Opinião

40 anos da aprovação da Lei Municipal nº 3.532, de BH, que criou as Zeis

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16 de fevereiro de 2023, 18h09

No dia 6 de janeiro de 2023 foi o aniversario de 40 anos da aprovação da Lei Municipal nº 3.532/1983, de Belo Horizonte, que tem um papel fundamental na história das leis e políticas urbanas, habitacionais e fundiárias do Brasil: foi essa lei que, pela primeira vez, criou um instituto jurídico-urbanístico importante que permite o reconhecimento e a legalização dos assentamentos informais consolidados. No seu no Artigo 1º, a lei "…autoriza o Executivo Municipal a criar o programa Municipal de Regularização de Favelas — Profavela", inicialmente "aplicável somente às favelas densamente ocupadas por populações economicamente carentes, existentes até a data do levantamento aerofotogramétrico do 1º semestre de 1981", determinando em seguida no Parágrafo Único que "visa a possibilitar a urbanização e regularização jurídica das favelas mencionadas no artigo 1º". Para tanto, aquela lei estabeleceu:

"Art. 2º –  Fica criado no zoneamento municipal o Setor Especial-4 (SE 4), que compreende as áreas faveladas definidas por esta lei.
§ 1º – Compete ao Executivo Municipal delimitar as áreas caracterizadas como SE-4, regulamentando-lhes o zoneamento e a ocupação.
§ 2º – O SE-4 destina-se à urbanização especifica de favelas e deverá observar, tanto quanto possível, as características da ocupação espontânea.
Art 3º – O uso e ocupação do solo nas áreas classificadas como SE-4 serão apreciados e aprovados de acordo com a tipicidade da ocupação, excluindo-se a aplicação das normas gerais do Município, observadas as disposições a serem baixadas em decreto regulamentar."

Explicitar o contexto é fundamental.

Em 29 de novembro de 1976, a Lei Municipal nº 2.662 tinha disposto "sobre normas de uso e ocupação do solo no Município de Belo Horizonte" de forma arrojada, logo tornando-se um paradigma no país ao articular conceitos então inovadores como zoneamento, modelo de assentamento, taxa de ocupação, coeficiente de aproveitamento e índice construtivo. Essa lei criou três "Setores Especiais", correspondentes basicamente e respectivamente a áreas de preservação, espaços destinados a grandes usos institucionais e espaços destinados ao desenvolvimento de projetos especiais. Contudo, como de resto também acontecia nos demais municípios do país, as áreas efetivamente ocupadas por assentamentos informais consolidados, muitas delas por décadas, não foram consideradas pela lei, tendo na verdade sido tratadas como se fossem áreas verdes ou áreas vazias. Aparentemente tão simples, esse reconhecimento dessas áreas como Setor Especial 4 pela Lei de 1983 foi mesmo revolucionário em termos jurídicos e sociopolíticos, ao dar visibilidade jurídica e propor a demarcação de situações, áreas e comunidades historicamente ignoradas. Que esse avanço tenha se dado em Belo Horizonte foi especialmente importante, porque o plano original da cidade — uma das poucas cidades totalmente planejadas do Brasil — não havia reservado espaços para os seus construtores, de tal forma que as primeiras favelas locais foram constituídas antes mesmo da inauguração da cidade em 1897 — e continuavam ignoradas um século mais tarde.

Esse avanço jurídico somente foi possível graças à atuação, junto à Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, do Plambel — Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Essa solução jurídica original foi proposta pela pequena equipe do Plambel, de que participei, liderada pelo brilhante jurista José Rubens Costa, que era o assessor jurídico daquela autarquia. Foram exploradas pela primeira vez, e de maneira inventiva, as possibilidades da vaga noção de "urbanização específica" que tinha sido introduzida pela Lei Federal nº 6.766 de 19 de dezembro de 1979, que, ao regulamentar o parcelamento do solo urbano no país, assim dispôs no seu Artigo 4º:

"Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos:

'I – os lotes terão área mínima de 125m² (cento e vinte e cinco metros quadrados) e frente mínima de 5 (cinco) metros, salvo quando o loteamento se destinar a urbanização específica ou edificação de conjuntos habitacionais de interesse social, previamente aprovados pelos órgãos públicos competentes (…)".

Argumentando que favelas são efetivamente loteamentos, ainda que resultantes de processos informais distintos, a lei do Profavela propôs a base do que tem sido amplamente chamado mesmo internacionalmente de "Fórmula Brasileira" para a regularização desses assentamentos informais consolidados, articulando as dimensões de demarcação, urbanização, criação de normas especificas de uso e ocupação, processos de gestão participativa e estratégias de legalização. Ou seja, a lei de 1983 adotou uma visão integrada de regularização que vai muito além da visão legalista reducionista que prevalece em outros países.

Na esteira da lei de Belo Horizonte, logo a seguir em 17 de janeiro de 1983 foi aprovada no Recife a Lei Municipal nº 14.511 que definiu diretrizes para o uso e ocupação do solo, e cujo Artigo 14 criou formas de "Zonas Especiais (ZE) — no zoneamento municipal — isto é, "áreas urbanas que exigem tratamento específico na definição de parâmetros reguladores de uso e ocupação do solo", uma delas sendo

"II – Zonas Especiais de Interesse Social – Zeis:
Caracterizadas como assentamentos habitacionais surgidos espontaneamente, existentes e consolidados, onde são estabelecidas normas urbanísticas especiais, no interesse social de promover a sua regularização jurídica e a sua integração na estrutura urbana."

Desde então, a expressão "Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis)" passou a ser utilizada na maioria dos municípios no Brasil que adotaram o novo instrumento — ainda que alguns municípios prefiram a expressão "Áreas Especiais de Interesse Social (Aeis)". A mesma "Fórmula Brasileira" compreensiva de Belo Horizonte foi adotada no Recife e na maioria dos municípios que seguiram essa rota mais articulada da regularização de assentamentos informais consolidados.

Contudo, também desde então tem havido no Brasil uma disputa quanto à maneira mais adequada de se promover a legalização dos assentamentos informais consolidados: trata-se de matéria de direito de propriedade ou de direito de moradia? Nos dois municípios pioneiros a influência da Igreja Católica foi fundamental, mas enquanto em Belo Horizonte tomou-se como princípio a decisão de que os moradores deveriam receber gratuitamente títulos individuais de propriedade plena — sem maiores considerações sobre o que isso significaria jurídica e financeiramente numa cidade onde grande número de favelas ocupava terrenos de particulares —, no Recife — onde um grande número de favelas ocupava áreas públicas — foi feita uma opção jurídico-politica pelo reconhecimento do direito de moradia, a ser reconhecido através de formas individuais ou coletivas de concessão de direito real de uso no caso de assentamentos em terras públicas, e através de usucapião individual ou coletivo no caso de assentamentos em terras privadas.

A Constituição Federal de 1988 e a Lei Federal nº 10.257 de 10 de julho de 2001 — chamada de "Estatuto da Cidade" — confirmaram a "Fórmula Brasileira" e fortaleceram a opção de legalização de assentamentos informais adotada no Recife. Nesse caminho, a noção original das Zeis foi ampliada no sentido de se referir não apenas às áreas já ocupadas, chamadas de "Zeis cheias", mas também às áreas vazias públicas e/ou privadas que deveriam ser reservadas nos zoneamentos municipais para viabilizar o cumprimento pelos municípios da obrigação constitucional de promover o reconhecimento do direito social de moradia — afinal, onde devem viver os mais pobres na cidade? Essas seriam as "Zeis vazias", a serem criadas para viabilizar as políticas habitacionais. Alguns municípios também utilizam a noção da Zeis para propor a regularização de bairros tradicionais e/ou áreas centrais degradados.

Passados 40 anos da criação dos primeiros Setores Especiais e das primeiras Zeis, algumas constatações já podem ser feitas, ainda que estudos de maior fôlego sejam necessários.

A primeira constatação é que ao longo dessas décadas o número de "Zeis cheias" criadas por leis municipais cresceu enormemente no Brasil, já tendo passado da ordem de milhares, o que é certamente um grande avanço civilizatório no sentido de reconhecer oficialmente essas áreas historicamente produzidas através de processos informais, e onde vivem dezenas de milhões de brasileiros. Chega de invisibilização e de negação da História.

A segunda constatação, confirmada por estudo recente por ocasião do aniversário de 20 anos do Estatuto da Cidade, é que o número de "ZEIS vazias" ainda é pouco significativo no país. Isso diretamente reflete o estado da política pública dominante, que trata com maior facilidade as situações consolidadas com ações corretivas, mas tem enorme dificuldade de adotar ações preventivas que possibilitem o acesso formal ao solo e à moradia.

A terceira constatação é que, na falta dessas políticas preventivas, os processos informais continuam crescendo no país e tomando novos contornos, sendo que os programas de regularização são com frequência a única política habitacional em vigor — e não uma dimensão de uma política mais ampla e articulada, como deveriam ser.

É nesse contexto que cabe a pergunta: as Zeis funcionam? É fato inconteste que são raras as Zeis no Brasil nas quais os processos de gestão participativa e as normas específicas de uso e ocupação previstos na concepção original do instrumento foram efetivamente implementados, sendo que de modo geral também são poucos os programas de legalização significativos. Contudo, mesmo sem o reconhecimento de títulos, a mera demarcação por lei das áreas ocupadas pelos assentamentos informais tem tido efeitos muito importantes, sobretudo ao facilitar a permanência das comunidades no local — o que não é tarefa nada fácil em um país como o Brasil no qual as disputas fundiárias são tão intensas. Estudos já indicaram que a mera demarcação das Zeis funciona como uma espécie de proteção das comunidades contra a pressão externa do mercado imobiliário formal, cujos agentes não sabem exatamente o que fazer diante do gravame das áreas.

Com o tempo de consolidação e a maior urbanização das áreas, naturalmente tem havido maior densidade de ocupação e verticalização crescente, especialmente nas favelas em áreas centrais, processos esses que se traduzem em mercados informais de compra-e-venda e de aluguel cada vez mais dinâmicos. Se por um lado a percepção de segurança de muitos moradores encoraja investimentos em melhoramentos habitacionais, por outro lado a baixa demanda por títulos efetivamente compromete a segurança jurídica da posse dos ocupantes — e quando os pactos sociopolíticos que geram a percepção de segurança mudam, como têm mudado em diversos contextos, muitos moradores acabam sendo removidos pelas autoridades públicas sem sequer receber indenização pela terra ocupada. Em diversos casos a pressão do mercado imobiliário tem feito com que moradores vendam suas casas e terras. No entanto, estudos indicam que a maioria da população permanece e se beneficia dos investimentos públicos em serviços e infraestrutura: gerações da mesma família têm vivido nas Zeis, e os processos informais continuam oferecendo mais e melhores condições de acesso ao solo urbano e à moradia nas cidades do que todas as políticas públicas e opções do mercado formal combinadas.

Dito isso, é inconteste o fato de que as Zeis não mudam a natureza segregadora e excludente da urbanização brasileira. Em Belo Horizonte e outros municípios, o mesmo percentual de moradores de assentamentos informais tem se mantido relativamente estável ao longo dos anos, com poucas variações. Por isso mesmo, agora que muitas dessas áreas foram urbanizadas — com recursos públicos — especialmente no Recife e em Salvador tem crescido a pressão pelo "Pós-Zeis", isso é, pela abolição do zoneamento especial e fim do gravame e consequente abertura das áreas para penetração do mercado formal. Essa tendência neoliberal foi também expressa na Lei Federal nº 13.465, de 11 de julho de 2017, que, aparentemente rompendo com a "Fórmula Brasileira" de regularização, propõe a mera legalização dos assentamentos informais sem maiores preocupações com outras dimensões — as Zeis acabaram?

Longe disso. São muitos os desafios colocados para os gestores públicos e para a sociedade brasileira: demarcar as "Zeis cheias" e promover sua devida regulação, gestão e legalização, mas também demarcar as "Zeis vazias" para que políticas preventivas de acesso ao solo urbano com serviços e à moradia nas cidades sejam implementadas de forma a enfrentar o absurdo déficit habitacional e a estrutura fundiária perversa do país. As Zeis já foram chamadas de "a maior contribuição do urbanismo brasileiro para o debate internacional": temos de fazer jus a elas e garantir a permanência nas comunidades nas áreas urbanizadas.

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