Opinião

O acordo em torno do voto de qualidade no Carf e a Hidra de Lerna

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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15 de fevereiro de 2023, 20h29

Há notícias de avanço de acordo entre governo e OAB em torno do espinhoso tema do voto de qualidade no Carf. Os termos da proposta estão disponíveis no site da OAB, tal como (creio) juntados na ADI nº 7.347. Uma iniciativa louvável. O texto é precedido de justificativas, todas também louváveis, e seguramente centrais no contexto da construção do consenso, especialmente em nicho tão acirrado, a propósito do que vemos na relação entre o Fisco e o contribuinte.

Spacca
Essa última expressão, contribuinte, utilizada no Código Tributário, parece-me, foge à realidade dos fatos. Imposições tributárias são mandatórias, o que afasta o conceito de contribuição, a menos que o percebamos pelo destino da arrecadação (contribuir com as despesas do Estado) e não em relação ao sujeito passivo da obrigação tributária. Melhor chamarmos o contribuinte de cidadão, porque é esse quem recolhe os tributos, inclusive quando à frente de pessoas jurídicas.

A proposta de acordo na ADI 7.347, pelo que entendi, suscita que o voto de qualidade (desempate pelo presidente da Turma, indicado pelo ministro da Fazenda) seja considerado constitucional, na esfera da União, quando cumpridos alguns pressupostos. É no conjunto desses pressupostos que, penso, há indícios de dilemas que não se resolvem no plano do acordo. Um dia deverão ser definitivamente enfrentados. Antes, no entanto, os postulados que informam o arranjo que se pretende emplacar.

No caso de desempate em favor da Fazenda (para ser mais claro) há previsão de exclusão de multas e cancelamento de representação fiscal para fins penais. O perdedor pagará apenas o principal e ficará livre de ação penal que seria supervenientemente proposta, a juízo do Ministério Público. De igual modo, e na mesma hipótese, o perdedor tem prazo de 90 dias para manifestar interesse em pagamento (e pagar, obviamente, em até 12 parcelas) com a exclusão dos juros, até a data do julgamento. Nesse caso, calcula-se, tão somente, o montante principal do débito. Não se entra aqui na discussão entre o significado de crédito ou de débito, com problematizada por Fábio Fanucchi nos anos de 1970.

O inadimplemento chama a incidência de juros. O perdedor estaria autorizado a utilizar créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL (quanto titular dos créditos). Essa fórmula depende de várias circunstâncias, entre elas a condição resolutória de homologação posterior, o que não é novidade nesse tipo de trava negocial. O perdedor poderá inclusive utilizar precatórios para amortização e liquidação do remanescente. Eventual inscrição em dívida ativa afastará os encargos do Decreto-lei nº 1.025, de 21 de outubro de 1969 (honorários).

Primeira leitura, apressada (no calor dos fatos, e sigo a autoadvertência que Fernando Faccury Scaff registrou aqui na ConJur em seu artigo sobre recente decisão do STF), dá impressão de que o questionamento judicial da decisão (o que justificaria o não pagamento) acenaria com a retomada dos juros. Vale dizer, e de forma simples: quem questionar judicialmente a decisão contrária, e não pagar, correria o risco de arcar com juros, anteriormente perdoados. Caveat!

A iniciativa, insisto, é louvável. No entanto, um analista mais crítico dos fatos poderia alavancar algumas outras questões, como a que coloquei bem acima. O reconhecimento de que o voto de qualidade é um problema (e é, tanto que há a ação e o acordo) dá-nos conta de uma nova forma de suspeição no direito brasileiro: a suspeição por presunção. Nunca vi isso no CPC ou no CPP. Presume-se que a decisão do conselheiro fazendário será pela Fisco e a decisão do conselheiro do contribuinte (rectius, cidadão) será pela insubsistência do crédito. Se válida a premissa, melhor não se decidir dessa forma, ou de forma alguma. Melhor seria a solução do jogo de dados, como lemos na deliciosa sátira de Rabelais. Uma análise estatística poderia clarificar a aporia.

Já defendi o voto de qualidade. E o fazia por uma razão de ordem formal. Entendia que a regra da dúvida (com benefício do contribuinte) estaria no CTN como reminiscência do projeto originário de Rubens Gomes de Souza, no qual havia disposições sobre direito penal tributário. Mais tarde, revi a posição. O lançamento é ato que deve ser marcado por certeza absoluta, dado seus reflexos no patrimônio do cidadão, a par de algumas razões de ordem prática, a exemplo da presunção que marca o artigo 3º da Lei de Execuções Fiscais (que é de 1980, e que também exige ajustes). Uma dúvida, e o empate é na realidade uma ambiguidade, retira do lançamento a certeza de que necessita para prosperar no mundo real.

O problema não estaria na lei, o problema poderia estar nas agências que aplicam a lei. Tomo essa premissa de Sérgio André Rocha, professor da Uerj. cuja resenha de um de seus livros publicarei na minha coluna Embargos Culturais domingo agora. Há necessidade de uma solução definitiva, quem sabe no contexto de uma justiça tributária especial e especializada, com todos os julgadores remunerados, e independentes de premissas interpretativas de representação do Fisco ou dos contribuintes (cidadãos). O momento exige coragem de se comparar o orçamento do Carf (e os valores adjudicados por suas decisões) com outras instâncias de julgamento, uma delas mais do que centenária.

Sou um admirador do Carf e de seus julgadores. Quando coordenador-geral de Assuntos Tributários na PGFN, organizei (ao lado de Paulo Riscado e de Cláudia Gusmão) a definitiva representação do órgão no Carf (nascia a Cocat). Senti na alma a dor de um amigo conselheiro, acima de qualquer suspeita, injustamente emparedado pela Zelotes. Orientei uma ex-presidente do Carf (Adriana Gomes Rêgo) em belíssima dissertação de mestrado, sobre os problemas do Carf. Admiro o atual presidente, Carlos Higino de Alencar, competentíssimo, que foi ministro de Estado, formado em Economia pela USP, em Direito pela UFC, com mestrado e doutorado em centros qualificados estudo, inclusive na França e nos Estados Unidos. Convivo amistosamente com procuradores, advogados e conselheiros que lá atuam. Acompanho os julgamentos com atenção.

A iniciativa para pacificação da questão é mais do que louvável. Mas algum crítico poderia nos lembrar, no entanto, o parentesco do acordo com aqueles tratados de paz dos anos de 1910 que plantavam tensões intransponíveis, e que resultaram em mais guerras. Projeta-se um consenso mandatório, o que revela em termos lógicos um oxímoro: são conceitos opostos (consenso e ordem para consentir) que mutuamente se excluem.

E se toda sentença de absolvição é a confissão de um erro judiciário (de acordo com um pensador francês, falecido em 1984, amaldiçoado por muitos), uma prévia distribuição dos ônus da condenação, com mais razão, é a confissão de um erro organizacional. A função de qualquer tribunal (incluído o Carf) é garantir a igualdade de tratamento e o efetivo contraditório. É também buscar a solução integral do mérito (quem tem razão), em prazo razoável. O sistema processual (incluído o administrativo) é ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e normas estabelecidos na Constituição. Entre eles, o livre acesso ao Judiciário, restringido com a retomada dos juros como penalidade para quem judicializar a questão.

Corre-se o risco de que um contribuinte (cidadão) aceite um lançamento tributário, porque houve empate no Carf (e há dúvida), pagando o que não devia, ainda que com generosos descontos. O problema pode estar enfrentado por enquanto, no que parabenizo os construtores da solução. Mas não está resolvido. É como a figura da Hidra de Lerna da mitologia grega, cujas cabeças, mesmo quando cortadas, se regeneravam ato contínuo.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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