacional, é o que mais nos parece acertado para facilitar a alocação de dados e de limites do quantum indenizatório em um seguro paramétrico, pois a linguagem de comandos autoexecutáveis traz a devida segurança jurídica ao segurado no que tange à observância exata daquilo que deve ser adimplido pelas operadoras de seguro a título indenizatório, conforme critérios de antemão suficientemente estabelecidos, que alocam, imparcial e digitalmente, a responsabilidade contratual entre as partes.

O que está porvir no cenário de smart legal contracts
Inovações tecnológicas em campos como o Direito Contratual surgem de maneira a repensar processos e serviços vis-à-vis os avanços de uma sociedade dinâmica e em constante transformação — neste caso, respaldadas nos desejáveis atributos de automatização e autoexecutabilidade. É com esse pano de fundo que testemunhamos a chegada das primeiras tentativas de aplicação dos smart legal contracts, ancorados em traços que conferem maior eficiência ao adimplemento contratual.

Paralelamente, sobretudo impulsionado pela vasta disponibilização de dados disponíveis aos usuários, como são os índices e os fatores mensuráveis, atenta-se à discussão sobre a maior presença dos seguros paramétricos na indústria securitária, como instrumentos mais eficientes e eficazes na gestão de sinistros.

Com a incessante adoção de novas tecnologias no cotidiano da sociedade, é natural que os seguros paramétricos, por suas propriedades, encontrem correspondência com a forma jurídica dos smart legal contracts, em um processo que permitirá tirar o melhor proveito dos benefícios proporcionados por ambas as figuras.

Inclusive, não nos surpreenderia que, com o passar do tempo, o racional oriundo desta nova sinergia venha a impregnar toda a indústria securitária e ser aplicado nas mais variadas modalidades de seguro, seja de danos ou de pessoas, certamente em benefício de toda a coletividade, fazendo com que, uma vez mais e de forma cada vez mais efetiva, o contrato de seguro cumpra com suas funções econômicas e sociais.

 


[1] Um contrato que utiliza indicadores científicos ou qualquer outro para a regulação e a liquidação de um sinistro é, agora e na nossa visão, o mais apto para se revestir de uma forma jurídica smart. No entanto, isto não quer dizer em absoluto que, com a evolução da técnica e da tecnologia nos mais diversos campos da vida humana, os smart legal contracts não possam beneficiar a indústria de seguros como um todo, desde o seguro de vida ou de auto (nos quais os registros civis públicos ou o próprio veículo reportaria o evento-gatilho para a indenização securitária) até os seguros mais complexos, como os de grandes riscos.

[2] HADDAD, Marcelo Mansur. O Resseguro Internacional. Rio de Janeiro: FUNENSEG, 2003, p. 48.

[3] Não é tarefa complicada implementar um smart contract on-chain, ou seja, programas que comunicam ocorrências verificadas e que digam respeito a ativos representados em blockchain. Porém, caso seja necessário que um smart contract interaja com o mundo físico, isto exigirá a conexão com um oracle, conectando a rede blockchain com o mundo exterior (off-chain). Permite-se, assim, que o código importe dados externos à rede. Cf. CLACK, Christopher; BAKSHI, Vikram; BRAINE, Lee. Smart Contract Templates: foundations, design landscape and research directions, 2016, p. 3.

Autores

  • é sócio do escritório Mattos Filho, doutor em Direito pela USP, mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universität Heidelberg (Alemanha) — bolsista da Fundação Konrad Adenauer, especialista em Direito Comercial Internacional pela Université de Paris X — Nanterre (França), graduado em Direito pela USP e professor da Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

  • é graduando em Direito (USP) com dupla diplomação pela Université Jean Moulin (Lyon III) e período sanduíche na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU), bolsista FAPESP (pesquisa acerca dos "smart contracts") e membro da associação Lawgorithm.

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